Metamorfoses do corpo no espaço - coreografar uma ópera

13 Dezembro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Preenchemos a nossa aula com o visionamento da coreografia de Sasha Waltz para a ópera de Henry Purcell e libreto de Nahum Tate Dido & Aeneas (2005). A estreia deste trabalho artístico teve lugar no Grand Théâtre do Luxemburgo.

Waltz abandonara a Schaubühne em 2004 (lugar de criação do tríptico que estudámos) e essa decisão tornou-a mais liberta para conceber outro tipo de coreografias e se desafiar por novos territórios. É nesse sentido que o facto de se tratar de uma ópera barroca de grande elaboração musical e vocal e profundamente estática como é Dido & Aeneas que desperta na coreógrafa a vontade de explorar a teatralidade da mesma. A sua opção consiste, por um lado, em aproveitar a liberdade de uma obra que não é dominada pela linguagem, como acontece com uma peça de teatro, e por outro lado, contornar o estatismo da representação operática fixada em valorizar a música e o canto esquecendo o trabalho com o corpo.

A grande aposta deste trabalho de Sasha Waltz acontece pela capacidade que o corpo adquire de contar uma história. E a história de Dido & Aeneas é contada de vários pontos de vista como terão tido ocasião de apreciar.

A título de exemplo apercebemo-nos do desenho de movimento que nos espanta no prólogo, quando os bailarinos nadam na transparência de uma piscina, ao mesmo tempo que cantores e bailarinos compõem a cena do varandim por cima dessa estrutura aquática. Esse movimento inicial é recuperado no final do 3º acto, durante o lamento pela separação de Dido e Aeneas com a formação de dois grupos, com bailarinos e cantores misturados, puxando ora Aeneas ora Dido e impedindo-os assim de ficarem juntos.

Outra liberdade da concepção de Waltz acontece na distribuição de papéis. Bailarinos e cantores, representando nas suas áreas artísticas desdobram-se em simultâneo expandindo deste modo o jogo entre o canto e o movimento. Deste modo a coreógrafa quebra o estatismo da ópera integrando os cantores no trabalho dos bailarinos. As cenas de coros são particularmente bem conseguidas. Os bailarinos não cantam mas os cantores aprendem a trabalhar o corpo o que só lhes faz bem.

Na cena do banquete (1º acto) a expressividade desse acontecimento adquire cor própria através da mascarada e dos seus tecidos e figurinos divertidos. Esse é um momento particular de fusão entre bailarinos e cantores e que pré-anuncia a tragédia iminente.

Chamo ainda a atenção para o trabalho de luz ao longo de toda a ópera que torna a parede de fundo, pela sua altura mas também pela funcionalidade das suas aberturas num elemento essencial para a leitura cénica, leitura cénica essa que liga bailarinos e cantores ao espaço recriando outras dinâmicas não previstas na ópera de Purcell. A utilização de alçapões é particularmente imaginativa. Deste modo se acentua um dos propósitos da coreógrafa em integrar o espaço, grandes espaços no trabalho com o corpo. Liberdade e precisão caracterizam a proposta estética de Waltz.

A dimensão excessiva desta ópera que parece transbordar do princípio ao fim a partir do erro dos protagonistas – desviarem-se do caminho anteriormente traçado e aceite por cada um deles – e que cegamente afasta qualquer alternativa de redenção é ainda para Waltz um desafio reforçado, na medida em que pela primeira vez há personagens com uma história antiga, um património cultural inalienável, e a que é preciso dar verosimilhança. O trabalho realizado seguiu uma dramaturgia de perguntas e respostas com as quais se partiu para os exercícios de improvisação. Talvez com esta coreografia Waltz se tenha aproximado metodologicamente de práticas teatrais que terá incorporado na sua concepção.

Um dos aspectos mais interessantes desta ópera coreografada por Waltz resulta dos tempos dos músicos e dos tempos dos bailarinos. Enquanto os bailarinos são precisos no cumprimento do seu desenho coreográfico, os cantores ao modo barroco estendem-se em sucessivas variações das suas partituras. Talvez aqui tenha nascido em termos práticos e artísticos o enleamento entre uns e outros.

A estrutura cénica desta ópera combina música, canto, movimento, luz, têxteis performativos, pele e respiração dentro de água e fora dela, cores com simbolismo. E tudo em nome de uma despedida.

 

DVD visionado:

WALTZ, Sasha & Guests, Dido & Aeneas, ARTHAUS MUSIK, 2005, 98 min. com legendas em inglês, alemão, francês, espanhol e italiano.