O Formalismo de Giovanni Morelli.

4 Fevereiro 2021, 15:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão


O FORMALISMO de GIOVANNI MORELLI (1816-1891). Uma Teoria assente no primado da Forma como base canónica de identificação de estilemas. Corrente reaccionária ou, pelo contrário, imprescindível para a boa prática da História da Arte ?

O Formalismo, que deve a Morelli o seu prestígio, foi sempre avaliado em termos extremados: ora como o próprio fim da História da Arte, ora como a sua negação, ou seja, um entrave aos reais objectivos da própria disciplina, fosse ela documental, ou laboratorial, ou de contextulização histórica, ou de estudo de mercado, ou iconológica, a semiótica, etc. A verdade é que, sem saber ver, a História da Arte não pode progredir. E muita da História da Arte que se reclamou anti-formalista, de facto, não sabia ver…O que leva a considerar que um retorno a Morelli, como se advoga nos nossos dias, longe de ser uma constatação de derrota, é sim a prova de que a nossa disciplina só pode avançar numa perpectiva de globalidade se não existirem estigmas de nenhuma espécie.

O Formalismo nasceu com o historiador e arqueólogo, helenista e esteta alemão Johann Joachim Winckelmann (Stendhal, 1717-Trieste, 1768), que foi o primeiro autor a estabelecer distinções entre arte clássica -- grega, greco-romana e romana --, o que seria decisivo para o surgimento e ascensão do Neoclassiciamo durante o século XVIII pleno. Winckelmann foi também um dos fundadores da arqueologia científica moderna e o primeiro a aplicar de forma sistemática categorias de estilo à História da Arte. É geralmente considerado o pai da História da Arte formalista. A obra de Winckelmann Geschichte der Kunst des Alterthums  (1764), reconhecida como a sua maior contribuição para a História da Arte ocidental, descreve a Arte Grega e os princípios em que assentava, apresentando uma imagem efusiva de um tempo político, social e cultural que favorecia a criação. A ideia fundamental da sua teoria é que o objectivo da arte é a beleza e que o artista, ao seleccionar a partir da natureza, a modifica e combina com a sua imaginação para criar o padrão ideal, caracterizado pela "simplicidade nobre e grandeza serena“, padrão ideal em que as proporções são mantidas e as partes não podem  quebrar a harmonia do conjunto…

O método morelliano é baseado em pistas oferecidas a partir dos detalhes: Deus mora no pormenor.É preciso, dizia Giulio Carlo Argan (1909-1992) muito mais tardeusar o formalismo na nossa diciplina: saber olhar e ver, e interpretar em diálogo pleno. História e crítica da arte são faces da mesma moeda, trata de obras que são sempre contemporâneas aptas para a fruição integral do e no nosso tempo. Somos fruidores comprometidos. A arte anseia por integralidade de olhares. A arte tem essa capacidade extraordinária de assumir dimensão trans-contemporânea nas infinitas capacidades de suscitar visões críticas (ontem, hoje, amanhã), mesmo que a cadência de modas, gostos, valências, critérios de aferição, imponha bitolas valorativas distintas...   Tudo ganha sentido nos sentidos, e é plausível sonhar, perceber e, no campo da fé, crer. O estudo da arte sacra proporciona saberes históricos, estéticos, iconográficos, ideológicos, coisas da específica ordem do tempo, da razão, do gosto e da encomenda, sentidos iconológicos, simbólicos, espirituais, parcelas de identidade que formam nexos, cadeias de referência, laços de memória, afectos que perduram e se renovam.Como escreveu Carlo Ginzburg, o método morelliano compara o historiador da arte a um detective: «cada um deles descobre, a partir de pistas não percebidas por outros, o autor de um caso de crime ou de uma pintura». Esses traços do inconsciente criativo, num panejamento, num detalhe fisionómico, num modo de tratar um ornamento, ou as figuras secundárias de uma composição, dificilmente serão imitados: ora, uma vez decifrados, servirão como impressões digitais na cena. A identidade do artista é expressa de forma mais confiável pelos detalhes. 

É o Formalismo de Giovanni Morelli (1816-1891) que vai dar plena eficácia, no último terço do século XIX e durante parte do XX, a essa metodologia de trabalho que consiste na atenção micro-descritiva. Considerado o pai do Formalismo como método da História da Arte, Morelli desenvolveu entre 1874 e 1876, sob o pseudónimo de Ivan Lermolieff, um método de crítica de obras de arte assente apenas e só no estudo das formas. Morelli buscava identificar autores e características de estilo artístico através de uma análise comparatista e formal minuciosíssima, conferindo a maior atenção aos detalhes. Este método passou a ser conhecido como morelliano e serviu de base para a pesquisa indiciária.O método morelliano tem raízes próximas na própria disciplina da Medicina de Morelli, com a identificação de doenças por meio dos sintomas, por mais triviais que aparentem ser. Morelli desenvolveu o seu método estudando as obras de Botticelli e aplicano-o a um aluno desse mestre, Filippino Lippi.  A técnica foi desenvolvida em Die Werke Italienischer Meister, em 1880, e com um enigmático pseudónimo, Ivan Lermolieff, que na altura gerou muitas polémicas. Em 1862, Giovanni Morelli trabalha junto do crítico de arte Cavalcaselle e  faz um inventário da arte da Itália central, aperfeiçoando o método formalista. Em 1890, conhece Bernard Berenson, e experimentam nova base formalista para a História da Arte, mas enquanto Morelli se concentrava nos detalhes, com base científica e comparativa, Berenson buscava mais os contextos históricos.O grande antagonista de Morelli, o historiador da arte Wilhelm von Bode, chegou a falar da propagação de uma «epidemia, a Lermolieffmania»… após o misterioso estudioso russo (?) Ivan Lermolieff publicar textos em absoluto pioneiros na tradução alemã de um igualmente inexistente Johannes Schwarze, residente do imaginário Gorlaw, ou seja, Gorle, perto de Bergamo. •Tudo gerou uma espécie de lenda em torno de Morelli. O conhecimento da sua obra e do seu método foi depois desenvolvido por Bernard Berenson (que ainda conheceu Morelli em 1890). Na primeira geração de eruditos seguidores incluem-se Gustavo Frizzoni, Jean Paul Richter, Adolfo Venturi e Constance Jocelyn Foulkes. A «escola de Morelli» vai ser introduzida em Inglaterra em 1893 com a tradução do  magno livro de 1880. A autoridade do método vai vingar, desde logo, nos estudos arqueológicos em torno dos vasos gregos e da escultura assírio-babilónica, num processo que permitiu validar cronologias, comparar estilemas e, até, excluir réplicas, cópias ou falsos… Especialistas de arte clássica e moderna como John Pope-Hennessy, Brunilde Sismondo Ridgway, Joseph Archer Crowe e Giovanni Battista Cavalcaselle contam-se entre os seguidores do método indiciário criado por Morelli, a busca do indício que conduz à identificação de uma obra, um autor ou um estilo. O facto de investigar, pela via do detalhe, o inconsciente criativo, levou Freu a lê-lo com atençã, e a citá-lo.  Tal como R. Wollheim, no estudo "Giovanni Morelli and the origins of scientific connoisseurship", On Art and the Mind: Essays and Lectures, 1973.


• A valência aurática que define o território das artes não desaparece pois as obras de arte são de per si trans-contemporâneas. O encontro que temos com a arte é agora», disse Frances Morris, directora da Tate Modern: «As obras de arte não são artefactos arqueológicos: a experiência que desencadeiam é única e singular» (…); «é muito libertador pensar que a História da Arte linear escrita por um determinado conjunto de académicos ocidentais é apenas e só uma narrativa entre outras. Quando pensamos na arte australiana aborígene é evidente que encontramos ali uma compreensão inteiramente diferente da nossa do que seja o tempo ou, por exemplo, o sonho». Por isso, mais do que aprender com os livros, catálogos e artigos que falam de artes e artistas, o que importa mesmo é o modo íntimo com que vemos as obras: «encorajo toda a gente a ler a História da Arte em livro, mas o encontro de cada um com a arte é agora, não é na história». É, sim, na nossa própria história…

O Formalismo implica, hoje, o assento iconográfico através de uma leitura organizada: «Faire un catalogue ne revient pas à un pur et simple savoir des objects logiquement empruntés. Car il y a toujours le choix entre dix manières de savoir, dix logiques d’agencement, et chaque catalogue particulier résulte d’une option – implicite ou non, consciente ou non, ídéologique en tout cas – à l’égard d’un type particulier de catégories classificatoires. En deçà de catalogue, l’attribution et la datation elles-mêmes engagent toute une ´philosophie’ – à savoir la manière de s’entendre sur ce que c’est une ‘main’, la paternité d’une ‘invention’, la regularité ou maturité d’un ‘style’, et tant d’autres catégories encore qui ont leur propre histoire, ont été inventées, n’ont pas toujours existé. C’est bien l’ordre du discours qui mène, en histoire de l’art, tout le jeu de la pratique» (Georges Didi-Huberman, Devant l’image. Questions posées aux fins d’une histoire de l’art,  Paris, éd. Minuit, 1990).

Mas então: se a Iconologia que interpreta o sentido das obras (Aby Warburg, Cassirer, Panofsky, Didi-Huberman), a Antropologia da Arte (Hans Belting) que  viaja no seu mundo de afectos, a globalização da artworld (Arthur C. Danto) que destaca a qualidade trans-contextual da arte como coisa em permanente mutação e se abre a um comparatismo sem limites, a Sociologia da arte (Frederick Antal) que valoriza clientes, mercados e gostos, a Psicologia do Inconsciente Criativo (R. Arnheim), que alarga os ‘géneros’ dadisciplina, etc, etc, será que acabou pra a História da Arte o tempo do Positivismo documental e formalista ? Uma segunda morte de Morelli ? Ou… será que é a questão que se encontra mal formulada ? Porque não assumir que existe um História da Arte capaz de entender esta totalidade em permanência que é o mundo da criação ? 

SABER VER. A História da Arte é fundamental para a análise das obras de arte, articulando num ponto de vista unívoco os dados que os métodos laboratoriais e a investigação histórica e documental estabelecem e reúnem a seu propósito. É da conjugação de tais análises que se pode saber mais sobre a origem, valia, alterações, usos, sentidos e memórias acumuladas  de uma obra de arte. Por isso, os métodos de análise física são essenciais: estabelecem informações sólidas sobre materiais, técnicas, suportes, produção, etc. Não serão o novo Deus, tal como o documento de arquivo não o era (ou é), nem a mera descrição formal de per si (como pensavam os morellianos): a obra de arte vai sempre a ser, em última instância, o grande documento !

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A vitalidade do formalismo à luz de novos saberes e técnicas exprime-se no recente estudo de técnica visual computacional de Christopher J. Nygren, On Giovanni Morelli, or How to See a Renaissance Painting Computationally.

•Le opere dei maestri italiani nelle gallerie di Monaco, Dresda e Berlino, versione italiana, Bologna, Zanichelli, (18866)Kunstkritische über italienische Malerei, Leipzig, Brockhaus, (1890-1933).

Della pittura italiana: studi storico-critici Milano, F.lli Treves, (1977).

ValentinaLocatelliMetamorfosi romantiche: Le teorie del primo Romanticismo tedesco nel pensierio sull'arte di Giovanni MorelliPasian di Prato, Campanotto, 2011.
Edgar WindArte e anarchia, Milano, Adelphi, 1986, pp. 53–74.•
Federico Zeri-Federico Rossi,  La raccolta Morelli, Bergamo, Accademia Carrara, 1986.
Matteo Panzeri- Giulio Orazio BraviLa figura e l'opera di Giovanni Morelli, Bergamo, Biblioteca Civica Angelo Mai, 1987. 
Revista G. Morelli (em curso de publicação).

Carlo GinzburgSpie. Radici di un paradigma indiziario, in  Crisi della ragione, a cura di Aldo Gargani, Einaudi, 1979, pp. 57–106.