Onde acaba o ser-se selvagem?

3 Novembro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Saída de Campo à Igreja de São Roque para assistirmos ao espectáculo de música e canto mariano pelo Concerto Atlântico, dirigido por Pedro Caldeira Cabral. (28 de Outubro, 21:00 – 22:30).

Esta saída cultural procurou familiarizar os alunos com um espaço representativo com características específicas maioritariamente apropriadas à celebração religiosa. No entanto, o programa escolhido e apresentado, dedicado à para-liturgia e à devoção a Santa Maria, incluía peças musicais e cantadas que integraram autos de Gil Vicente e de Juan del Encina, poeta espanhol do séc. XVI.

Daremos atenção aos diários de bordo daqueles que estiveram presentes neste acontecimento após realização da próxima saída de campo.

 

Concluímos a unidade primeira do programa dedicada à peça Gaspar de Peter Handke que absorveu ao longo do seu percurso diversas outras obras ou partes de obra que com ela mantiveram conversação. Recordamos o relato para-judicial de Anselm Feuerbach, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen, o filme de Werner Herzog O enigma de Kaspar Hauser, algumas das proposições de Ludwig Wittgenstein retiradas do seu Tratado Lógico-Filosófico.

Com a projecção do filme de François Truffaut L’enfant sauvage (O menino selvagem) foi possível acompanharmos a reconfiguração artística da história de Victor de Aveyron, uma criança que no séc. XVIII é encontrada casualmente a viver no meio de uma floresta junto à localidade de Aveyron, em Saint-Sernin sur Rance, no sul de França.

Para além da realização do filme, Truffaut desempenha nesta película o papel de Jean Marc Gaspard Itard (1774-1838), o médico e pedagogo que estuda o comportamento do Victor histórico em conjunto com Philippe Pinel (1745-1826), um dos primeiros clínicos na área da psiquiatria do seu tempo a defender que a doença mental devia ser tratada, atendendo a todas as necessidades dos doentes e não rejeitando-os e ostracizando-os.

O filme de Truffaut não privilegia o contacto experimental e documental entre colegas (Itard-Pinel) embora haja referências a essa relação científica. Aos 59m e 36s, Itard menciona, ainda céptico, o apoio especializado de Pinel como argumento para continuar a poder pagar à governanta, Madame Guérin, o seu trabalho com Victor: «O cidadão Pinel persuadiu a Administração de que as crianças retardadas que ele observou em Bicêtre têm traços em comum com o Menino Selvagem de Aveyron, e que, por isso, Victor não é capaz de ser sociável e nada há a esperar da continuação da sua educação.» Pinel é neste caso a voz da autoridade científica e Itard acaba por poder continuar a estudar o comportamento do seu pupilo. Itard mantém um diário de observação dos comportamentos e reacções de Victor. Deste ponto de vista, a personagem Itard no filme adquire uma metodologia inspirada nas opções do médico e pedagogo Jean Marc Gaspard Itard. A componente documental é avivada no filme através deste procedimento.

Se pensarmos em Gaspar e em Victor, encontramos substanciais diferenças no processo de sociabilização e aprendizagem. No entanto, Itard sujeita Victor a experiências dolorosas, em particular, no campo das emoções. Significa isto que, apesar de haver para Victor um tratamento humanizado e de claro afecto da governanta e de Itard para com a criança, e de existir todo um programa progressivo de captação e interacção com o espaço, e com os objectos nele presentes, na aquisição de linguagem (os primeiros sons, o nome, a identificação de objectos, suas imagens visuais e correspondências), o menino de Aveyron nunca perde a sua ligação à vida na natureza. A esta opõem-se as leis da civilização, que regem o seu viver nos arredores de Paris, nos finais do séc. XVIII. A brutalidade do mundo natural exerce, apesar disso, um fascínio permanente sobre Victor que usa as janelas e as pequenas saídas em passeio como forma de equilíbrio transitivo entre o fechamento do espaço interior e o mundo exterior. A criança de Aveyron adquire a capacidade de manter relações sociais com os seus mais próximos num gesto de reconhecer neles a sua família, sem perder a ligação estreita ao mundo natural, deixando, porém, de viver como um selvagem.

 

Este filme, tal como a peça de Handke e o filme de Herzog, baseia-se em factos reais.

 

 

Leitura recomendada

http://webpages.fc.ul.pt/~ommartins/cinema/dossier/meninoselvagem.pdf

 

Filem visionado:

TRUFFAUT, François, L’ Enfant Sauvage, O Menino Selvagem 1970, 1h 21m 21s