Aby Warburg (1866-1929) e a Iconologia.

13 Março 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O grande fascínio provocado pela herança de Aby Warburg e pela Iconologia é explicada como sintoma de um certo descontentamento entre a nova geração de historiadores de arte, para quem a noção warburghiana de pathos, de sobrevivência de formas, de Nachleben (vida póstuma das imagens), e a montagem do seu BilderAtlas (criado em 1926, como processo de conhecimento através das imagens), ganham a maior actualidade.A História da Arte não se define no sentido cronológico ou evolutivo da análise estilístico-formal, mas sim através do estudo do sentido da involução morfológica que afecta de anacronismo todos os modos históricos e estilos. Urge estabelecer um espaço de reflexão e de investigação – Denkraun – que permita o projecto de uma psicologia histórica da expressão humana a partir do estudo das imagens. Esse teatro será a Biblioteca, construída a partir de 1926 em Hamburgo para albergar a Kultgurwissenschstliche Bibliothek Warburg.  

Aby Warburg nasceu em 1866, em Hamburgo, no seio de uma antiga família de ricos banqueiros judeus, e teve a existência assegurada pela fortuna familiar, o que mostra, “pelo exemplo pessoal – disse-o em carta ao irmão Max Warburg de 30 de Junho de 1900 – que o capitalismo pode também levar a cabo um trabalho de reflexão com o mais vasto alcance”. A tese que apresentou em 1891 em Estrasburgo sobre O Nascimento de Vénus e A Primavera, de Botticelli, inicia um trabalho de investigação de décadas com objecto no Renascimento e na sobrevivência (Nachleben) da Antiguidade. Logo aí começa a dar-se conta dos limites de uma História de Arte “esteticizante” e “formal”, tal como resulta de uma abordagem meramente erudita da história dos estilos e da avaliação estética. Fazendo da “imagem” centro nevrálgico da sua investigação, tentou compreender o modo como ela é  dotada de enorme permeabilidade às sedimentações históricas e antropológicas e inserida num processo de transmissão de culturas, facto esse pleno de implicações na própria arte viva. Tratou de conceber uma complexa temporalidade das imagens (à maneira de Walter Benjamin, “escova a história a contra-pêlo”...), em que estas, não se reduzindo a simples documento da História, são dotadas de vida póstuma e mostram como é possível estabelecer uma ligação entre épocas que a historiografia nos habituou a considerar completamente diferentes. No estudo que fez dos frescos do Palácio Schifanoia, de Ferrara, onde pela primeira vez refere o método iconológico, Warburg mostrou precisamente que há uma ligação entre a Antiguidade, a Idade Média e a época moderna. 

Fala-se hoje de um renascimento das teorias de Aby Warburg  para designar o interesse crescente pela sua obra e reconhecer que terá chegado ao momento da sua legibilidade. Este renascimento não é motivado por interesse arqueológico, mas pela constatação de que todo o seu trabalho -- elaborações teóricas, investigações, a constituição da grande biblioteca que o ocupou a vida inteira -- são um contributo fundamental para pensar a História da Arte, isto é, tanto a disciplina assim chamada – nos seus métodos, nos seus pressupostos – como a própria historicidade das obras de arte. E de modo mais alargado para pensar o vasto campo das ciências da cultura.É certo que contingências de vária ordem tornaram difícil a transmissão e recepção de um legado que nunca adquiriu uma forma fixa e acabada e nem sempre se materializou em «obra». Quando morreu, em 1929, com 63 anos, Warburg deixava a seguinte herança:

1) o exemplo pessoal de alguém destinado a gerir a os negócios da família de banqueiros judeus de Hamburgo, com enorme relevo na vida da cidade desde o século XVII, mas que opta por uma vida de Privatgelehrter (de erudito trabalhando em regime livre e privado), sustentada pela fortuna familiar, que o torna um representante notável e quase certamente último de «um tipo de erudito senhorial, esplendidamente inaugurado por Leibniz», como o classificou Walter Benjamin no seu ensaio sobre Bachofen. 

2) uma biblioteca erguida à custa de investimento privado (de acordo com o entendimento de que «o capitalismo pode também permitir a realização de um trabalho de reflexão com o mais vasto alcance», prescindindo para um irmão das suas prerrogativas de herdeiro) e reflectindo, na sua complexa organização, os interesses, métodos e conhecimentos do seu criador, acabaria por se tornar em 1921 uma instituição parcialmente pública, desempenhando ao mesmo tempo as funções de instituto de investigação, cuja direcção foi assegurada por Fritz Saxl; 

3) um conjunto de estudos em grande parte consagrados ao Renascimento, campo onde centra a sua investigação histórica e antropológica, apresentados sob a forma de conferências ou comunicações em congressos em parte nunca editados; um volume imenso de notas, apontamentos e escritos diarísticos que reflectem um processo de trabalho com dificuldade em se cumprir (a cada página escrita correspondem dezenas ou centenas de páginas de notas); 

4) um «Atlas» consistindo num conjunto de 63 painéis, onde agrupa mais de mil fotografias a que deu o nome grego colocado à entrada da biblioteca, Mnemosyne, através do qual queria mostrar a permanência de certos valores expressivos dotados de uma «força formadora de estilo» (stilbildende Macht), que sobrevivem como património sujeito a complexas leis de transmissão e recepção. 

A administração de tal herança tem-se revelado difícil. Os dois volumes de escritos reunidos só são editados em 1932 por Gertrud Bing, fiel assistente de Warburg, e só vieram a ter continuidade quando em 1998 foram reimpressos, inaugurando uma edição dos Gesammelte Schriften que compreende seis secções. Até à data, para além desses dois volumes com o mesmo título da edição de 1932, Die Erneurung der heidnischen Antike. Kulturwissenschaftliche Beiträge zur Geschichte der europäischen Renaissance, foram ainda publicados o Bilderatlas Mnemosyne (2000) e o Tagebuch der kulturwissenschaftlichen Bibliothek Warburg (2001), o que parece indicar que a tarefa editorial está finalmente em andamento. É ainda uma parte do anunciado, mas já encontramos material que antes só se conhecia em segunda mão, através das referências de quem trabalhou no arquivo do Instituto Warburg, em Londres, especialmente através de E. H. Gombrich, seu director a partir de 1959 e autor de uma biografia intelectual de Aby Warburg saída em 1970. 

Apesar de muito criticado por nem sempre ter entendido qual o significado e alcance  das propostas de Aby Warburg e dada a sua dificuldade em libertar-se dos modelos convencionais da historiografia da arte, Gombrich desempenhou um papel fundamental na descoberta de uma obra que permanecia escondida por detrás da instituição. De facto, em 1970 e até muito recentemente, eram ainda válidas as palavras de Giorgio Pasquali escritas em 1930 como «ricordo»  do seu amigo, falecido seis meses antes: «Mesmo entre os universitários, muitos interrogam-se se aquele nome é não apenas o de uma instituição mas também o de um homem (...). Que a pessoa, o grande investigador Warburg, tenha desaparecido mesmo enquanto vivo, por detrás da instituição que criou, é conforme às suas intenções». A célebre KBW (Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg), biblioteca para as ciências da cultura, era peça fundamental do projecto científico de Warburg, na medida em que permitia dar expressão muito concreta à sua ideia de uma unitária Kulturwissenschaft, de uma «ciência universal da cultura» que anula rígidas divisões disciplinares. Ela constituiu a sede e ponto de partida – material, metodológico e temático – de importantes investigações que têm a sua origem bem localizada no «círculo Warburg». Concebida, na sua variedade interdisciplinar, como uma biblioteca de estudos e investigação, a KBW  obedecia a um complexo sistema de ordenação que, em si, servia desde logo o programa de Warburg de constituir uma rede de enunciados universais. De facto, Warburg classificava os livros, não segundo a ordem alfabética ou aritmética, mas segundo os seus próprios interesses e o seu sistema de pensamento. Aquilo a que ele chamava a lei da “boa vizinhança” era o princípio que estava na base da sua Biblioteca: partir em busca de um livro deveria sempre conduzir a um outro que estava ao lado, que se revelaria mais importante do que aquele que tinha sido o objecto inicial da busca. Na descrição de Ernst Cassirer, esta Biblioteca era um verdadeiro labirinto que podia provocar algumas perturbações aos visitantes.

Segundo Franz Saxl, «os livros estavam organizados em quatro níveis: no 1º, estavam aqueles sobre problemas gerais de expressão e a natureza dos códigos e símbolos, e daí se passava para a religião,  a antropologia, daí para a filosofia e a história da ciência; no 2º, continham-se os volumes sobre a expressão na arte, a  sua teoria e a sua história; no 3º nível, estavam as obras dedicadas à linguagem e à literatura. no 4º, enfim, estavam s obras dedicadas às formas sociais da vida e do trabalho, a história, o direito, o folclore, etc.

No caso de Panofsky, reconhecendo-se que o autor da Perspectiva como Forma Simbólica orientou a sua análise das imagens num sentido que está longe de lhes reconhecer a complexidade de formas expressivas dotadas de «vida póstuma», há ecos da Nachleben, mas é certo que não captou a análise formal e autónoma. Foi também em proximidade com o «círculo Warburg» que Ernst Cassirer escreveu A Filosofia das Formas Simbólicas. A mulher de Cassirer relatou a impressão que a Biblioteca Warburg provocou no marido quando a visitou em 1920: «Lembro-me que Ernst, depois da primeira visita, entrou em casa num estado de viva excitação (coisa raríssima nele): contou que a biblioteca era algo absolutamente único e grandioso; que o Dr. Saxl, que lha tinha mostrado, lhe tinha parecido um homem maravilhoso e original. No entanto, que depois da visita guiada através das longas filas de estantes, tinha sentido necessidade de lhe dizer: “Não regressarei aqui porque, neste labirinto, acabaria por me perder”. A descoberta da Biblioteca Warburg foi para Ernst como que a descoberta de uma mina onde podia descobrir um tesouro a seguir a outro». Sabemos que Cassirer, afinal, regressou muitas vezes: no texto «Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften» (Vorträge der Bibliothek Warburg, 1923) lemos: «Senti aquilo de que se falou na conferência de abertura do ciclo [Saxl falara sobre «Die Bibliothek Warburg und ihr Ziel»]: não se trata de uma colecção de livros mas uma colecção de problemas»…«O que provoca tal impressão não são os domínios abrangidos mas o princípio da sua disposição, pois as secções de história da arte, religião e mito, assim como a história da língua e da cultura não se limitam a estar ao lado umas das outras, mas remetem para um centro comum ideal. Sem dúvida que esta relação parece ser de carácter puramente histórico: é o problema da vida póstuma [Nachleben] da Antiguidade”. Em 1933, quatro anos após a morte de Warburg, a sua biblioteca, então com cerca de sessenta mil volumes e um enorme arquivo de imagens, foi transferida para  Londres, escapando às ameaças que, com o nazismo, pesavam sobre tal instituição que tinha o nome de uma das mais importantes famílias judaicas da Alemanha. Constituiu a base do «Warburg Institut», integrado na Universidade de Londres em Novembro de 1944.

As contingências da forçada implantação de um instituto num universo cultural completamente estranho aos seus métodos e conceitos determinou o destino pouco próspero da herança warburgiana. Não é que o Warburg Institut não se tenha tornado um centro reconhecido, mas o pensamento de Warburg, que o tinha levado a descobrir uma rede de fórmulas expressivas universais e trans-históricas (sujeitas a leis históricas na sua vida póstuma, pois não são pura e simplesmente transmitidas como algo a imitar: cada época tem a sua maneira de seleccionar, reanimar e intensificar), presentes em todas as produções simbólicas da humanidade e não apenas na arte, não encontrou desenvolvimentos. Só recentemente se começou a perceber o que ele verdadeiramente significa.O núcleo da Biblioteca implica uma determinada concepção da História da Arte e do trabalho historiográfico que segue aquele preceito de «escovar a história a contra-pêlo», que W. Benjamin, alguns anos depois, iria formular numa das suas teses «Sobre o Conceito de História». Na conferência sobre os objectivos da Biblioteca Warburg, O seu assistente Frank Saxl (1890-1948) afirma que o seu carácter específico reside em se tratar de uma Problembibliothek, uma biblioteca que, não se limita a reunir o material de que é composta, mas o coloca segundo uma ordem sistemática, «de tal modo que a sua disposição leva-nos ao problema»... No topo da biblioteca, a secção de filosofia da história; como objecto central da investigação que estava habilitada a servir, o problema da vida póstuma, a Nachleben, da Antiguidade Pagã, de onde se deveriam «tirar conclusões gerais sobre a função da memória social da humanidade: de que espécie são as formas cunhadas pela Antiguidade, que faz com que elas sobrevivam? Porque é que em determinadas épocas se dá um “renascimento”da Antiguidade, enquanto que outras, com a mesma herança cultural, não a assumem como seu património vivo?» O conceito de história em Warburg é fundado na sua teoria da memória social ou colectiva. Esta questão começa a ganhar forma no  seu estudo de 1893 sobre o Nascimento de Vénus e a Primavera de Botticelli, que apresentava já no subtítulo ser «um estudo sobre as representações da Antiguidade no primeiro Renascimento italiano». Ao investigar a recorrência de antigas formas de movimento expressivo na obra de Botticelli, de gestos dotados de um pathos que se refere a uma linguagem mímica cuja migração histórica e geográfica é possível acompanhar, Warburg começa a encarar a História da Arte em termos de uma memória errática de imagens que constantemente regressam como sintomas (fazendo apelo a uma «psicologia histórica da expressão humana») e a Nachleben da Antiguidade como objecto central do seu programa historiográfico.

Se o Renascimento italiano constituiu um campo de eleição, não foi tanto por um interesse em si, mas porque lhe fornecia o mais avançado exemplo do funcionamento da memória cultural e das sobrevivências primitivas. Tentando compreender em Botticelli e Ghirlandajo as leis que regem o regresso de formas outrora impressas e que a memória colectiva conserva e transforma, ou descobrindo que as figuras dos frescos do palácio Schifanoia, nas suas características clássicas, eram afinal os decanos indianos, emigrados da simbologia oriental e medieval, mas sob cujas vestes «bate um coração grego», Warburg não estava a seguir os modelos canónicos da História da Arte nem da história tout court, mas a construir um específico modelo temporal para os factos da cultura ao nível da sua Kulturwissenschaft unitária, abrindo-a a muitos campos do saber, como a Antropologia. Desde logo, porque encara o Renascimento (o histórico mas também, por extensão, o processo transistórico dos «renascimentos») não como um revivalismo através do qual se procederia à recuperação da tradição perdida, mas como um mecanismo inconsciente, próprio da memória colectiva, e portanto capaz de se manifestar através de sintomas. Muitas vezes Warburg fala de sintomas. Por exemplo, num estudo de 1905 sobre «As Trocas da Cultura Artística Entre o Norte e o Sul no Século XV» quando designa certos elementos «como sintomas de uma época de transição». É precisamente como estruturas sintomáticas que Georges Didi-Huberman definiu e analisou, em L’image survivante, as Nachleben. É como categoria histórico-filosófica central que a memória preside à Biblioteca: sobre a porta da entrada, Warburg tinha colocado uma placa com a palavra grega Mnemosyne. Escrevendo sobre o significado do conceito warburguiano de Kulturwissenschaft, Edgar Wind  interpretou-a num duplo sentido: «Exortação ao investigador a recordar-se que, interpretando obras do passado, administra o património da experiência nelas depositado – e alusão a esta mesma experiência enquanto objecto de investigação, isto é, convite a analisar o funcionamento da memória social com base no material histórico. No estudo sobre o primeiro Renascimento florentino, a eficácia desta memória social tinha-se-lhe deparado em toda a sua realidade: como verdadeiro renascimento de antigas formas figurativas na arte desse tempo».A primeira vez que Warburg mencionou explicitamente a noção de memória colectiva foi quando apresentou publicamente o programa da sua Biblioteca, numa conferência na Câmara de Comércio de Hamburgo: «Ela propõe-se mostrar a função da memória colectiva europeia enquanto poder formador de estilo, assumindo como constante a cultura da Antiguidade pagã». Se é possível acompanhar as imagens da Antiguidade na sua migração imparável, na sua deslocação histórica e geográfica, é porque elas permanecem como tensão energética, como «vida em movimento» (bewegtes Leben), cujos traços significantes estão inscritos na memória da humanidade. É importante sublinhá-lo: o que Warburg entende por Nachleben e remete para uma sobredeterminação temporal da história que não é a da continuidade do tempo cronológico; não são nunca conteúdos mas valores expressivos que ganham forma naquilo a que chamou Pathosformel, fórmula de pathos, onde se dá a ver uma «mímica intensificada», uma gestualidade expressiva do corpo, com origem nas paixões e nas afecções sofridas pela humanidade. Cada época selecciona e elabora determinadas Pathosformeln, à medida das suas necessidades expressivas, regenerando-as a partir da sua energia inicial. Em contacto com a «vontade selectiva» de uma época, elas intensificam-se, reactivam-se, carregam-se de um significado que entra em conflito com um pólo oposto, isto é, «polarizam-se».  É assim que a 'Melancolia I' de Dürer pode ser vista não apenas como manifestação das forças mais obscuras e imobilizantes mas também como a emergência da reflexão e do pensamento; é assim que a «polaridade» se torna, para Warburg, uma categoria interpretativa de todos os fenómenos culturais. Tudo entra numa relação bipolar: cultura antiga e moderna, cristã e pagã, pensamento mágico e pensamento lógico, etc.