Numa segunda-feira de Pentecostes
13 Outubro 2016, 18:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
Um cada vez mais aprofundado conhecimento sobre Kaspar Hauser e a
sua progressiva mas por vezes contraditória capacidade de sociabilização
são-nos apresentados no Capítulo IV do livro-relato de Anselm Feuerbach. O
autor do relatório faz questão de descrever com minúcia partes do dia do jovem
Kaspar Hauser, salientando o seu estatuto de criança-adulto na aprendizagem
operada as mais das vezes por imitação e ludicismo no contacto com crianças.
(pp. 39-40) Através deste jogo afectivo e de integração Kaspar aprende a falar
por fases demonstrando lento progresso. (pp. 40-42).
O seu parceiro na peça de Peter Handke não tem essa sorte, sendo
até destituído de vontade própria, ao mesmo tempo que se vê multiplicado em
outros Gaspares, réplicas que de si fornecem uma caricatura desajeitada das
suas interacções. (pp. 64-75)
Ao contrário de Gaspar que é colocado num cenário desprovido de individualização,
a estranheza causada pela figura de Kaspar Hauser, o modo como se desloca ou
fica parado, o ritmo a que vai tentando conhecer o mundo são factores de
perturbação para os habitantes de Nuremberg que com ele se comovem e lhe
proporcionam ajuda.
De entre esses, alguns gostariam de o ver exposto numa feira de
raridades, lugar público de divertimento onde se exibem pessoas e animais
marcados pela sua diferença em relação à normalidade. (pp. 40-41, p. 42)
Sugere-se o visionamento de O
Homem Elefante de David Lynch.
Associado à frase: «Caspar was not only an object of deep
interest…» ou à qualificação da sua pessoa como «expressions of a half dumb
human animal…» (p. 45) tomamos consciência de que o tom do discurso autoral
pretende defender vários pontos de vista sobre Kaspar Hauser não sendo nunca
vinculativo de uma única posição.
O jurista Feuerbach mantém uma cobertura deste caso que abrange
diversas perspectivas do conhecimento (filosofia-ética, antropologia, biologia,
sociologia, linguagem, e finalmente nos últimos capítulos a questionação de
âmbito do direito penal).
A partir das pp. 59 e seguintes são-nos dadas a conhecer as
possibilidades de acusação a que estará sujeito o camponês-tutor que manteve
incomunicável durante anos a criança abandonada. Este novo elemento do
relatório não dispensa porém que a perspectiva da vítima (narrada pelo próprio
e escrita por outros) seja acautelada, i. e., que Kaspar veja a sua história ser
levada a tribunal para que se apure em que moldes se fará justiça.
Neste contexto apercebemo-nos como a natureza parece ser
questionada pelas transformações físicas e mentais que opera sobre os seres e
de que não lhe podem ser assacadas culpas. (pp. 47-59) Apenas são visíveis os
resultados. É, porém, também necessário que não seja esquecido o causador de
tantos males infligidos a um ser indefeso, através de acção sucessiva de uma
mente incapaz e inclemente (e não é a falta de cultura que pode servir de
argumento).
Apercebemo-nos do interesse de Feuerbach pela questão jurídica que
envolve este caso e de como a população de Nuremberg pode contribuir para o
renascimento de Kaspar Hauser. A cidade adquire ainda um valor simbólico e
religioso presente desde o início da narrativa: Kaspar chega numa segunda-feira
de Pentecostes e transforma-se assim numa figura crística num lugar de
renascimento.
O estudo de caso de Feuerbach ocorrido na cidade de Nuremberg
(daqui para a frente escreverei Nürnberg actualizando a grafia do nome) inspirou
muitas obras artísticas e literárias até aos nossos dias e este mérito ficou a
dever-se também a diversos factores contidos na sua escrita – qualidade literária,
sensibilização humanista e compaixão por um jovem indefeso e abandonado,
capacidade pedagógica de intervenção na comunidade em que estava inserido,
assunção da responsabilidade de ser tutor de Kaspar Hauser dedicando-lhe todo o
afecto.
A peça de Peter Handke precisou com certeza do relatório de Anselm
Feuerbach para o poder ignorar a seguir. O que terá conduzido o autor austríaco
a produzir uma obra dramática que coloca Gaspar no plano da alienação como
indivíduo?
Leituras recomendadas:
HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito
de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa:
Plátano Editora.
FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser
– An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all
communication with the world, from early childhood to about the age of
seventeen
Vídeo
de O Homem Elefante de David Lynch