O arquivo e o que com ele podemos fazer

8 Novembro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Bach e outros artistas

 

Iniciámos um núcleo investigativo e experimental dedicado a Johann Sebastian Bach (1685-1750) e a algumas das suas partituras. Escolhemos para audição múltipla a Toccata e Fuga em Ré menor BWV 565, escrita entre 1703 e 1707.

Nesta época Bach costumava procurar um dos seus mestres, Dietrich Buxtehude, para escutar a sua música. Quando isto acontecia, ele deslocava-se a pé por uma distância de cerca de 300 Km para com ele aprender a compor e a improvisar.

Esta obra para órgão do período juvenil de Bach é reveladora de um grande virtuosismo mas ao mesmo tempo parece ter a faculdade de se tornar atractiva para ouvintes leigos e menos familiarizados com a arte deste compositor do Barroco. A criação de temas (como na literatura ou na pintura) inscreve na obra uma estrutura esquelética que a irá suportar até ao fim, sempre com variações e expansões de tema, criando um desenho contrapontístico de grande finura. Argumento e contra-argumento dialogam com vivacidade e espraiam-se na tessitura musical desencadeando grande dinamismo e movimento na expressão musical. Sentimos por vezes que somos sugados por um vortex que nos engole. A música de Bach tem esta genialidade que a universaliza.

Pelas suas características composicionais únicas Bach não pode ser imitado mas pode ser recriado. Muitos artistas têm-se ocupado desta possibilidade oferecendo à memória da arte do músico alemão um tributo de reconhecimento e admiração.

Partindo de um arquivo aberto têm-se multiplicado as iniciativas artísticas em torno da obra de Bach.

A nossa opção de exemplificar este movimento estético a partir de Bach aparece-nos sob a perspectiva de mudança de instrumento. Para a partitura que escolhemos e que foi escrita para órgão aparecem intérpretes de órgão (Ton Koopman, Kay Johannsen e já antes Karl Richter), harpa (Marcelina Dabec), acordeão (Delmo Luiz Tartarotti, que não colheu os vossos favores). Outras opções serão ainda possíveis. O Youtube oferece propostas para todos os gostos.

O que procuramos nós na observação destes intérpretes? Como pode uma composição tão elaborada despertar emoções em ouvintes eruditos e ao mesmo tempo receber a atenção de pessoas simples ou não educadas musicalmente que com ela se encantam? A música de Bach faz dançar os corpos e cria neles elevação.

Começámos por escutar a Toccata e Fuga sem imagem visual. Passámos a seguir para a audição da partitura com visionamento do intérprete. Esse visionamento permitiu perceber como cada músico se relacionava com o instrumento de execução e como lhe transmitia também a sua emoção, até a musculatura, como foi o caso da pequena harpista polaca. Que juízos de valor fizemos acerca dos exemplos observados?

A arte de Bach toca-se e canta-se em igrejas e em palcos, em pequenos espaços, ao ar livre e por todo o planeta. A partir desta experiência passámos a ser capazes de integrar o ilimitado número dos escutadores de Bach, através de sucessivos visionamentos e audições, imaginando ou não a partitura, uma partitura desenhada em pauta mas talvez também dentro de nós. Tornámo-nos parte do arquivo original do compositor na qualidade de receptores de obra artística.

O extraordinário alcance da música de Bach tem, aliás, permitido que ela ganhe influência junto da cultura pop. É o caso, por exemplo, dos dois músicos anónimos que tocam com os pés a mesma partitura num piano gigante dentro de uma loja de brinquedos num centro comercial nos EUA.

Orientámos a nossa visita a Bach através de um exemplo maior da arte arquivística transeuropeia. Fomos até África em busca de dois homenageados: Bach e Albert Schweitzer (1875-1965). O médico alemão, nascido numa região que hoje pertence à França (Alsácia), era muito dotado para a música que estudou através do órgão. Bach foi sempre o compositor da sua eleição, dedicando-lhe obra por ele inspirada. Filantropo por natureza, Albert Schweitzer consagrou toda a sua vida profissional como médico a missões por terras africanas. Tendo passado pelo Mali e Senegal, estabeleceu-se com a sua mulher Hélène Bresslau junto ao rio Ogooué em Lambarena no Gabão. Aí costumava ouvir as obras de Bach num gira-discos colocado no pátio da casa onde vivia. Os nativos da região aprenderam com Schweitzer a apreciar uma música que não conheciam e que integraram nas suas próprias tradições musicais.

Escutámos algumas faixas de um CD de tributo a Bach, Schweitzer e aos músicos e cantores do Gabão. Voltaremos ainda a Lambarena. Aflorámos Bach no Brasil com os irresistíveis ritmos do samba.