Kaspar Hauser pela mão de Werner Herzog

18 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

Visionamento do filme de Werner Herzog O Enigma de Kaspar Hauser (Cada um por si e Deus contra todos) até 1h:15m:29s.

No início do visionamento fizemos referência à opção estética de Herzog em conjugar sequências de paisagem natural, campos ao vento de que se tornam visíveis os seus ritmos e movimento, com obra musical de Johann Pachelbel, compositor do barroco alemão, nascido e falecido em Nürnberg. A obra musical escolhida vem acompanhada da seguinte descrição na Wikipédia: «Cânone em Ré Maior é uma obra de câmara do compositor alemão Johann Pachelbel. Nessa peça, agora famosa, três violinos tocam o cânone (cada parte entrando com a mesma música a dois compassos de intervalo), enquanto um baixo contínuo executa uma passagem de fundo curta e simples de oito notas repetida sucessivamente, no caso, cinquenta e quatro vezes. O tema é bem simples, começando com notas longas e lentas, tornando-se então mais rápido e mais ornamentado à medida que progride.

Embora a música de Pachelbel fosse bem vista na época, esse pequeno cânone permaneceu um tanto obscuro até recentemente, conquistando o seu actual status como marco do repertório clássico apenas no fim da década de 1970. Foi adaptado para orquestras completas para quarteto de cordas, como obra para teclado solo e em incontáveis outras versões incluindo remixes pop e rock como o famoso Canon Rock

Chamou-me a atenção, neste contexto, o entendimento desta partitura como obscura. O seu desenvolvimento parece evoluir do simples para o complexo e com um sentido harmónico elaborado, claro, mas vivo, o que aliás era característico da música barroca. Não sei se Herzog conhecia esta particularidade na recepção da obra e se a escolheu em função desse atributo relacionando-a assim não só com os campos agitados pelo vento mas também com a origem obscura de Kaspar Hauser. É verdade que Pachelbel foi alvo de redescoberta no final dos anos sessenta e talvez Herzog o tenha, por isso, passado a apreciar melhor.

A articulação de imagem visual e música tem outros momentos no filme e sempre de forma muito particular. Existem também outras sequências de carácter recorrente como aquela que tem lugar, no início do filme, com o barqueiro solitário que lentamente atravessa o rio (talvez uma homenagem ao pintor suíço Arnold Böcklin e aos seus quadros aquáticos sobre a transitoriedade da vida) e o mesmo barco em movimento contrário ao anterior e transportando dois passageiros já o filme vai avançado.

Mais do que o enigma da história do protagonista, a que Anselm Feuerbach deu um precioso contributo esclarecedor, escrevendo o seu relatório judicial sobre um jovem de nenhures, o tratamento proposto por Herzog a esta história mantém pequenas obscuridades que ultrapassam o fluxo da narrativa fílmica e que se manifestam em diversos níveis simbólicos. Outro exemplo é a associação de Pentecostes com o corpo cheio de feridas de Kaspar.

Herzog inspira-se ainda numa outra obra-prima (a sua também o foi na década de setenta do século passado) mencionada em entrevistas ao realizador: A Paixão de Joana D’ Arc de Carl Dreyer. Para os mais entusiasmados com o cinema deixo aqui o repto.

Estabelecemos orientação de trabalhos de 13 alunos sobre o documento de Anselm Feuerbach não apresentados oralmente para que não houvesse desequilíbrio no avanço do programa. Foi proposto e aceite pelos respectivos implicados que redigissem um A4 em que integrassem a respectiva parte do relatório que haviam preparado antes em articulação com a peça Gaspar de Peter Handke. O objectivo destes trabalhos na sua forma futura procura demonstrar que Peter Handke teve conhecimento do texto de Feuerbach mesmo quando a ele renunciou. Sem Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen talvez não tivesse havido tantas obras literárias e artísticas sobre Kaspar Hauser. Interessante é o facto de tanto Handke como Herzog desvalorizarem perante outros o conhecimento deste testemunho.

 

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

HERZOG, Werner 2014, Interviews, edited by Eric Ames, Mississippi: University Press, 24-28.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

https://we.tl/EJbq7l1JbH

 

DVD em visionamento:

Werner Herzog, O enigma de Kaspar Hauser, DVD, 1974, 1h:45m:05s