Nós com Bach no Gabão

10 Novembro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Bach e outros artistas

 

Tem a música com a matemática uma relação antiga e profunda que o pensamento ocidental equaciona desde o tempo de Pitágoras, o sábio que era capaz de associar os mistérios cosmogónicos com um padrão matemático, defendendo até que a harmonia das esferas estaria directa e intimamente relacionada com a música. Pitágoras foi tocador de lira (o instrumento essencial aos poetas), estudou aritmética e geometria, foi astrónomo e terá poetado em horas livres. Consta que Pitágoras poderia ter afirmado qualquer coisa como isto: «A geometria está presente na vibração das cordas.» «Há música no espaço entre as esferas.»

Esta linha de pensamento tem até hoje cultores indefectíveis e se há representante maior deste casamento ele é Johann Sebastian Bach. Pergunto-me: É preciso ser um grande matemático para ser apreciador da música de Bach?

As nossas duas últimas aulas existiram para demonstrar várias coisas, entre elas a vontade de negar a pergunta que agora coloco. Se é verdade que Bach foi um compositor que inovou extraordinariamente a música do seu tempo, privilegiando a ideia de expansão e síntese, a perfeição técnica, a devoção ao princípio de que a beleza está na ordem, que é aliás um dos paradigmas para os quais tende a própria criação do mundo no pensamento pitagórico, o facto é que nos deveremos alhear do lugar-comum de que só os músicos profissionais ou, neste caso, os matemáticos-músicos estão capacitados para fruir música tão complexa como a de Bach.

O compositor alemão desejou exprimir emoções através da sua arte que abrangia a execução de vários instrumentos (órgão e cravo em primeiro lugar) para além da maravilhosa composição polifónica. Bach também ensinava os seus alunos a decifrarem problemas no seio de fugas e cânones, de pequenas obras e de portentosos diálogos musicais com o divino e o profano. A música de Bach é profundo sentimento dentro de uma simetria. Ela transforma, transforma-se, e mantém-se ao mesmo tempo com uma identidade própria. Nela existe uma geometria, uma organização da forma que permite o reconhecimento de cada parte num todo e que progride até ao fim de cada partitura como articulação e assimilação de padrões repetidos e expandidos. Talvez esteja aqui o enigma de Bach.

Comprovámos que a música de Bach, no seu tempo estranha ou desconhecida a muitos ouvintes, é alvo de profícua revisitação até aos nossos dias: diversidade instrumental, recriação genológica (o caso de Jacques Loussier e o seu trio) mas curiosamente vivíssima através de um diálogo cultural inovador que associa instrumentos e vozes de cidadãos de Lambarena no Gabão (África ocidental) a artistas convidados como Naná Vasconcelos, percussionista brasileiro recentemente falecido, ou ao contratenor francês, natural de Marselha, Alain Aubin, aos músicos argentinos de tango e jazz Osvaldo Calo e Tomas Gubitch, ao arquivo de Bach em escolhas múltiplas. Os processos que informam estes encontros musicais na obra Lambarena – Bach to Africa configuram uma estética consequente e libertadora de representação musical e corpórea.

Apesar de não termos acesso a imagem visual do conteúdo de cada faixa do CD, não só somos solicitados a imaginar os movimentos executados pelos cantores e bailarinos durante as suas interpretações, como adquirimos passagem para um lugar que desconhecemos através da fusão da música de um compositor do séc. XVIII com as tradições musicais de um relativamente pequeno país africano. Somos ainda suscitados a aderir de forma natural e espontânea aos ritmos e cadências que nos invadem, quer eles sejam Bach, música tradicional do Gabão, através de línguas que desconhecemos (alemão, línguas nativas) e que exprimem formas de encontro com o sagrado e o profano. De modo mais lento ou frenético esquecemo-nos da densidade bachiana e dos medos anteriores à experiência artística em questão.

 

CD escutado e comentado:

Lambarena – Bach to Africa

Hänssler Edition Bachakademie: St. John Passion BWV 245; Suites for Solo BWV 1007-1012; Sonatas & Partitas for Solo Violin BWV 1001-1006

 

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