O método iconológico de Erwin Panofsky.

2 Março 2021, 15:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

No livro Through the Looking-glass and what Alice found twere, Lewis Carroll narra o fascínio de Alice, junto ao gato negro Kitty, pelo grande espelho que a intriga, onde se reflecte o quarto em que está encerrada, até ao momento em que finalmente atravessa o espelho e penetra na sua aventura. Aí, dentro, tudo é igual à imagem que Alice podia ver reflectido na superfície, mas tudo o que não era entrevisto na imagem reflectida é, pelo contrário, muito diferente do imaginável... É o mundo da fantasia, todavia com regras precisas, um mundo que Alice tem de percorrer para o poder compreender na sua globalidade...Através do espelho... Através da imagem... 

A abordagem iconológica encontra nesta dimensão de entrega ao total descobrimento as suas mais  puras raízes, o seu inflamado desejo de flanquear a superfície das coisas (e das obras de arte) para poder descobrir o seu lado escondido, a sua face oculta... A História da Arte passou o tempo’vasariano’  das biografias e o tempo ‘morelliano’ das leituras formais dotadas da maior cientificidade, aprendendo nas várias vertentes – histórica, documental, laboratorial, sociológica, semiótica – um pouco da sua especificidade como disciplina dotada de fascínios no modo sempre irrepetível de saber ver em globalidade as obras de arte.

•Eis que a ICONOLOGIA ultraopassa a sua dimensão de ramo operativo da História da Arte e, passando pelo bom uso da Iconologia, é capaz de apontar sentidos, descodificar programas, entretecer mistérios que as imagens oferecem aos espectadores, ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou, ilustrado, em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no  X Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Aby Warburg (1866-1929), ao expôr a sua «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente descritivas dos seus colegas. Na sua biblioteca de Hamburgo, Aby Warburg reunirá materiais de approche interdisciplinar da H. Arte com a Astrologia, a História das Religiões, a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, o Folclore, etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que o regime nazi obrigará a transferir em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, ´o Instituto recebe grande impacto: aí se formarão Ernst Cassirer. Meyer Shapiro e Erwin Panofsky, entre outros...

Discípulo de Warburg, Panofsky graduou-se em 1914 na Universidade de Friburgo, com uma tese sobre o pintor alemão Albrecht Durer, depois de estudar em várias universidades alemãs. Em 1916 casou-se com Dora Mosse, também historiadora da arte. Em 1924 aparece a primeira de suas grandes obras: Idea: uma contribuição para a história das ideias na história da arte, em que examina a história da teoria neoplatónica na arte do Renascimento.•Entre 1926 e 1933 foi professor na Universidade de Hamburgo, onde havia começado a lecionar em 1921. Abandonou a Alemanha quando os nazis tomaram o poder em 1933 (era de ascendência judia) e instalou-se nos EUA Estados, para onde havia viajado como professor convidado em 1931. Foi professor no Instituto para Estudos Avançados da Universidade de Princeton (1935-1962), mas também trabalhou nas universidades de Harvard (1947-1948) e New York (1963-1968). Foi amigo de  Wolfgang Pauli, um dos criadores da física quântica. Para Panofsky a História da Arte é uma ciência em que se definem três momentos inseparáveis do ato interpretativo das obras de arte na sua globalidade: a leitura no sentido fenoménico da imagem; a interpretação de seu significado iconográfico; e a penetração de seu conteúdo essencial como expressão de valores. A arte medieval e do Renascimento (que estudou profundamente), estão definidos em seu livro Renascimentos e Renascimentos na Arte Ocidental. Foi amigo de  Wolfgang Pauli, um dos criadores da física quântica. Panofsky  definiu aquilo que distingue ICONOGRAFIA e ICONOLOGIA. Em Estudos sobre Iconologia (1939) deu exemplos: definiu iconografia como a identificação do tema da obra em estudo, e iconologia como análise do significado. Exemplificou o acto com o homem levantar o chapéu: num 1º momento  vemos um homem que tira da cabeça um chapéu, num 2º momento  percebemos que o gesto de levantar o chapéu pode ser , por exemplo, «resquício do cavalherismo medieval: era costume os homens armados tirarem os elmos para deixar claras as suas intenções pacíficas». Enfatizou, nesse e outros trabalhos pioneiros, a importância dos costumes quotidianos para explicar melhor as representações simbólicas que as obras de arte assumem. 

•Em 1939, em Estudos em Iconologia, Panofsky detalha as suas ideias dos três níveis da compreensão da História da Arte:•Primário, aparente ou natural: o nível mais básico de entendimento, esta camada consiste na percepção da obra em sua forma pura. Tomando-se, p. ex., uma pintura da Última Ceia. Se nos ativermos ao 1º nível, o quadro poderia ser percebido somente como uma pintura de treze homens sentados à mesa. Este 1º nível é o mais básico para o entendimento da obra, despojado de qualquer conhecimento ou contexto cultural.•Secundário ou convencional: Este nível avança mas, a brindo-se ao contexto cultural e ao saber iconográfico. Por exemplo, um observador do Ocidente entenderia que a pintura dos treze homens sentados à mesa representa a Última Ceia. Similarmente, vendo uma imagem de um homem com auréola e um leão, poderia interpretar-se como São Jerónimo.•Significado Intrínseco ou conteúdo (Iconologia): num plano mais profundo para entender a obra – vista não como um incidente isolado mas um produto de um ambiente histórico preciso --, e trabalhando com estas camadas, o historiador de arte coloca questões como "por que é que São Jerónimo era importante para o encomendante ?" Esta última camada é sempre uma síntese: o historiador da arte pergunta: "o que é que a obra significa" ? •Para Panofsky, era importante considerar os três estratos como ele examinou a arte renascentista. Irving Lavin diz que "era esta insistência sobre o significado e sua busca - especialmente nos locais onde ninguém suspeitava que havia - que levou Panofsky a entender a arte, não como os historiadores haviam feito até então, mas como um empreendimento intelectual no mesmo nível que as tradicionais artes liberais".

Na prática, a ICONOLOGIA dedica particular relevo ao estudo dos textos, dos contextos e dos programas: todas as obras de arte têm um programa interno, que pode ser perceptível. O modelo conceptual de Aby Warburg, e de Panofsky, buscava já englobar forma, sujeito e sentido na sua abordagem das obras de arte. É certo que os estudos iconológicos têm dado maior ênfase aos temas do Renascimento (como o estudo de Panofsky e Fritz Saxl, de 1923, sobre a Melencolia I de Durer), e tem negligenciado outras épocas artísticas – mas tal não deve ser visto como sinónimo de fraqueza, mas sim como falta de aplicação integral do seu modus faciendi...

O uso da Iconologia, tal como praticado após a morte dos seus fundadores, tem tido recuos e «vulgatas» redutoras. É certa, e tem dose de verdade, a crítica de que alguma iconologia presta mais atenção aos textos literários que às obras de arte. É certo, e tem dose de verdade também, a crítica de que alguma iconologia se perde nas gavetas infindas das colecções de gravura na sua busca desenfreada de um «sentido escondido» em todas as imagens, e de lhes determinar a priori um sentido determinado de que depois tenta fazer prova... Enfim, é também certo que a obra de arte se não pode reduzir aos seus códigos de significação, e que esta «irredutibilidade» de alguma iconologia presta um mau serviço ao estudo integral das obras de arte, por não as deixar expressar livremente os seus códigos estéticos... É certo que algumas destas críticas colhem fundo: em nome da iconologia, tem-se praticado uma H. de Arte redutora. Mas convém lembrar também que, num prisma bem diverso, a Iconologia suscitou outro tipo críticas (o maccarthismo nos EUA versus a teoria de Panofsky, desconfiando do uso do termo ‘ideologia’...). A questão reside, segundo o grande historiador de arte, na operacionalidade do método: «a Iconologia é uma técnica que quedará fundamental para a identidade dos géneroas de imagem e no uso das fontes», aduzindo que importa também  ter-se em conta a necessária «abertura» inerente à arte e à interpretação dos símbolos e códigos artísticos.

Segundo Aby Warburg, o que importa à ICONOLOGIA é abrir as fronteiras entre várias matérias do saber, entre várias disciplinas das Humanidades, redefinindo noções como «contexto» e «programa artístico» e arrticulando vias interdisciplinares de saber ver as obras de arte na sua carga de integralidades.