Ainda a Iconologia de Aby Warburg.: as célebres pinturas de Botticelli.

15 Março 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Warburg destrói as bases de uma imagem evolucionista da história cultural, ao declarar impraticáveis as periodizações tradicionais. No estudo Arte Italiana e Astrologia Internacional no Palácio Schifanoja de Ferrara (1912) conclui: «A História da Arte tem sido até aqui impedida, por inadequadas categorias gerais da evolução, de colocar o seu material à disposição da ‘psicologia histórica da expressão humana’, que na verdade ainda não foi escrita». Com esse estudo, Warburg propõe a metodologia da «análise iconológica» que «não se deixa intimidar por um exagerado respeito pelas fronteiras e considera a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade como épocas ligadas entre si». Como conclusão final, uma frase tantas vezes citada, talvez pela estranha conjunção da nietzschiana referência ao «bom europeu» com a profissão de fé numa Aufklärung pouco convencional: «Com esta vontade de restaurar a Antiguidade, “o bom europeu” iniciava a sua luta pela Aufklärung naquela época de migrações internacionais das imagens que nós – de modo demasiado místico – chamamos época do Renascimento». Warburg  definiu como condição do pensamento a criação de uma distância entre o eu e o mundo a que chamou Denkraum, isto é, espaço de reflexão ou pensamento. A criação do Denkraum, do intervalo entre pólos opostos (oposição entre magia e lógica, conciliada nunca de maneira definitiva no pensamento), é definido como um modo essencialmente simbólico. O símbolo apresenta-se como produção da consciência da distância e a arte, enquanto órgão da memória social, a mais elevada produção simbólica. Na apresentação do Bilderatlas, em 1929, na Biblioteca Hertziana de Roma, Warburg disse: «Introduzir uma distância consciente entre o eu e o mundo exterior é aquilo que podemos designar como o acto fundador da civilização humana; se este intervalo [Zwischenraum] se torna o substrato da criação artística, então esta consciência da distância pode tornar-se uma duradoura função social, cuja adequação ou insuficiência como instrumento de orientação intelectual significa justamente o destino da cultura humana.A primeira vez que Warburg mencionou explicitamente a noção de memória colectiva foi quando apresentou publicamente o programa da sua Biblioteca, numa conferência na Câmara de Comércio de Hamburgo: «Ela propõe-se mostrar a função da memória colectiva europeia enquanto poder formador de estilo, assumindo como constante a cultura da Antiguidade pagã». Se é possível acompanhar as imagens da Antiguidade na sua migração imparável, na sua deslocação histórica e geográfica, é porque elas permanecem como tensão energética, como «vida em movimento» (bewegtes Leben), cujos traços significantes estão inscritos na memória da humanidade. É importante sublinhá-lo: o que Warburg entende por Nachleben e remete para uma sobredeterminação temporal da história que não é a da continuidade do tempo cronológico; não são nunca conteúdos mas valores expressivos que ganham forma naquilo a que chamou Pathosformel, fórmula de pathos, onde se dá a ver uma «mímica intensificada», uma gestualidade expressiva do corpo, com origem nas paixões e nas afecções sofridas pela humanidade. Cada época selecciona e elabora determinadas Pathosformeln, à medida das suas necessidades expressivas, regenerando-as a partir da sua energia inicial. Em contacto com a «vontade selectiva» de uma época, elas intensificam-se, reactivam-se, carregam-se de um significado que entra em conflito com um pólo oposto, isto é, «polarizam-se». 

É assim que a Melancolia de Dürer pode ser vista não apenas como manifestação das forças mais obscuras e imobilizantes mas também como a emergência da reflexão e do pensamento; é assim que a «polaridade» se torna, para Warburg, uma categoria interpretativa de todos os fenómenos culturais. Tudo entra numa relação bipolar: cultura antiga e moderna, cristã e pagã, pensamento mágico e pensamento lógico, etc . A polaridade fundamental é, no entanto, a que Warburg vai buscar a Nietzsche: o apolíneo e o dionisíaco, que correspondem, em Warburg, ao olímpico (olympisch) e ao demónico (dämonisch). O conceito warburguiano de «polaridade» é essencial para se perceber como determinadas formas vindas de um passado longínquo encontram em determinadas épocas uma disposição para acolhê-las e noutras não; ou de que modo, em contacto com uma nova época, o seu sentido é completamente invertido. Assim, as cadeias da tradição não têm nada de transmissão e recepção passivas, precisamente porque cada época particular transforma o material mnésico de acordo com as suas exigências. Uma concepção historiográfica fundada na polaridade e numa dialéctica sem síntese em que o passado fica detido no presente, não é compatível com a ideologia do progresso, própria do historicismo. 

Esta concepção historiográfica está confrontada com um modelo complexo de temporalidade da História que não é compatível com o conceito de uma evolução, de um devir, num sentido e numa direcção da história. A dimensão da história da cultura que se pode deduzir das investigações de Warburg está longe de ser aquela idealista e cumulativa da hegeliana «Geistesgeschiche».  No ensaio «Dürer e a Antiguidade Italiana», de 1905, Warburg desenvolve pela primeira vez a noção de Pathosformel, a partir da análise de um desenho de Dürer, representando a morte de Orfeu, inspirado numa gravura anónima do atelier de Mantegna. E a linguagem que utiliza é a que fala de «pathos heróico e teatral», expressão física intensificada, «vida em movimento» e «vida mimicamente intensificada».  Abre-se a questão da descoberta de uma dimensão dionisíaca do Renascimento, oposta à visão habitual de um Renascimento apolíneo, onde triunfa a ordem, a clareza, a harmonia.A tese que apresentou em 1891, em Estrasburgo, sobre O Nascimento de Vénus e A Primavera, de Botticelli, é o início de um trabalho de investigação de décadas que tem como objecto o tema do Renascimento e a sobrevivência (Nachleben) da Antiguidade. Mas, logo aí Warburg começa a dar-se conta dos limites de uma História de Arte “esteticizante” e “formal”, tal como ela resulta de uma abordagem meramente erudita da história dos estilos e da avaliação estética. Fazendo da “imagem” o verdadeiro centro nevrálgico da sua investigação, Warburg tentou compreender o modo como ela é  dotada de uma enorme permeabilidade às sedimentações históricas e antropológicas e, portanto, inserida num processo de transmissão da cultura, facto que se mostra cheio de implicações na própria arte viva. Trata-se, assim, de conceber uma complexa temporalidade das imagens (à maneira de Benjamin, ele “escova a história a contra-pêlo”), em que estas, não se reduzindo a um simples documento da história, aparecem dotadas de uma “vida póstuma” e mostram como é possível estabelecer uma ligação entre épocas que a historiografia nos habituou a considerar como completamente diferentes. No estudo importantíssimo que fez dos frescos do Palácio Schifanoia, de Ferrara, Warburg mostrou precisamente que há uma ligação entre a Antiguidade, a Idade Média e a época Moderna. A partir desta antropologia histórica das imagens que põe em acção um complexo interdisciplinar, uma “ciência sem nome” que aspira a um ideal de unidade da ciência, Warburg aproxima-se progressivamente de uma “ciência universal da cultura” que fornece provas decisivas das “ideias universais”. Assim, a cultura seria um processo de “sobrevivência” (de Nachleben), isto é, de transmissão, recepção e polarização.

É nesta perspectiva que podem ser compreendidos os dois grandes projectos daquele que Walter Benjamin definiu como um “espírito nobre e notável”, representante de “um tipo de erudito senhorial, esplendidamente inaugurado por Leibniz”: a Biblioteca que tem o seu nome (Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg - KWB), e o Atlas de imagens, o Bilderatlas, a que deu o título Mnemosyne, palavra grega que também tinha sido colocada, numa placa, à entrada da Biblioteca (o que mostra a íntima relação entre ambos). Tanto ou ainda mais do que os seus escritos (cuja edição, ainda em curso, se tem revelado um processo complicado e cheio de sobressaltos), estes dois projectos constituem uma herança fundamental deixada por Aby Warburg, em termos de conhecimento e de metodologia.Para a sua Biblioteca, Warburg começou a coleccionar livros quando tinha cerca de vinte anos, mas ela só foi fundada em 1902. Foi sobretudo a partir dos primeiros anos do século XX que ela começou a enriquecer-se de maneira sistemática e a ganhar a configuração de uma biblioteca particular que, no entanto, já começava a ser pensada para ter um uso público. Quando, em 1918, Warburg tem de ser internado numa clínica por causa de uma doença mental, é Fritz Saxl quem fica a dirigi-la e a organizar nela conferências interdisciplinares que, na época, têm um papel importantíssimo. Isto mostra como a Biblioteca Warburg tinha adquirido a capacidade de se autonomizar do seu criador. É à sombra desta biblioteca, e dos métodos de Warburg, que nomes tão importantes como Ernst Cassirer e Panofsky, entre outros, desenvolverão uma parte muito importante da sua investigação. Em 1933, a Biblioteca, composta de sessenta mil livros e de um enormíssimo arquivo de imagens, é transferida para Londres, em dois barcos, justamente a tempo de ser salva da fúria nazi. Mais tarde integrada na Universidade de Londres, esta Biblioteca é o núcleo fundador do importante Instituto Warburg. 

O estudo da relação entre a palavra e a imagem, para o qual tanto o Bilderatlas como a Biblioteca Warburg (cada um por si e na relação mútua que estabelecem) oferecem um importante material. É esta relação que pode iluminar  a concepção warburgiana de iconologia, para a qual reservava o nome de “iconologia do intervalo”. Por outro lado, as imagens do seu Atlas (tal como os livros na sua Biblioteca), podiam estar sempre a ser alteradas na sua disposição. Nesse aspecto, representam aquilo a que hoje poderíamos chamar um hipertexto visual. Ora, não só é possível relacionar os métodos de investigação de Warburg com os “media” actuais, mas ver também o seu Bilderatlas como o percursor da biblioteca de arte electrónica ou do ciber-museu, tal como a Internet, hoje, nos faculta. Em 1923, numa célebre conferência que pronunciou na clínica psiquiátrica de Kreuzlingen, onde esteve internado durante cinco anos, e com a qual deveria provar que já estava em boas condições mentais para regressar a casa, Warburg fez uma incursão antropológica ao «ritual da serpente» dos Índios Pueblo, que tinha visitado vinte e oito anos antes, numa viagem à América. Aí, mostrando como o paganismo primitivo dessa tribo índia passa pelo paganismo da Antiguidade clássica e chega até ao homem moderno sob a forma de Nachleben, Warburg defende que  cultura humana evolui para a razão, o que significa, explicado na sua linguagem, que o símbolo substancial se transforma naquele simbolismo que só existe no pensamento. É a isto, e só a isto, que ele chama evolução da cultura humana. A história da cultura, mostrada em imagens, em símbolos, em monumentos que sobrevivem à história efectiva, apresenta-se, assim, para ele, como um processso de conquista (nunca finalizado, nunca obtido de uma vez por todas) deste Denkraum que é o resultado do confronto entre os pólos da realidade e da abstracção, da religião e da lógica, da prática mágico-religiosa e da visão matemática do mundo. O problema fundamental que se apresenta a Warburg, aquele que determina toda a sua visão da história, é este entrelaçamento de mito e iluminismo como componente essencial do pensamento ocidental. Nalguns momentos paradigmáticos do advento da razão – como são o Renascimento e a Reforma – ele descobre que o processo de desmitização (a dialéctica da Aufklärung) se revela problemático. Por isso é que o confronto entre as tensões bipolares tem a dimensão de uma luta trágica. Assim, a concepção da história de Warburg  implica um diagnóstico que nos dá conta de uma tragédia: a tragédia da cultura.

A Primavera de Sandro Botticelli

 Sandro Boticelli nasceu e morreu em Florença (1445-1510). Foi discípulo de Fra Filippo Lippi, cujos modelos seguiu no início da actividade. Salvo curto período em Roma (1481-82; História de Moisés, Capela Sistina), permaneceu sempre em Florença. Serviu os Medici, em especial Lorenzo di Pierfrancesco de Medici (primo de Lorenzo de Medici), muito ligado às obras de Poliziano e Marsilio Ficino), para quem pinta em 1478-1484 as célebres Primavera e Nascimento de Vénus. Foi para Lorenzo di Pierfrancesco que Botticelli fez os desenhos para uma das edições da Divina Comédia de Dante. A leitura do quadro deve ser feita da direita para a esquerda. A primeira tríade de personagens representa a metamorfose da ninfa Clóris na esplendorosa Flora, por acção do vento fecundante da primavera, Zéfiro, inspirando-se num passo dos Fastos, do poeta latino Ovídio. Assim se justificam as cinco centenas de espécies botânicas representadas, atapetando os diferentes planos da composição, documentando o interesse para-científico dos artistas do Renascimento pela Natureza. Em contraponto, no lado oposto, vemos uma segunda tríade, constituída pelas Três Graças, Castidade, Beleza e Volúpia. Entre as duas tríades, Vénus, Deusa do Amor, comanda a acção que seu filho, Cupido, energia do Amor, desencadeia, ao disparar, cego, as flechas com o fogo da Paixão, na direcção da Castidade. Se, na primeira tríade, vemos um princípio produtor, em que a Paixão fecunda a terra e a transforma «em sons e cores» (como diria Fernando Pessoa), na segunda emerge um princípio conversor, em que a energia do Amor Divino desencadeia na Alma a procura da Verdade. E, de facto, o olhar da Castidade vira-se para Mercúrio, última figura desta istoria, mensageiro dos Deuses, líder das Graças e intérprete dos segredos, que, afastando com o seu caduceu as nuvens da obscuridade, conduz o intelecto  na contemplação da luz escondida da Beleza intelectual. Uma tão sublime interpretação plástica do ideal do Amor e da Beleza, tal como o concebia o Humanismo florentino,  dificilmente voltaria a ser alcançada, pelo que este quadro  se transformou no ícone do próprio Quattrocento, coração  artístico e filosófico de um Renascimento que será sempre,  na história dos homens, uma eterna Primavera.

O título da obra, Primavera, decorre de uma referência do pintor e escritor florentino Giorgio Vasari (nas suas Vite, 1550), segundo o qual a pintura “significa a Primavera”. De acordo com E. Wind, as fontes clássicas utilizadas por Botticelli foram principalmente os textos de Poliziano e, deste, as referências às Odes de Horácio e aos Fastos de Ovídio, sempre em episódios não forçosamente interrelacionados.  Na cena da direita vê-se Zéfiro, o vento da Primavera, de bochechas inchadas a tentar tocar a ninfa Cloris, que procura escapar-lhe sem, no entanto, o conseguir. Do vento que sai da boca de Zéfiro escapam algumas flores que, ao tocarem Cloris, a transformam em Flora, a terceira figura do grupo e a mensageira da Primavera. Iremos encontrar nos Fastos de Ovídio o jogo etimológico que transforma a ninfa Cloris a deusa romana Flora: (Chloris eram quae Flora vocor).  Há neste primeiro grupo clara alusão a um ciclo de tempo, não um tempo cronológico stricto sensu, mas do tempus  que a idea platónica compõe ciclicamente. Como diz Wind,  a criatura primitiva e tímida de Cloris (como Ovídio a descreve)  dá lugar à beleza vitoriosa da Flora. Mas foi essa timidez e singeleza de vestuário - uma túnica transparente e denunciar nudez -  que atraiu Zéfiro e fez dele “um fiel marido que a fez germinar e  exibir mil cores de flores novas( Cf. Fastos)”. O grupo da direita está evidentemente relacionado com as três figuras da esquerda, as Três Graças, baseado numa dialéctica ovidiana da trilogia pulchritudo, castitas, voluptas. Enquanto no grupo da direita se denota a criação da Beleza, na figura central da pintura – a deusa Vénus, como sugeria Vasari –, é desta divindade que decorre a presença das Três Graças, as ninfas sempre ao seu serviço. Ao alto, sobre a cabeça da deusa, um Cupido de olhos vendados dirige a seta para a Graça no centro do grupo de três. Observando o grupo das Três Graças vemos que se relacionam com uma dança, denunciada pelo modo e sequência de movimento. A Graça ao centro é, pelo seu vestuário e ausência de adornos, a Castitas. Veja-se a simplicidade do vestuário e a simplicidade das pregas da túnica, em evidente contraste com as suas companheiras. Por outro lado o rosto apresenta uma expressão triste e melancólica enquanto a Voluptas exibe vistoso penteado, com serpenteantes tranças, uma jóia sumptuosa no peito, e túnica a acentuar as curvaturas do corpo. É a energia voluptuosa. A terceira graça, a Pulchritudo, é a mais atractiva e exibe com orgulho a  sua beleza. A sua jóia é mais modesta e os cabelos não esvoaçam, serpenteantes, mas exibem um penteado cuidado menos espectacular que o da Voluptas.      O facto de as Três Graças se apresentarem vestidas com túnicas e não nuas, como acontece em pinturas de outros mestres em épocas mais tardias, decorre uma vez mais de autores clássicos como Horácio e Séneca. A Horácio se deve  a gestualidade e o facto de não olharem, de modo exibicionista para o exterior.

Aquilo a que Wind chama coreografia da dança corresponde, mais uma vez, a alusões na literatura clássica: “Ille consertis manibus in se redeuntium chorus” (Séneca). Estes atributos e gestualidade, que decorrem de fontes literárias, «reforçam o sentido da acção» (Wind). «Enquanto a “verde” Castitas e a “abundante” Voluptas avançam uma para a outra, a Pulchritudo mantém-se pura e serena no seu esplendor, aliando-se à Castitas, agarrando-a pela mão e unindo-se à Voluptas num gesto florido» (Wind).  Há, naturalmente, um sentido dialéctico neste relacionamento entre as Três Graças  (e sob este ponto de vista encontramos aproximações entre as perspectivas de E. Wind e de E. Panofsky), sentido que se definirá pela «oposição», «acordo» e «acordo na oposição», atitudes reflectidas pelos movimentos corporais, a elegante colocação das mãos entrelaçadas e, no caso da Voluptas e da Pulchritudo, unidas como que formando uma coroa sobre a Castitas, que elas próprias vão iniciar no Amor e, consequentemente, na tríade que acompanha Vénus. A ideia de Vénus, tradicionalmente identificada com a deusa do amor, sofreu algumas alterações desde as palavras do humanista Pico della Mirandola (que seguiu Plutarco) até Marsílio Ficino que, ao retomar, em versão própria, o mesmo Plutarco,  permitiu a Sandro Boticelli a introdução na dança das Três Graças de um sentido de decoro, sentido ausente da «enérgica vitalidade» (Wind) da relação do grupo da direita, quando Zéfiro se aproxima de Cloris, produzindo uma Flora com o «aspecto de jovem camponesa louçã» (Wind). Seguindo à letra a interpretação de Edgar Wind, “quando a Paixão (na figura de Zéfiro) transforma a fugidia Castidade (Clóris) na Beleza (Flora), a progressão representa o que Ficino chamou de «tríade produtiva»”. Daí que, quando estas três figuras se “transformam” nas Três Graças, passam a uma «tríade convertida» em que a Castitas, ao centro, se mantém virada de costas para o observador dirigindo o olhar para o “mais além”. E esse mais além é, nada mais nada menos, que a figura de Mercúrio que ergue o caduceu não para os frutos que pendem da árvore, mas sim para o pequeno grupo de nuvens que se acumula junto dos ramos. Qual a razão da presença de Mercúrio neste conjunto ? Resumindo os textos de Wind e as fontes clássicas, designadamente Vergílio (Eneida) e Boccaccio (Genealogia dos Deuses), conclui-se que Mercúrio, o guia das Três Graças, é simultaneamente quem conduz ao mais além, simbolizado na pintura pelas nuvens. Curiosamente, esse mais além pode ser «lido» como a morte, identificável no seu manto pelo símbolo neoplatónico das múltiplas chamas invertidas  (divinus amator). Mercúrio assume aqui uma multiplicidade de funções e significados que estabelecem o relacionamento não só com os grupos citados, mas também com a deusa Vénus. O deus que domina as nuvens e ventos “não era apenas o mais astuto e veloz de todos os deuses, o deus da eloquência [...], o guia das almas dos mortos, o acompanhante das Graças, o mediador entre mortais e deuses, o que salva a distância entre a terra e os céus; para os humanistas, Mercúrio era, sobretudo, o deus engenhoso, o do intelecto indagador, sagrado aos olhos dos gramáticos e metafísicos, o patrono dos eruditos e da interpretação, o revelador do conhecimento hermético, do qual o seu bastão mágico (o caduceu) chegou a ser símbolo” (Wind). De todas estas funções, a que mais se aproxima do significado do  grupo das Três Graças será a da divindade que atinge o «mais além». E não por acaso, Botticelli representou a Castitas de costas para o observador, dirigindo o olhar para o mais além representado no poder de Mercúrio, seu guia e companheiro. Será ele que romperá as nuvens e permite acesso à luz divina.

   Dada a filiação da pintura nos textos clássicos e no Humanismo que retoma essas referências, é de concluir, como Edgar Wind (e também como Panofsky e, de certo modo, com André Chastel), que “não é possível compreender totalmente a composição da pintura, nem completamente o papel de Mercúrio, até que se observa a simetria de composição entre esta divindade e Zéfiro”.  Virar as costas ao mundo com o distanciamento de Mercúrio e regressar a ele com a impetuosidade de Zéfiro são duas forças complementares do Amor, de que Vénus é a guardiã e Cupido o agente: «A Razão é a rosa dos ventos, mas a paixão é a tempestade» (Alexander Pope, sefgundo Wind)”.  Se Zéfiro simboliza o vento, Mercúrio é o condutor das nuvens e, por consequência, espécie de deus do vento (Ventus agere Merurii est, Boccacccio, in Genealogia dos Deuses). “Zéfiro e Mercúrio representam duas fases de um processo periodicamente recorrente: o que desce à terra como sopro da paixão regressa ao céu no espírito da contemplação”.

 

 Biliografia seguida neste texto de apoio

André Chastel, Marsile Ficin et l’Art, Genève, Droz, 1996

Giorgio Vasari, Les Vies des Meilleurs Peintres ...., Vol 4, Paris, Berger-Levrault, 1983, pp. 253-266.

Erwin Panofsky, Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, Lisboa, Presença, 1981

Erwin Panofsky, Estudos de Iconolgia, Lisboa, Estampa, 1986

Edgar Wind, Pagan Mysteries in the Renaissance, Oxford University Press, 1980 (ed. espanhola Los Misterios Paganos del Renacimiento, Madrid, Alianza, 1998). Um Mirella Levi d’Ancona, Due quadri del Botticelli eseguiti per nascite in Casa Medici, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1997