Antal, Hadjinicolaou, Adorno: a Teoria da Arte e o Marxismo.

18 Março 2021, 15:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A grande novidade que traz a Sociologia da Arte de pendor marxista para a análise das obras de arte remete inevitavelmente para a obra de Frederick Antal (Budapest, 1887-Londres, 1954) e o seu extraordinário livro  Florentine Painting and its Social Background (1948), primeiro ensaio verdadeiramente importante na perspectiva do estudo e caracterização do mercado das artes na Florença entre o Gótico final e o Renascimento, à luz do acto de encomenda e da ideologia de classe dos artistas, mecenas e agentes encomendantes. Em 1948, saíu em Londres o livro  Florentine Painting and its Social Background: The Bourgeois Republic before Cosimo de’ Medici’s Advent to Power: XIV and Early XV Centuries. É na análise do contexto socio-económico, cultural, político e filosófico que reside uma das razões de ser das cíclicas ondas de subversão em que os bons artistas se movem. Segundo esse célebre estudo de Antal é desse modo que se pode justificar a radical viragem de gosto operada na arte em Florença no início do século XV à luz das mudanças sociais e das subsequentes alterações económicas e mentais operadas na República burguesa que imperava. Aí traça, à luz de novas estruturas de pensamento, o percurso da cultura, da religião e das artes na Toscana, entre Giotto e o Tardo-gótico, e Masaccio, Brunelleschi e o irromper do Renascimento. Tendo estudado em Berlim com Heinrich Wolfflin, e com doutoramento em Viena (com Max Dvórak), Antal foi membro do grupo Sonntagskreis, formado em Budapeste em 1915 (que integrou Gvorgy Lukács), e teve de fugir do país quando o Terror Branco derrubou a frágil república Socialista Húngara. Passa a Itália, onde trabalha, e em 1923 muda-se para Berlim, de onde foge com a chegada ao poder dos nazis, por ser judeu comunista, refugiando-se em Londres até à morte.  Os seus estudos usam o materialismo dialéctico no campo artístico, defendendo que «o estilo é primariamente uma expressão de ideologia, crença política e testemunho de classe social». É por isso que as críticas à sua obra incidem na forte determinação muito forte do estilo artístico pelas construções sociais, negligenciando a subjetividade das obras em favor de uma identificação destas com a classe social do artista e/ou do seu patrocinador.Antal, como eminente historiador da arte, forneceu-nos neste livro um relato pleno da arte florentina no século XIV e início do XV, bem como a exploração estimulante de questões sobre o conteúdo social da arte, esboçando um retrato de Florença num tempo assaz produtivo -- condições sócio-económicas, princípios religiosos, vida académica, controvérsias intelectuais, advento de um mercado burguês e capitalista. Assim explica a essência das obras de Gentile da Fabriano (por exemplo) à luz das novas circunstâncias ideológicas de mercado.

NICOS HADJINICOLAOU nasce em  1938 em Salonica. Historiador de arte, seguidor da teoria e metodologia marxista, é professor no El Greco Centre -- Institute of Mediterranean Studies, Rethymnon, Creta. Estudou nas Universiidades de Berlin, Freiberg, Munich e Paris, foi aluno de Pierre Francastel  (École Pratique des Hautes Études), Lucien Goldmann (1913-1970) e Pierre Vilar (1906-2003). A tese La lutte des classes en France dans la production d'images de l'année 1830 inspirará em 1973 o famoso Histoire de l'art et lutte des classes. Reflecte-se sobre questões de teorização e metodologia da disciplina da História da Arte a partir do conceito de ideologia imagética proposto pelas teses marxistas do historiador de arte grego Nicos Hadjinicolaou (n. 1938), analisando-se a sua utilidade operativa no caso da História de Arte, portuguesa e não só, e as vantagens (e também os limites) do seu uso prático  Aí analisa a oportunidade crítica da Sociologia marxista e, também, os perigos e redutorismos do uso do «marxismo vulgar» num processo analítico que minore a ênfase no olhar para as obras de arte propriamente ditas e valorize de modo absurdo o contexto económico que as envolve. Já em Rembrandt, que pinta em 1635 o tema do Rapto de Ganimedes para um mecenas calvinista holandês, os matizes eróticos clássicos sofrem uma mudança radical (e mordaz): a águia-Júpiter rapta um menino (quase um querubim) que urina e treme de medo )Museu de Dresden)…A pintura critica a homossexualidade de modo explícito.  O historiador de arte marxista Nicos Hadjinicolaou analisou o quadro sob essa perspectiva da ‘ideologia imagética’, à luz da ideologia do encomendante.

ADORNO, Verdenor Wiesehngrund, nasceu em Frankfurt, filho de Oscar Alexander Wiesengrund (1870-1941), judeu, negociante alemão de vinhos, convertido ao protestantismo, e de Maria Barbara Calvelli-Adorno, cantora lírica italiana e católica. Theodor passou a abreviar o último nome, utilizando o nome de solteira da mãe como sobrenome (Theodor W. Adorno, ou Theodor Adorno). Estudou música com a meia-irmã por parte de mãe, Agathe. Frequentou o Kaiser-Wilhelm-Gymnasium, onde se destacou como estudante. Ainda durante a adolescência, teve aulas de composição com Bernhard Sekles, leu Immanuel Kant com seu amigo Siegfried Kracauer, especialista em Sociologgia do Conhecimento. Mais tarde, diria que deveu mais a estas leituras do que a qualquer de seus professores universitários. Na Universidade de Frankfurt (actual Universidade Johann Wolfgang Goethe) estudou Filosofia, Estética, Musicologia, Psicologia e Sociologia. Completou rapidamente os estudos, defendendo em 1924 a tese sobre Edmund Husserl (A transcendência do objecto e do noemático na fenomenologia de Husserl), orientado pelo professor Hans Cornelius. Diz Adorno que essa tese foi muito influenciada por seu orientador. No fim da graduação conhece já dois de seus principais parceiros intelectuais, Max Horkheimer e Walter Benjamin Entre 1921 e 1923 publicou cerca de cem artigos sobre crítica e estética musical e conhece Vilma, com quem se casaria. Sua carreira filosófica começa em 1933 com a publicação da tese sobre Lierkegaard. Em 1925 conhece um dos filósofos que mais o influenciaram, o jovem Lukács que, sendo crítico de Kierkegaard, decepcionará o jovem Adorno e o leva a renegar a sua obra de juventude (A Teoria do Romance, por completo, e a História e Consciência de Classe, em parte). Essas obras são pilares do pensamento de Adorno, que travará polémicas com Lukács por seus "desvios" de pensamento em prol do partido.

A admissão do irracional (segundo ele, pensar o irracional é pensar as categorias tradicionais que supõem uma reafirmação das estruturas sociais injustas e irracionais da sociedade) leva Adorno a valorizar a ARTE, sobretudo a de vanguarda, já por si problemática – a música atonal de Arnold Schonberg, por exemplo -, porque supõe independência total em relação ao que representa a razão instrumental. Na arte, Adorno vê um reflexo mediado do mundo real. Da crítica da Razão, Adorno chega também à crítica da linguagem. Para ele, toda linguagem conceptual promove uma forma de violência cognitiva, pois nunca é possível conformar totalmente às palavras as objetos e sentimentos tais como eles são (contradição do "não-idêntico"). Como alternativa e complemento à linguagem conceitual, valoriza a linguagem artística, que consegue expressar irracionalidades, contradições e espanto dos sujeitos, sem as violentar por meio de conceitos. Ao erigir os seus próprios significados, cada obra de arte cria o seu mundo interno (ser-para-si), sem necessidade de se espelhar em objetos externos e incorrer em violência cognitiva. Para Adorno, a postura optimista de Benjamin no que diz respeito à função revolucionária do Cinema desconsidera certos elementos fundamentais, que desviam a sua argumentação para conclusões ingénuas. Embora devendo a maior parte de suas reflexões a Benjamin, Adorno procura mostrar a falta de sustentação dessas teses, na medida em que não trazem à luz o antagonismo que reside no próprio interior do conceito de “técnica”. Segundo Adorno, passou despercebido a Benjamin que a técnica define-se em dois níveis: “enquanto qualquer coisa determinada intra-esteticamente” e “como desenvolvimento exterior às obras de arte”. O conceito de técnica não deve ser pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem histórica e pode desaparecer. Ao visar à produção em série e à homogeneização, a técnica de reprodução sacrifica a distinção entre o carácter da própria obra de arte e do sistema social. Por conseguinte, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre, segundo Adorno, graças, em grande parte, ao fato de que as circunstâncias que favorecem tal poder são arquitetadas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Assim, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do próprio domínio. Essas considerações evidenciariam que, não só o cinema, como também a rádio, não devem ser tomados como arte... “O facto de não serem mais que negócios – escreve Adorno – basta-lhes como ideologia”. Enquanto negócios, os seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. Tal exploração Adorno chama de “indústria cultural”.

O termo foi empregue pela primeira vez em 1947, quando da publicação da Dialéctica do Iluminismo, de Horkheimer e Adorno. Numa série de conferências de rádio, em 1962, explicou que a expressão “indústria cultural” visa substituir “cultura de massas”, pois esta induz ao engodo que satisfaz os interesses dos detentores dos veículos de comunicação de massa. Os defensores da expressão “cultura de massa” querem dar a entender que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas. Para Adorno, que diverge frontalmente dessa interpretação, a indústria cultural, ao aspirar à integração vertical de seus consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, às condições que representam os seus interesses. A indústria cultural transporta todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, o de portadora da ideologia dominante, que outorga sentido a todo o sistema. Adorno fala acerca da ideologia capitalista, e sua cúmplice, a indústria cultural contribui eficazmente para falsificar as relações entre os homens, bem como dos homens com a natureza, de tal forma que o resultado final constitui uma espécie de anti-iluminismo. Considera Adorno que o iluminismo tem como a finalidade libertar os homens do medo, tornando-os senhores e libertando o mundo da magia e do mito, e admitindo que essa finalidade pode ser atingida por meio da ciência e da tecnologia, tudo levaria a crer que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a ciência e a técnica. Ao invés disso, liberto do medo mágico, o homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso da dominação técnica. Esse progresso transformou-se em poderoso instrumento utilizado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento da consciência das massas. A indústria cultural nas palavras do próprio Adorno “impede a formação de indivíduos autónomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”. O ócio do homem é utilizado pela indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de tal modo que, sob o capitalismo, na sua forma mais avançada, a diversão e o lazer tornam-se um prolongamento do trabalho. Para Adorno, a diversão é buscada pelos que desejam esquivar-se ao processo de trabalho mecanizado para colocar-se, novamente, em condições de se submeterem a ele. A mecanização conquistou tamanho poder sobre o homem, durante o tempo livre, e sobre a sua felicidade, determinando tão completamente a fabricação dos produtos para distração, que o homem não tem acesso senão a cópias e reproduções do seu próprio trabalho. O suposto conteúdo não é mais que pálida fachada: o que de facto lhe é dado é a sucessão automática de operações reguladas. Em suma, “só se pode escapar ao processo de trabalho na fábrica e na oficina, adequando a ele o ócio.

A Filosofia de Theodor Adorno, considerada uma das mais complexas do século XX, fundamenta-se na perspectiva da Dialéctica. Uma das suas importantes obras, a Dialética do Esclarecimento, em colaboração com Max Horkheimer durante a Segunda Grande Guerra, é uma crítica da razão instrumental, conceito fundamental deste último filósofo (ou uma crítica, fundada em uma interpretação negativa do Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica cultural do sistema capitalista, que Adorno chama de indústria cultural"). Também é uma crítica à sociedade de mercado que não persegue outro fim que não o do progresso técnico. A actual civilização técnica, surgida do espírito do Iluminismo e do seu conceito de razão, não representa mais que um domínio racional sobre a natureza, que implica, ao mesmo tempo, um domínio (irracional) sobre o homem; os diferentes fenómenos de barbárie moderna (fascismo e nazismo) não seriam outra coisa que as piores manifestações desta atitude autoritária de domínio sobre o outro, e neste caso Adorno recorrerá a outro filósofo alemão, Nietzche. Na Dialéctica Negativa, Adorno intenta mostrar o caminho de uma reforma da razão em si mesma, com o fim de libertá-la deste lastro de domínio autoritário sobre as coisas e os homens, lastro que ela carrega desde a razão iluminista. Opõe-se à filosofia dialéctica inspirada em Hegel, que reduz ao princípio da identidade ou a sistema todas as coisas através do pensamento, superando suas contradições (crítica também do Positivismo Lógico, que deseja assenhorar-se da natureza por intermédio do conhecimento científico), o método dialéctico da não-identidade", de respeitar a negação, as contradições, o diferente, o dissonante, o que chama também de inexpressável: o respeito ao objecto, enfim, e a recusa do pensamento sistemático. A razão só deixa de ser dominante se aceita a dualidade de sujeito e objecto, interrogando e interrogando-se sempre o sujeito diante do objecto, sem saber sequer se pode chegar a compreendê-lo por inteiro.