Ainda a Teoria das Artes na Contra-Reforma: o caso da Évora de D. Teotónio de Bragança.

3 Maio 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Aborda-se, na sequência do estudo do DECORUM e da teoria estética que o Concílio de Trento promulgou, a figura de D. Teotónio de Bragança à frente do Arcebispado de Évora em 1578-1602, mostrando a importância dos seus empreendimentos construtivos e de decoração artística e o modo actualizado como adaptou os princípios tridentinos do ‘restauro storico’ e de revitalização das ‘sacrae imagines’ em lugares de alegado culto paleo-cristão. O prelado, leitor de Cesare Baronio e S. Carlo Borromeo, desenvolveu um novo tipo de arquitectura sacra servindo-se de artistas de formação romana, como o seu arquitecto e escultor Pero Vaz Pereira. A arte que nasce em Évora no fim do século XVI, sob signo da Contra-Maniera, atinge assim um brilho que rivaliza com os anos do reinado de D. João III e do humanista André de Resende. Velhos cultos e novos temas iconográficos emergem com D. Teotónio, como os de S. Manços, S. Jordão, S. Brissos, Sta Comba, S. Torpes e outros mártires considerados eborenses. Fez encomendas em Madrid, Roma e Florença para enriquecer a Sé e o Mosteiro da Cartuxa, por si fundado. Trata-se, portanto, de um capítulo notabilíssimo da arte portuguesa sob signo de Trento, que merece ser devidamente analisado.  

Foi especialmente relevante o papel de D Teotónio de Bragança (1530-1602), quarto Arcebispo de Évora, na implementação dos valores de reforma que a Igreja Católica assumira com o Concílio de Trento (1545-1563). Embora sempre se tenha destacado mais no seu múnus o aspecto catequético, em termos de revisão teológica, de apoio assistencial e de estratégias a favor da Arquidiocese (em contraste com o governo precedente do Cardeal-Infante D. Henrique, um homem da Renascença), a verdade é que tal acento de proselitismo contra-reformista só foi possível porque ele dispôs de uma base muito sólida de investigação histórica, assente num gosto romanizado e na consciencialização da importância de um património comum. Nesse sentido, a figura de D. Teotónio de Bragança mostra (como aliás já acentua o seu capelão e biógrafo Nicolau Agostinho) um originalíssimo perfil de prelado imbuído de intuitos renovadores. A sua acção construtiva não se resume a obras de eleição como foram os Mosteiros da Cartuxa de Scala Coeli e de Santo António da Piedade, ambos muito conhecidos e bem estudados. Durante os vinte e três anos de governo daquela que era uma das maiores arquidioceses da Cristandade, o ilustrado epíscope preocupou-se em recuperar o património paleo-cristão, em definir estratégias de restauro storico segundo as directrizes romanas de autores como Cesare Baronio, e em organizar os programas de decoração sacra das igrejas dentro dos princípios romanos promulgados na Roma Felix e dominantes durante o pontificado de Sisto V (1585-1590)  Essas linhas caracterizadoras de desenvolvimento da Évora teotonina assinalam um caminho que, em reacção aos ataques da Reforma protestante, atestou as valências da antichità christiana do seu historial, reforçada pela afirmação de santos eborenses como São Manços, São Jordão, Santas Comba e Inonimata, Santos Vicente, Sabina e Cristeta, São Torpes, São Cucufate, São Brissos, e outros alegados mártires alentejanos da era paleo-cristã em parte já assinalados nos textos dos humanistas (como o de André de Resende, Historia da Antiguidade de Cidade de Evora, 1553), mas que são nesta altura alvo de novas investigações e de uma política de reabilitação construtiva dos lugares de devoção.

Trata-se, por isso, de uma personalidade relevante e absolutamente original no contexto do mecenato português do século XVI. Com ele, as directivas conciliares de Trento não se resumiram a novos dispositivos de organização da Igreja e de controlo da sua estratégia imagética, antes incorporaram uma reflexão profunda sobre as bases histórico-arqueológicas do Cristianismo no território eborense sob sua jurisdição. É certo que, como escreveu Flávio Gonçalves, «a Igreja apoderou-se nesse período do comando da arte religiosa, a fim de a expurgar das notas tidas por censuráveis e de promover uma iconografia de combate, de testemunho e de catequese», mas a par dessa defesa do papel didascálico das imagens sagradas contra o falso dogma, D. Teotónio soube aplicar o conceito e a prática do restauro histórico (tal como, desde Roma, defendera o Cardeal Baronio). Utilizando a experiência e o pramatismo contra-maneirista dos seus arquitectos (um deles, Pero Vaz Pereira, mandado formar por ele na própria Roma), o Arcebispo reformulou velhas igrejas góticas da cidade, como São Tiago, por exemplo, conferindo-lhes um gosto mais consentâneo com o que entendia ser uma espécie de espacialidade comunitária. Nos interiores, defendeu uma linguagem exuberante (em contraste com a austeridade dos exteriores), recorrendo a programas de arte total onde a talha dourada, a obra de massa, o stucco e o fresco se unem para moldurar paredes e coberturas, ritmar alçados e criar um gosto ornamental de novo tipo, por certo inspirado nas igrejas romanas da era de Sisto V. A renovação da igreja de São Tiago, na cidade, e das matrizes das freguesias rurais de Nossa Senhora da Graça do Divor e de São Pedro da Gafanhoeira, são bons exemplos deste gosto teotonino, aliás seguido depois, com idênticas tipologias, em tantas paróquias e casas monacais da Arquidiocese durante o múnus do seu sucessor D. Alexandre de Bragança. O recurso a um escol artístico de eleição -- como foram os arquitectos Mateus Neto, Nicolau de Frias e Pero Vaz Pereira, os pedreiros Jerónimo de Torres e Jorge Pechim, os entalhadores Ascenso Fernandes e Diogo Nobre, os pintores Francisco João e Custódio da Costa, o fresquista José de Escovar, o ourives João Luís, o bordador António Garcia, e outros artistas eborenses cujas actividades vão sendo aos poucos melhor esclarecidas, sem esquecer os estrangeiros, como o neerlandês Duarte Frizão, que foi o pintor ao serviço do Arcebispo e faleceu em Outubro de 1596, e o pintor também nórdico Isbrant de Renoy, activo para os carmelitas de Évora -- mostra as possibilidades abertas para a concretização do projecto renovador tridentino do Arcebispo. Sabemos, por nova documentação, que fez encomendas custosas de esculturas em Valladolid, de têxteis em Lisboa, de paramentos e pratas em Florença; e que à data da morte, tinha em curso a intenção de comprar vestimentas litúrgicas numa oficina florentina, compra essa que foi inviabilizada pelo governo de sede vacante. Vemo-lo, assim, a enriquecer substancialmente os acervos catedralíceos, a promover novos temas iconográficos, a valorizar o estatuto social dos artistas a seu serviço, e a definir uma tipologia construtiva distinta da que pautara a arquitectura eborense precedente. Todo este esforço para modernizar a produção artística, qualificando-a com bases históricas e segundo os preceitos da ars senza tempo, transformaram a Évora do final do século XVI num caso excepcional de sucesso em termos construtivos e de renovação do seu património, que merece ser investigado. Neste sentido também (e apesar dos surtos de pestes ou de anos de carestia devido a más colheitas agrícolas), a cidade de Évora dispõs de circunstâncias privilegiadas para assumir os dispositivos tridentinos nas suas componentes fundamentais de prestígio histórico, de assistência cívica, de organização social, de memória paleo-cristã e de dinâmicas de crescimento.

Foi fundamental para a formação intelectual e teológica de D. Teotónio o papel doutrinário renovador do Concílio de Trento, muito em especial a faceta de valorização do património histórico e arqueológico paleo-cristão, o que conduziu os responsáveis da Igreja Católica a desenvolver, dentro da sua reorganização global pós-conciliar, uma prática de conservação e valorização dos lugares de culto do cristianismo primevo. Essas bases doutrinárias estão consubstanciadas nas obras de autores como os Cardeais Cesare Baronio, Carlo Borromeo, Roberto Belarmino e Gabriele Paleotti, sem esquecer também o papel do português D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga com presença em Trento, obras essas com presença certa nas bibliotecas eborenses, como era a do Arcebispo, ou a dos nobres Castro, Condes de Basto e governadores militares da cidade. A arquitectura sacra foi repensada no âmbito do Concílio de Trento seguindo o princípio da Restauratio est Rinnovata Creatio, que D. Teotónio acolheria, ao defender a subordinação do espaço sacro a uma liturgia empenhada em seduzir e esclarecer (animos impellere), tomando como acento o valor histórico-arqueológico e devocional, motor da intervenção sobre as preexistências, transformadas por necessidades de adaptação ao crescimento das comunidades (instaurare). O conceito de restauro storico do oratoriano Cesare Baronio, «peritissimus antiquitatis», assentou nessa revalorização do papel do historiador como investigator veritatis capaz de adaptar os espaços sagrados às novas funcionalidades do tempo, sem lhe retirar autenticidade. Por isso, o papel das artes de decoração como fonte afectiva, documental e pedagógica, Ad Perpetuam Rei Memoriam vs. Ad Majorem Gloria Dei, torna-se um verdadeiro programa de valorização patrimonial da Igreja. A recuperação do locus sacrum através de um tipo de «restauro devoto», apto a devolver função litúrgica do espaço que os tempos desmemorizaram e arruinaram, enriquecido entretanto por actualizações estéticas mas com atenção às questões conservativas, é assunto que está em debate na Évora deste momento, dentro da tradição humanística, de Resende a Severim de Faria. Surge assim, com as teses de Baronio, uma defesa consequente do facto histórico através da compilação da História da Igreja, com análise rigorosa das fontes documentais, filologicamente organizadas, e com estudo arqueológico das preexistências arquitectónicas (paleocristãs, românicas ou mesmo góticas), o que permite seguir um método de revalorização do património católico com eco na Arquidiocese de D. Teotónio. Como já se afirmou, «as fontes históricas passam a ser objecto de dupla investigação, filológica e patrimonial, abrindo campo dos arquitectos, escultores, pintores, douradores, imaginários, entalhadores, estucadores, azulejadores, ourives e outros artistas para o cumprimento de uma espécie de arte senza tempo pontuando o triunfo de Roma e a autoridade absoluta da Igreja Católica». Com as obras de Baronio, definiram-se os princípios que deviam regular o restauro storico dos velhos lugares de culto paleo-cristão e, bem assim, as normas para uma arquitectura tridentina senza tempo. O restauro da igreja de São Nereo e Acchileo, em Roma, obra que o Cardeal orientou, foi uma intervenção modelar no que toca ao respeito pela preexistência, tal como prescreviam os princípios tridentinos, depois de o templo ser devidamente estudado e analisado. Para os conceitos baronianos, segundo Gabriella Casella [4], as igrejas paleocristãs e medievais deviam ser vistas a essa luz e como opus antiquitatis, ou monumentos, pelo que era imperioso restaurar as suas estruturas, e as suas decorações de tipo neo-constantiniano, em respeito à estratificação do tempo. Existe uma dimensão de encomenda heróica, acto providencial de agentes tutelares, com intervenção apta a preservar a memória do sítio hierofânico assente em avaliações qualitativas das existências e das intervenções recomendadas. É por isso que a cumplicidade territorial e a memória histórica da Igreja se fundem, como afirma explicitamente nos Annales, numa força identitária cristã que é comum à vastidão dos territórios abrangidos e que vem consolidar a sua própria auctoritas. O Papa Gregório XIII, que Baronio tanto elogiou pela sua politica de restauro, enviou em 1572 o Breve Cum sicut ao Arcebispo e Vigários de Braga, onde ordenava que os eclesiásticos custeassem a restauratio das antigas igrejas para proveito da auctoritas romana. Os valores baronianos surgem aplicados à realidade portuguesa, também, no manuscrito De Antiga et Veneranda Species Aedificatione Religiosa in Regni Portucalensis Pro Maxima Causa Christiana descoberto por Gabriella Casella na Biblioteca Vallicelliana de Roma, onde a identidade lusitana se reforça de carácter providencial através das crónicas que aludem a milagres, relíquias e santos locais – ou seja, uma hagiologia autóctone que assenta numa encomenda heróica que integra discursos documentais e memoriais. Esse manuscrito, firmado com o monograma M.L., prova a força de um método baroniano-tridentino aplicado às várias regiões, onde a intenção apologética reforça o peso da antiguidade cristã e a identidade de uma comitência nacional. Embora não referindo especificamente no caso de Évora, refere-se o papel histórico assumido por Portugal na intenção subliminar que Baronio lhe atribuía: o seu contributo para a Reconquista da Península e a cristianização do território, traduzida na aedificatione ecclesiae et fondatione monasterii per mano genus portucalensis.


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