Arte e teatro: Ut Pictura Theatrum.

29 Maio 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Falta-nos ainda uma leitura ampla do papel da imagética artística portuguesa, vista em contexto e em trans-contexto, recorrendo a uma arqueologia de saberes e ao olhar da Iconologia, para que a relação da teatralidade com a literatura e as correntes espirituais possa surgir com outra nitidez e contribuir para dissolver a espuma do tempo que dificulta a leitura integral das obras de arte à luz dos seus sentidos plurais. O ensaio da historiadora de arte Emmanuelle Henin, Ut Pictura Theatrum. Théatre et Peinture de la Renaissance italienne au Classicisme français (Genève, éd.Droz, 2007), abre justamente esse caminho: destaca as similitudes entre a teoria das artes plásticas e os escritos sobre Teatro e arte dramática, e as flagrantes parecenças que existem entre a arte de comover através da pintura de História (seja sacra, política, alegórica ou mitológica) e o drama que se representa em palco.O estudo da pintura 'Representação Teatral na Corte de Lisboa', peça portuguesa da primeira metade do século XVII, exposta no Museu da Cidade, constitui um raríssimo testemunho 'de género' que demonstra a relevância da arte teatral na vida quotidianas olisiponense e no sistema cultural do Barroco. É uma peça deveras importante como retrato explícito de uma representação de teatro na Lisboa seiscentista, considerado como um trecho do Pátio das Comédias e, por isso, de singular valia em termos históricos, iconográficos e artísticos. Pode ser justamente visto a essa luz no contexto da cultura artística do tempo da Restauração, tal como a originalidade de Molière (como diz Henin) decorre do seu talento de pintar a verosimilhança através da caricaturação da vida real.  Modelo eterno das artes da imitação, da ars naturans e da ut pictura poesis, a arte da Pintura passou a assumir os gestos da linguagem, a expressão das emoções vivas e a teatralidade dos discursos humanos.Em muitas obras de arte da Contra-Reforma se revelam sentidos de teatralização profana aliados a dinâmicas sacras dentro de um possível proscénio imaginizável que visa acentuar o poder da retórica comunicativa transcontextual  às artes plásticas, das mais eruditas às de feição ‘ingénua’. Trata-se de estratégias distintas de conceber o discurso da composição, mas com um mesmo sentido: o de perpetuar uma impressão durável de carga simbólica, gerando imagens em movimento perante os espectadores (Figura de jogral tocando alaúde, pormenor de fresco anónimo de 1593 (ou 1597 ?) num ciclo decorativo sacro na igreja matriz de Veigas (Bragança).

Não são muitos os testemunhos existentes na pintura portuguesa da Idade Moderna que, de modo mais ou menos explícito, digam respeito a Teatro, e poucos também são os estudos já levados as cabo em torno das relações entre Artes Plásticas e Teatro em terreno português, se se excluir o caso do importante ensaio de João Nuno Sales Machado, A Imagem do Teatro. Iconografia do teatro de Gil Vicente. Leitura de “Breve Sumário da História de Deos (tese de Mestrado na Faculdade de Letras de Lisboa, 2002), onde o autor aprofunda a relação entre o Teatro de Gil Vicente e os sentidos teatralizantes da pintura coeva e em outras representações na pintura antiga.A arte contemporânea do pós-guerra, ao privilegiar o happening, a instalação, a performance, veio desenvolver novas dinâmicas de teatralização. O papel que na época grega foi atribuído ao proscenio como espaço na representação, ao criar uma espécie de suspensão da acção, gerar novas dimensões trans-contextuais e prolongar o uso da mediação pública, abriu à pintura esse papel de mediador activo (a que aludea obra de Friedrich Kittler sobre o papel mediador das artes),  dotando o discurso pictural de um suporte proscénico imaginizável. A partir da crítica de Platão à teatralidade (desvirtuava a missão da arte, gerava a perda do simbólico e icónico e o equívoco), a exposição no Museu Berardo (CCB) Um Teatro sem Teatro (2007) -- o dadaísmo de Daniel Buren a Mike Kelley, Oskar Schlemmer, Dan Graham, o pós-minimalismo de Bruce Nauman e James Coleman, etc --, propõs uma reflexão sobre intercâmbios entre Teatro e artes visuais. A partir da transformação do espaço clássico do Teatro (Vsevolod Meyerhold, Antonin Artaud, Samuel Beckett, Tadeusz Kantor) e a sua ligação à vanguarda (futurismo, dadaísmo, construtivismo), o fervor inventivo dos anos 60-80 veio assumir tentativas de união entre Teatro e Pintura, com consequências de tais contributos na produção dos mercados da arte. Mostram-se outros sentidos da teatralização e dinâmicas possíveis daquilo que chamamos proscénio imaginizável a fim de se acentuar o poder da retórica comunicativa transcontextual nas artes plásticas:  à esquerda, um pormenor da Tentação de São Jerónimo pelas mulheres demoníacas, pintura maneirista de Simão Rodrigues-Domingos Vieira, c. 1615 (sacristia do Mosteiro dos Jerónimos), e à direita uma pintura de Oskar Schlemmer patente na exposição Um Teatro sem Teatro, no Museu Berardo, CCB, Lisboa, 2007. São estratégias distintas de se conceberem os discursos da composição mas ambas têm um mesmo sentido: o de perpetuar uma impressão durável de carga simbólica. 

O Mundo como Teatro. Estudos de Antropologia Histórica de Peter Burke (ed. Difel, 1992, com  trad. Vanda Anastácio, col. Memória e Sociedade dir. por Diogo Ramada Curto), é um clássico para estudo do imaginário do Teatro e caracterização dos media no contexto da Europa dos séculos XVI-XVII. A visão plural das sociedades, dos sonhos, da história urbana, das crenças populares, da literatura de cordel, da festa e do efémero, da teatralização do poder, das correntes das artes, da reforma das Universidades, abrem-se à análise de Burke e definem uma dimensão comparatista muito ampla. O Teatro, entre outros dispositivos de comunicação influentes, capaz de intervir no espaço da existência humana, torna-se  chave fundamental para a inteligibilidade dos canais de narratividade activa. A série da Vida de São Jerónimo da sacristia do Mosteiro dos Jerónimos, pintada no princípio do século XVII, é um óptimo exemplo desse sentido da narratividade teatralizada aplicável às artes plásticas em tempo de Contra-Reforma e no contexto da arte católica de propaganda.

«Aos milagres do nosso Teatro oferecemos pedaços artesanais do nosso corpo, das nossas criações, guardados nos relicários da alma. O teatro como o lugar do sagrado e do profano em delicada união de opostos. Palco onde nosso corpo é imolado, o ego consumido a procura de coisa maior que ele. Soma de objetos encontrados, procurados, reencontrados no vulgar dia a dia e transfigurados num extra quotidiano a desafiar o racional. Na identificação de cada obra reunir cada fragmento, depois polir ou sobrecarregar na intensão de exprimir a sua essência. Desejo incontrolável de fixar o efêmero, dar-lhe memória, como faz nosso povo imortalizado nas fotografias e nos ex-votos que cobrem as paredes dos santuários. Não esquecermos as graças recebidas - os milagres de cada espetáculo e retribuirmos aqui nestas pequenas oferendas» (Ex-votos Teatrais: José Caldas, 40 anos de Teatro, Museu Nacional do Teatro).