Conceito de Micro-História da Arte.

9 Fevereiro 2021, 14:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A MICRO-HISTÓRIA DA ARTE - A LEITURA MICRO-ARTÍSTICA E A EFICÁCIA TEÓRICO-METODOLÓGICA DA NOSSA DISCIPLINA.

O uso do conceito de Micro-História da Arte na análise da produção artística, ao iluminar ‘zonas’ de periferismo, i. e., fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, obriga a ver o tecido artístico – autores, oficinas, clientes, programas, públicos, e fruidores – numa ampla perspetiva comparatista. É esse ponto de vista que deixa perceber as linhas de ruptura e continuidade, o sopro de originalidade, as linhas de vanguarda e anacronismo, conformismos, e demais valências envolvidas – seja qual for a situação analisada ou o peso relativo dos artistas analisados. A História da Arte portuguesa, tão rica de fenómenos de descontinuidade e permanência dadas as relações de miscigenação lusófonas, pode tirar partido deste conceito (que não se confunde com meras listagens de artistas, artífices e obras regionais, mas com um comparatismo alargado que ilumine as situações em apreço). É por isso que a Micro-História da Arte, ao devolver uma consciência plural aos fenómenos de criação e recepção artística, vem justificar a prática de um olhar microscópico sem arrogância nem preconceitos. 

É preciso, pois, revalorizar e promover, no campo da teoria e prática dos historiadores de arte, a aplicação do conceito de Micro-História, utilizado pela primeira vez por Enrico Castelnuovo (Roma, n. 1929) e Carlo Ginzburg (Turim, n. 1939) na análise do facto artístico segundo uma conjuntura globalizante e uma visão trans-contextual e comparatista mais alargada (História Cultural, Geografia, Antropologia, Sociologia da Arte, Iconologia). O uso por parte dos historiadores de arte deste conceito de análise microscópica das artes ilumina melhor a produção que emana em situações de periferismo, fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, e impõe um olhar integrado sobre o tecido artístico – artista, oficina, clientes, programas artísticos, públicos, e fruidores no seu conjunto – numa mais ampla perspectiva, que deixa perceber as linhas de ruptura e de continuidade, o sopro original e os anacronismos, o vanguardismo e os conformismos, independentemente do tempo e do espaço em que se situe a conjuntura artística em apreço. Reavalia-se assim, no campo da teoria e da prática doméstica da nossa disciplina, a grande mais-valia que decorre do uso do conceito de Micro-História, utilizado por Enrico Castelnuovo e por Carlo Ginzburg na análise do facto artístico (no caso da arte italiana) à luz do estudo de conjunturas globalizantes e uma visão trans-contextual e comparatista mais alargada.

O enfoque dado às situações específicas do tecido social, em contraponto a uma historiografia assente na «narrativa grandiosa» (quase sempre alheada de qualquer dimensão antropológica), confere novas valências à perspectiva micro-histórica já que, «ao atentar nos rostos individuais esquecidos no meio da multidão» (para citar a imagem utilizada em O Queijo e os Vermes), este método permite revalorizar, num mesmo tempo, as suas produções na esfera das artes, conferindo-lhes uma importância que a falta de enfoque havia totalmente desmemorizado. Estamos dentro das possibilidades de uma leitura microscópica aplicada ao campo das artes, i. e., uma História vista de baixo (utilizando o conceito marxista de António Gramsci de «classes subalternas»), para melhor se alcançar o âmbito da circularidade cultural percepcionada por Ginzburg e Castelnuovo. Correndo sempre o risco de esta opção de pesquisa, baseada na complementaridade de testemunhos artísticos sobreviventes, ser algo de fragmentário (até pela aceitação implícita do carácter conjectural dos dados recolhidos), é inegável que uma análise muito alargada e transversal dos comportamentos colectivos num dado momento histórico permite observar com outra objectividade o que se passou e passa no campo da produção das artes nas suas plurais instâncias, na dialéctica entre reaccionarismo e inovação -- o que só por si justifica e recomenda a prática da Micro-História da Arte.

O objecto da História da Arte, como parece estar estabelecido, é o de poder reabrir diálogos com as obras de arte, interrompidos por circunstâncias e razões de gosto, moda, etc, ao alterarem um tecido social e as estratégias de comunicação da obra (ideológicas, materiais,  religiosas, sócio-políticas, iconográficas, iconológicas, trans-contextuais, etc), o que impõe novas formas de as saber avaliar em termos de fascínio perene. O olhar micro-artístico, ao pôr tónica no estudo integrado da História cultural e da Geografia social, com enfoque na iconologia, contribui assim para um alargamento do comparatismo na nossa prática, deixando ver as obras de arte sem preconceitos académicos ou valorizações subjectivas.

Como demonstraram Carlo Ginsburg e Enrico Castelnuovo em Centro e periferia (1979), tanto a resistência como o atraso coexistem na periferia com graus e significados distintos, já que, se este último reflecte uma postura subordinada, passiva, aquela mostra, pelo contrário, uma atitude activa, interligada a uma certa noção consistente de resistência. No campo artístico nacional, verifica-se como o mercado das artes esteve sempre apto a reelaborar contraposições e alternativas ao estímulo que do «pólo central» se ofereceu, resistindo a modelos de novidade não só porque os recursos necessários para os gerar pareciam inatingíveis mas também porque a «periferia» possui reservas de identidade que crê suficientemente atractivas para que certas soluções continuem a prevalecer. 

    Recorrendo na aula a alguns «estudos de caso» no campo da arquitectura, escultura e pintura portuguesa do Renascimento, do Maneirismo e do Barroco, analisam-se aqui várias alegorizações da arte da Pintura e algumas manifestações de vanguarda, de continuidade e de reelaboração, com exemplos de obras entre Lisboa, Viseu, Évora, Santarém e alguns ‘focos’ regionais, que abrem pistas para um estudo globalizante das várias situações de ‘centro relativo’, de ‘periferismo passivo e de ‘periferismo activo’.  Sem se perder de vista o postulado de Pierre Francastel ao recomendar como ofício primeiro da História da Arte ‘je propose qu’on cherche’ -- que foi, e é, lema de toda a produção crítica de José-Augusto França, o maior e mais internacional dos historiadores de arte portugueses --, a micro-história da arte coloca o objecto de análise artística num plano superior de exigência, uma questão permanente.



BIBL.:

Carlo Ginzburg e Enrico Castelnuovo, «Centro e periferia», in Storia dell’arte italiano, Einaudi, Turim, 1979 (trad. portuguesa, Carlo Ginzburg, A Micro-História e outros ensaios, Difel, Lisboa, 1989).

Carlo Ginzburg, Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del '500, Milano, Einaudi, 1976 (trad. portuguesa: O Queijo e os Vermes, Lisboa, Companhia das Letras, 2007).

Peter Burke, (trad. brasileira: O que é História Cultural ?, Rio de Janeiro, ed. Zahar, 2005, pp. 60-61).