Florença e Bagdad, de Hans Belting.

18 Fevereiro 2021, 15:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O livro 'Florença e Bagdad' de Hans Belting. (12/13)

Na sua obra mais recente, Hans Belting desenvolve um confronto entre as atitudes perante a imagem nos séculos XV e XVI entre Constantinopla, capital otomana, e o Renascimento cristão, e não se contenta em explicar a atitude crítica do Islão face às imagens em nome do interdito religioso e do combate à idolatria, mas fazendo intervir as especificidades estéticas, sociais e científicas dessa cultura, em oposição à cultura do Ocidente, através de uma fascinante interpretação, que abre portas aos estudos integrados de História da Arte. O ensaio é especialmente  inovador: centraliza-se nas realidades de Florença e Bagdad, entabula um diálogo/confronto entre as culturas cristã e árabe, e põe em questão o papel assumido pelos códigos imagéticos de ambas. Constatando que o olhar ocidental nasceu no Renascimento florentino com a perspectiva científica e o realismo ao natural, e abriu um novo género de imagens exportadas pelo mundo, observa quão distinto é o mesmo olhar no mundo islâmico e o modo como esse olhar se exprime no campo artístico. Saído em alemão em 2008 e muito traduzido, o livro de  Belting retoma a invenção da perspectiva e suas consequências na arte ocidental a partir do Renascimento. Mostra um grau surpreendente de envolvimento com a arte e a cultura do Oriente, território que, para a maioria dos ocidentais, é literal e metaforicamente estrangeiro. Belting está ciente das armadilhas que a H. Arte  europeia enfrenta nesse desafio. Observa que um ramo da ciência árabe buscava combinar os campos da Física e da Matemática, e vai criar uma teoria da visão não-pictórica baseada na abstracção geométrica. Concebida pelo polímata Abu Ali al-Hasan Ibn al-Haytham (965 a 1040), ou Alhazen,  exposta em  Kitāb al-Manāzir (Livro de Óptica). Tal teoria assenta na noção de recepção visual / intromissão: os raios de luz irradiam a partir de pontos na superfície de um objecto, convergindo no olho como uma forma ( sura ) –na, inversão da teoria clássica de extromissão que afirma que os raios emergem a partir do olho. Alhazen também abordou o que chamou de  khayāl, variabilidade da imagem do objeto de acordo com as condições de luz, distância, ângulo de visão etc, e a relação entre as qualidades de um objeto visível e a sua representação mental, função que denominou  ma 'ānī .  Belting não só explica essa atitude crítica do Islão face às imagens em nome do interdito religioso e o combate à idolatria, mas destaca as especificidades estéticas, sociais e científicas dessa cultura, opondo-a à do Ocidente, numa interpretação fascinante que muito interessa aos historiadores de arte.  Não esquece os momentos de contacto e partilha, por exemplo no contexto da viagem a Istambul do pintor veneziano Gentile Bellini para retratar o Grão Turco Mehmet II e a oferta que outro Sultão faz a Roma, em 1492, ao devolver ao Papa Inocêncio VIII certas relíquias cristãs. 

A recepção ocidental do Livro da Ótica, conhecido na Europa pelo título latino de Perspectiva , catalisou o surgimento de uma teoria pictórica que fez do olho humano o ponto central de toda percepção e permitiu que os artistas reproduzissem esse olhar. A interpretação errónea da tradução de Alhazen sugeriu aos leitores de latim que a teoria da visão também deve envolver um estudo de figuras. Ao escrever o Perspectiva, o matemático Biagio Pelacani da Parma (m. 1416) abriu o caminho para a perspectiva linear, colocando o espaço vazio como entidade geométrica em si, volume mensurável (inovação necessária para se chegar ao conceito da imago). Como Martin Jay e David Summers, observaram, tais mudanças coincidem com uma nova atitude em relação à imagem caracterizada por crescente aceitação da representação naturalista. Para explicá-lo, Belting resume o debate que ocorreu nos sécs. XIII e XIV, em torno da visão fisiológica divina versus humana e sobre se a percepção sensorial óptica, deve ser tomada como fonte confiável de saber. Alguém poderia equiparar a coisa vista a olho com a verdadeira forma dessa coisa?  Segundo Belting, o Oriente não experimentou a mesma mudança r permaneceu desconfiado da natureza enganosa da visão humana: a arte continuou informada pela matemática e a favor da abstração. O conceito de engano da visão enfatizado no Livro da Ótica foi reforçado pela crença muçulmana de que, como seres criados, os  homens não se poderiam tornar criadores, pois usurpariam a eminência criativa de Deus. A cultura árabe compensava a ausência de "figuras no sentido ocidental" com "formas simbólicas" como os muqarnas , sistema de arqueamento arquitetónico baseado no arranjo radial de células de concavidades e perfis e mashrabiyya, grades de madeira para cobrir janelas e outras aberturas. A geometria tornou-se a forma simbólica por ser  sujeito de representação, em oposição à representação no Ocidente. Foi uma "tradução da matemática para a estética". Belting expõe essas ideias ao longo de seus quatro primeiros capítulos, e concentra-se nas teorias da perspectiva de Filippo Brunelleschi e Leon Battista Alberti, discute as obras de uma série de artistas e arquitectos, incluindo Lorenzo Ghiberti, Sebastiano Serlio, Leonardo da Vinci e Jan van Eyck.

Belting faz o ponto de vista político sensível de que o objectivo da sua comparação Leste-Oeste não é elevar uma cultura sobre a outra, "reforçar um ponto de vista colonial" ou afirmar a perspectiva como norma., que"rotule tudo como desvio".  E repete:  os estudos comparativos são raros "talvez por causa dos riscos envolvidos em cruzar as fronteiras de disciplinas nas quais os especialistas de ambos os lados tendem a se tornar defensivos". Esses sentimentos aparecem como esforços para inocular o livro contra críticas. Apesar do escrúpulo intelectual declarado, Oriente e Ocidente não recebem considerações igualmente matizadas de Belting, dizem alguns críticos, e a caracterização da arte islâmica sucumbe a uma visão ainda difundida, rastreável à erudição orientalista do século XIX, que  diz que a posição do Islão em relação à imagem promove o aniconismo, só imagens não-opticamente naturalistas, e impulsiona a ascensão da caligrafia e da abstração baseada em geometrias bem-sucedidas porque complementares à figuração como possibilidade desenfreada. . Tais ideias e sua cadeia causal podem parecer senso comum, mas ainda são apenas especulações.

David J. Roxburgh (Professor de História da Arte Islâmica, Univ. Harvard) critica em Florença e Bagdad  este confronto das construções prospectivas e não-prospectivas da “imagem” como a janela com visualizador estático colocado diante dela no primeiro caso e como uma composição multifocal que combina perspectivas de visualização no segundo. Ora Necipoğlu descreveu a construção geométrica não-prospectiva como espaço isotrópico infinito sem ponto de vista fixo. A fonte de Belting é Hamid Naficy, que estuda o véu no Islão contemporâneo e a miniatura persa para descrever "a evitada aparência“, o hábito de dividir o espaço em células herméticas. A visão trans-histórica de Naficy e Belting coincidem: o mashrabiyya  domestica o olhar e purifica-o de imagens externas sensuais através da geometria estrita da luz interior“. As duas visões de mundo são assim reduzidas ao sujeito activo que olha no Ocidente e ao sujeito passivo que recebe no Oriente. São comparações interculturais sugestivas mas que se limitam à recepção de Alhazen no Ocidente e o que aconteceu na arte depois disso. Fica a sensação de que, se se trata da erradicação de estereótipos e da elucidação de práticas culturais incompreendidas, a questão da perícia talvez seja mais saliente do que nunca...

Em 1492, o Grão Turco Bajazet II mandou a Inocêncio VIII a relíquia da Santa Lança de São Longuinho, com a qual o flanco de Cristo foi perfurado. Foi representada no seu túmulo em bronze, c. 1498, por Antonio Pollaiuolo (1431-1498) na Basílica de São Pedro. O Sultão mandou também ao Papa o «verdadeiro retrato de Cristo» de perfil, aos modos da retratística otomana do tempo. Esse «retrato»  inspirou as reinterpretações humanísticas do «perfil de Cristo . O veneziano Gentile Bellini pintara c. 1479 o retrato do Sultão Mehmet II (National Gallery, Londres), no âmbito do acordo de paz da República Veneziana com o Grão Turco. Assume-se importante catalisador da influência oriental na arte europeia – e abertura fundamental para a presença da cultura oriental no ocidente. Permiti-me aduzir do meu estudo recente sobre o Calendário de Miranda alguns dados sobre a difusão portuguesa do verdadeiro retrato de Cristo mandado a Inocêncio VIII pelo Sultão, com a relíquia de  S. Longuinho. No caso do VERDADEIRO RETRATO, de perfil, temos réplicas no Convento dos Carmelitas de Aveiro, na igreja de Santa Maria da Devesa em Castelo de Vide e na Sé de Miranda do Douro. Analiam-se outras imagens do Rosto de Cristo de perfil, versões inspiradas na oferta otomana do sultão Bayezid II ao Papa Inocêncio VIII em 1492, e versões com interpretação humanística da responsabilidade de Benito Arias Montano / Philippe Galle / Hieronymus Wierix (as duas últimas). Também se analisa A Virgem Maria com a Santa Lança de Longuinhos, tela seiscentista da Sé de Miranda, e uma das versões da Maddona Addolorata de Alessandro Allori, que lhe serviu de inspiração.  A Relíquia da Santa Lança de Longino, o centurião Caio Cássio Longino  que trespassou o corpo de Cristo no Calvário, sofria de infecção nos olhos, curada pelo sangue que jorrou da ferida. Depois de se converter, viria a ser martirizado. A relíquia (com autenticidade caucionada no séc.oV por Cassiodoro e Gregório de Tours) passa a ser venerada em Jerusalém, mas em 615, com o ataque persa de Cosroes II, foi posta a salvo por Nicetas e levada para Santa Sofia em Constantinopla. Em 1492 Benajir II envia-a a Inocêncio VIII com o Retrato Verdadeiro de Jesus Cristo, que passam a ser venerados em São Pedro. Existe outra lança apontada como original, no Schatzkammer, uma das colecções do Museu Hofburg em Viena de Áustria. Diz-se que era usada, desde 1273, na coroação do Imperador do Ocidente, e que em 1424 passou a Nuremberg, onde era chamada a «Lança do Destino» a que se atribuíam poderes sobre os destinos do mundo (o que suscitou inclusive, a sua veneração por Adolf Hitler e prosélitos do III Reich !).