Aspectos utópicos e defesa da 'felicitá' na Teoria das Artres no Renaascimento e alvores da Modernidade.
22 Fevereiro 2017, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Liberalidade, liberdade e utopia na arte do «largo tempo do Renascimento».
O longo tempo do Renascimento é analisado a partir da cultura artística portuguesa do século XVI, à luz das suas pluralidades e à luz do Humanismo, herdeiro de valias antropocêntricas que radicam na afirmação da liberalità, da virtù, da dignità, da felicità e da utopia como conceitos fundamentais de viragem histórica. Analisam-se casos de de estratégias de afirmação das artes nesse largo tempo do Renascimento que, com suas extensões e continuidades, foi vivenciado à luz, tanto do humanismo cristão, como do novo fenómeno de globalização mundial. As várias faces do Renascimento abrem-se ao olhar para a Antiguidade e para os Novos Mundos, alteram relações de trabalho e de mercado no campo das artes e afirmam o estatuto social do artista a outras luzes, bem como as estratégias do pensamento, da criação escrita e da representação do Outro. A abordagem proposta segue os princípios da análise trans-comparatista e trans-contextual do facto artístico, aplicada à conjuntura renascentista nacional, seguindo o princípio da conjuntura larga para analisar os fenómenos de persistência, de revitalização e de ruptura na lenta evolução dos comportamentos histórico-artísticos.
Para além de um Renascimento histórico que tem suas referências grosso modo durante a primeira metade do século XVI, existiu uma situação renascentista com prolongamentos naturais que tem ressonâncias até ao século XVII. Recorre-se também ao polémico ensaio de Claude-Gilbert Dubois Le Bel aujourd’hui de la Renaissance (2001), que nos veio revelar a persistência, no coração dos nossos dias, de várias mal pressentidas valências epi-renascentistas que persistem, sejam os sinais de representação mimética, a valorização da estética do Belo clássico, da natureza e da memória patrimonial, a perduração da consciência da liberalitá dos artistas e o sentido da última e grande utopia da individualidade partilhada e do ecumenismo fraternal a partir da prática artística -- valores esses sob cuja óptica vivemos, criamos e avaliamos as coisas segundo graus de consciência mais ou menos diluídos. O grande humanista, teólogo e latinista Benito Arias Montano (1527-1598), uma das mais notáveis personalidades da cultura europeia de Quinhentos, contribuíu muito, com as suas ideias e escolhas, para a sedimentação de uma Teoria da Arte em nome da felicità, ao defender a harmonia, o rigor doutrinária, a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica dotada de largo sentido de trans-contextualidade. Explorou as relações meta-textuais e imagéticas através da emblemática e um sentido profundo da Ut pictura poesis. Ao asdmirarmos a gravura que fez editar em Roma em 1577, chamada A verdadeira Inteligência (Idea) inspira o Pintor, aberta por Cornelis Cort (1533-1578) segundo desenho de Frederico Zuccaro, com poesia latina de Arias, lemos neste poema ilustrado todo um discurso sobre o papel emotivo e pedagógico das artes. Num tempo gravemente marcado pelas guerras de religião, Arias defende que as artes são remédio para os males que afligem a humanidade, recorrendo à imagem de um Olimpo onde a Caritas, a Prudentia, a Benignitas e a Fortituto têm valência qualificante do verdadeiro sentido da criação artística. Eis toda uma síntese da teoria estética de Arias Montano e dos princípios que o Humanismo cristão defendia.
É à luz destes pressupostos que trazemos à discussão alguns temas de pintura, de escultura e de arquitectura portuguesa do século XVI que podem ser vistos como testemunhos de uma nova mentalidade, sejam de manutenção de cânones (exemplos de arquitectura senhorial), de trans-memória (os mecenatos de D. Miguel da Silva em Viseu, de Frei Brás de Barros em Coimbra, do arcebispo D. Teotónio em Évora), de efusivo exotismo de «novos mundos» (o mecenato de D. Álvaro de Castro na Penha Verde ou o dos Condes de Basto em Évora), de formulação teórica (o tratado de Félix da Costa Meesen, Antiguidade da Arte da Pintura, de 1696), de retoma de modelos (casos de «filo-rafaelismo», p. ex.), ou de revitalização de módulos neo-renascentistas, entre muitos outros exemplos de arte portuguesa que se poderiam citar. Como diz o humanista André de Resende no Oratio pro Rostris (1534), «Agora que, por onde quer que se estenda, quase toda a Europa renasce, agora que todas as terras, até outrora mais bárbaras, aspiram à antiga felicidade do século mais culto», ou seja, existe uma consciência de liberalidade artística que aspira às utopias construtivas, à consciência da defesa dos patrimónios e à criação das artes como remédio para os males da humanidade.
A partir de Léon Battista Alberti e do De re aedificatoria (1453), e do conceito de 'scintilla divina', podemos seguir a existência de aspectos utópicos na Teoria da Arquitectura da Idade Moderna, que em meados do Séc. XV se começou a gizar com o referido Alberti (1404-72), com Antonio Filarete (c. 1400-c. 1465), Leonardo da Vinci (1452-1519), e na Hypnerotomachia Poliphili (ed. 1499). A utopia anuncia-se logo no Prologo do De re aedificatoria ao ser outorgada à Arquitectura, assim como às molte e svariate arti… dai nostri antenati indagate, a missão de render felice la vita, além de que a Arquitectura, ou melhor, a res aedificatoria, seria quanto mai vantaggiosa alla comunità come al privato, particolarmente gradita all’uomo in genere e certamente tra le prime [ou seja, entre as principais artes] per importanza. Em Vitrúvio a missão da Arquitectura era contribuir para propiciar uma vida boa, com saúde e em segurança, como se explicita na história do recinto fortificado transferido por M. Hostílio de um lugar insalubre para outro saudável. A salubridade, nomeadamente a defesa em relação aos ventos e climas agressivos (na tradição hipocrática, o ar era visto como causa de todas as doenças), a par da segurança, que levava a recintar as cidades com muralhas, são dos principais e primeiros aspectos tratados no De architectura, ocupando os caps. 4 a 6, do Livro I.Assim, quando Alberti proclama, nos alvores da Idade Moderna, como objectivo da Arquitectura, o tornar a vida feliz, opera-se uma significativa mudança: o que até aí era tido como visando singelamente melhorar as condições de vida, propiciando saúde e segurança, e fazendo-o com intencionalidade estética (a venustas, de Vitrúvio), passa a ter uma finalidade eudemonística: aos homens da Idade Moderna já não bastava a vida boa, saudável e em segurança, queriam uma vida feliz! E a Arquitectura, particularmente agradável ao homem em geral e das mais importantes das artes, deveria ter papel de protagonista nesse projecto eudemonístico, que já se anunciava no citado poema de Petrarca, onde parece anunciar-se, também, o expansionismo das almas belas e da virtude amigas, que tanto veio a caracterizar o Ocidente, e em que nós, portugueses, embarcaríamos a partir de 1415 com a expedição a Ceuta.
Mas aquilo a que se designa de Utopia Edificatória é a missão e o largo âmbito da Arquitectura, ou melhor, da res aedificatoria, tal como se define com Alberti, logo no Prologo do De re aedificatoria. À res aedificatoria é atribuído um tão vasto domínio, que somente os desertos lhe ficariam de fora, como séculos mais tarde o afirmará William Morris (1834-96), visando alertar para a delapidação da natureza pelos excessos da actividade edificatória do seu tempo. No Momus o del principe, obra de Alberti escrita ao mesmo tempo do De re aedificatoria, mas acabada dois anos antes, a actividade edificatória do homem é vista como contendo dons salvíficos, permitindo escapar à extinção a que os deuses, irados com a heresia de uma insurreição humana – de que Momus fora o instigador –, que começara com críticas à imperfeição da obra divina da criação do mundo e culminara no abandono dos sacrifícios e do culto aos deuses, tinham condenado o género humano, e o seu mundo, para criar outros mais perfeitos. Os homens, porém, quando se apercebem do perigo, retomam os sacrifícios e o culto, e desatam a construir enormes e magníficos templos, altares e estátuas, intentando aplacar a ira divina, o que faz com que Júpiter, quando desce à Terra com a sua corte, qual inspector de obras divinamente assessorado, fique posternado e sumamente comovido perante tanta beleza. Veja-se: «Júpiter era o que mais admirava as grandiosas e inúmeras colunas de mármore pário, verdadeiros pedaços de montanha, obra gigantesca e pensando pasmado como elas, tantas e enormes como eram, tinham podido ser transportadas e erigidas naquele lugar: embora as visse diante dos olhos, dizia que uma obra daquele género não era possível, e não mais acabava de olhar estaticamente e de louvar. Acusava-se no íntimo de nesciedade e obtusidade por não se ter dirigido aos arquitectos daquela obra maravilhosa, em vez dos filósofos [Júpiter consultara os filósofos, tidos como os homens mais sábios da Terra], para se aconselhar sobre a construção do Novo Mundo. Neste Novo Mundo, operis futuri, no latim, expressa-se claramente o utopismo de Alberti, e o papel reservado aos Arquitectos e à Arquitectura. Mas esta postura parece também prefigurar a 11.ª tese sobre Feuerbach, de Karl Marx, que dá primazia à transformação do mundo em detrimento da sua interpretação. Os filósofos limitavam-se a interpretar o mundo, os arquitectos visavam a sua transformação e a da realidade. – Daí talvez, um filósofo, Nietzsche, os ter considerado os grandes serventuários do Poder [10]. – Sim, porque Alberti é um espírito suficientemente nlúcido, consequentemente crítico, e demasiado complexo, para ter da Arquitectura uma visão simplista, apologética, ou corporativista. De resto, ao tempo, as corporações eram outras, contra as quais o conhecimento teórico de Alberti investe. – A sua visão da Arquitectura, da res aedificatoria, está inserida numa estratégia de “cultura de dominação”, que tendia a colocar o homem e a sua vontade de poder no centro do mundo – a Weltanschauung da Idade Moderna mais determinante –, e de que a passagem em que afirma servir essa actividade para estender e consolidar o poder [da pátria e da comunidade] é bem significativa. E a isto não podia deixar de estar associada uma certa má consciência, de que a visão irónica e cínica, ora utópica ora distópica, que se expressa em muitas das suas obras literárias, serve como testemunho eloquente.
Assim, pode-se concluir que a Utopia Edificatória, de Alberti, consiste acima de tudo na expressão do desejo de transformação do mundo e da realidade através da construção ou edificação. A edificação que está presente no título do que é considerado o seu tratado de Arquitectura, De re aedificatoria, e que, mais correctamente, deveria ser visto como um tratado sobre a Edificação, ou seja, sobre a Actividade de Construção do Mundo e da Realidade, sentidos como insuficientes e imperfeitos, mas susceptíveis de aperfeiçoamento, ou até de perfectibilidade. Esta concepção, de natureza utópica, da Arquitectura, e do Arquitecto como demiurgo, ou seja, como construtor do mundo, expressa-se de maneiras multiformes na Teoria da Arquitectura dos alvores da Idade Moderna, mas com especial incidência nas propostas de cidade ideal, de Filarete, Leonardo da Vinci, etc. O Trattato di architettura de Filarete, segundo texto teórico sobre Arquitectura produzido em Itália, e primeiro redigido em volgare (italiano) e contendo ilustrações, foi elaborado entre 1461-64, por Antonio Averlino detto il Filarete (φιλαρετής = amante da virtude), na corte de Francesco Sforza, Duca di Milano, ao tempo em que trabalhava nos projectos e obras do Ospedale Maggiore di Milano. No Trattato é proposta uma Arquitectura e um sistema de proporções com base nas medidas e proporções do homem, pois Adão fora o primeiro arquitecto, e a Arquitectura e as edificações, uma consequência do pecado original, porque o homem, exposto às agruras do tempo, tinha necessidade de abrigo. Apresenta uma proposta desenhada e exaustivamente descrita de cidade ideal, de natureza utópica, Sforzinda, de forma circular e traçado rádio-concêntrico de grande regularidade, inspirada na descrição da cidade eólica de Vitrúvio, de que, historicamente, constitui a primeira interpretação com expressão desenhada. A Cidade de Sforzinda: situava-se em um vale, sob bons ares, fértil e abundante, e seria uma cidade ideal, integralmente planeada, erigida de uma só vez; estava contemplada a sua relação com o restante território. A forma global da cidade resultava de um círculo com dois quadrados circunscritos, um rodado 45º em relação ao outro. O traçado de ruas é do tipo rádio-concêntrico, irradiando de uma praça central. Era recintada por muralhas e um fosso de água, com canais convergindo para o centro. No centro da cidade localizava-se uma ampla praça porticada, para a qual se dispunha a catedral, o palácio do Signore, o do município, o do capitão; no meio da praça haveria uma torre, feita à minha maneira, tão alta que por ela se discernirá o país; essa praça era articulada com outras duas, mercantis. Noutros pontos da cidade havia e são descritas escolas separadas para rapazes e raparigas, a prisão e a Casa do Vício e da Virtude, misto de biblioteca, academia, taberna, e bordel, que visava contribuir para a perfeição moral dos cidadãos. – Haveria muitos outros edifícios e construções, como um Labirinto no acesso à Fortaleza do Signore. A cidade tinha dimensões colossais, com um diâmetro de 28 estádios, equivalente a 6,3 km, qualquer coisa como um perímetro de 20 km, e uma área total de mais de 30 km2, i. é, mais de 3.000 hectares. Enfim, considerando como densidade média 200 hab/ha, era cidade para cerca de 600.000 habitantes... o que nesse tempo nenhuma Capital da Europa tinha, andando, na sua maioria, pelos 100.000 a 200.000 habitantes. Na edificação da muralha trabalharam 102.000 homens durante 10 dias, e utilizaram-se 300 milhões de pedras! tudo minuciosamente calculado. Enfim, trata-se de uma utopia urbanística, correlacionada com uma utopia política – a utopia de uma cidade-estado, organizada segundo um ideal aristocrata, onde as casas da poveraglia são escassamente contempladas, reduzidas aos aspectos funcionais, perchè non v’entra troppa spesa, neanche magistero –, e com um carácter de obsessiva organização e previsão, como se veio a revelar próprio das utopias. Mas o utopismo de Filarete não se limita a Sforzinda, a cidade ideal: há toda uma série de propostas de edificação do território, de que constam Portos de Mar, Aquedutos, Pontes, Igrejas, Templos, Castelos, Torres, Palácios, Monumentos… Enfim, toda uma panóplia de construções, em que parece ressoar a Utopia Edificatória de Alberti, e um análogo desejo de construir o Mundo.
O conjunto de Manuscritos com preceitos urbanísticos de Leonardo da Vinci, por sua parte, salienta a salubridade, questões hidráulicas conexas, e o projecto esboçado de uma singular cidade ideal A proposta urbanística de Leonardo da Vinci consiste num esquema de cidade de retícula quadrada, atravessada por canais derivados de um rio próximo; os canais e o rio tinham uma importância fundamental na estruturação da cidade do ponto de vista da higiene e da salubridade, e para a amenização do clima. As ruas seriam construídas em níveis diferentes: as do nível inferior eram destinadas à circulação de carros e outros transportes para as necessidades e o abastecimento do povo… Pelas ruas altas não devem andar carros nem outras coisas similares, sim que são só para uso dos gentis-homens. Deste modo, à diferença em níveis planimétricos das ruas corresponderia uma diferenciação de uso pelos níveis sociais da população. Pelas passagens subterrâneas devem-se vazar as retretes, estábulos e similares coisas fétidas. Estas iriam desaguar no rio, através de grandes esgotos. As casas eram elevadas sobre arcadas e formariam quarteirões na sua disposição, sendo outras, tipo casa-páteo, voltadas para o seu interior, mas também formando quarteirões. A cidade esboçada e descrita por Leonardo da Vinci parece, por um lado, prefigurar as grandes cidades contemporâneas, com níveis diferenciados de tráfego, que começaram por ser teorizadas, no princípio do Séc. XX, por Eugène Hénard, com o seu conceito de rues pour étages, e que o crescimento do tráfego automóvel e dos meios de transporte colectivo pôs em prática, através de túneis, viadutos sobre-elevados, e galerias. Por outro lado, se se atender à prescrição da total separação de classes sociais pelos diferentes níveis de arruamentos, parecem evidenciar-se as cidades descritas nas distopias da Modernidade, de Aldous Huxley, Eugeni Zamiatine, e George Orwell, e que são o correlato urbanístico das sociedades absolutamente estratificadas descritas nessas distopias. E, na realidade, o progetto di città e per una politica di urbanizzazione, parecem relevar mais da distopia do que propriamente da utopia. Com efeito, esta proposta de cidade, tão estratificada como jamais as houve (embora pareçam estar em marcha nos tempos que correm), e tudo isto conexionado com o desejo de autoridade para fazer a terra obedecer; ou edificar e acrescentar a cidade para tornar eterna a fama do principe, um condottieri, tende a caracterizar-se como expressando o desejo de edificação de uma cidade-sociedade radicalmente estratificada, onde se evitaria qualquer tipo de contacto entre os gentis-homens e a poveraglia, e vocacionada para o culto da autoridade, expansionismo, e obediência. É um tipo de ideal aristocrático, análogo ao expresso no Trattato de Filarete, como se viu anteriormente, e que faz duvidar da caracterização idealista e positivista, à maneira de Hegel, ou de Michelet, da Cultura da Idade Moderna, com o suposto ideal de Homem no Centro do Mundo.
O utopismo atinge um ponto alto na Hypnerotomachia Poliphili, 1499, obra de autoria incerta (Francesco Colonna ?), que narra um sonho e, dentro desse sonho, o passeio de um par amoroso por uma selva densa e obscura (clara alusão ao Inferno de Dante), onde, quase como clareiras no meio dessa emaranhada selva, vão surgindo magníficos vestígios de um passado glorioso – a Antiguidade Clássica! – materializados em monumentos, edifícios, ruínas e estátuas, além de amenos e agradabilíssimos jardins. Depois de terem visitado as ruínas de um Polyandrion, que prefigura o romantismo das ruínas e se revela como um cemitério cheio de arruínados túmulos, o casal de sonhadores vai ter a uma ilha, Citerea, onde tem lugar a sua união e a consumação da paixão, que motivara toda aquela viagem, talvez meramente onírica, como costuma ser próprio das Utopias. Esta ilha é de forma circular, com três milhas de perímetro por uma de diâmetro, e consiste num grande jardim, arquitectonicamente organizado segundo um traçado rádio-concêntrico, de grande regularidade. No centro da Ilha-Jardim havia uma Praça envolvida por um Anfiteatro dedicado a Vénus, e cuja forma parece evocar o Coliseu de Roma, com os seus três andares e as respectivas colunas, como na Antiguidade. Para os aspectos utópicos da Teoria da Arquitectura da Idade Moderna esta ilha é uma mina, pois tem analogias com as ilhas ou anéis concêntricos descritos por Dante em A Divina Comédia, e com a ilha de Atlântida descrita por Platão, e é claramente prefiguradora das ilhas de Utopia, de Thomas More, da New Atlantis, de Francis Bacon, e ainda da Civitas Solis, de Tommaso Campanella, além do que, pelo seu traçado, se deduz derivar da descrita cidade vitruviana e da filareteana Sforzinda, com os seus sistemas rádio-concêntricos. Mas o mais notável talvez é o sentido antecipatório, quer em relação às utopias urbanístico-arquitectónicas e utopias políticas, quer em relação ao culto dos jardins arquitectados ou pictóricos (picturesque), que se desenvolveria a partir dos Séculos XVII e XVIII, e que tantos aspectos utópicos viriam a revelar. Nas descrições de Citerea, Colonna faz coincidir rasgos de uma cidade ideal, do locus amoenus, e do reino de Vénus, todos eles em absoluta unidade de natureza e arquitectura. Pela sua regularidade, a ilha de Citerea de Colonna encontra-se a meio caminho entre Sforzinda de Filarete e as “insulares” utopias de estado de Thomas More e Campanella.
No total dos casos considerados os aspectos utópicos da Teoria da Arquitectura do Século XV salientam-se, revelando todo um forte desejo (libido aedificandi, como o designa Alberti) de transformação do Mundo, da Realidade, e da Vida, através de uma actividade edificatória (Industriam, Attività, a designaria Alberti), que toma por modelos a Arquitectura e Urbanística da Antiguidade, e que visaria restaurar o esplendor áureo (o aureo tutto, de Petrarca) dos Tempos Antigos, quando o Império Romano cercava todo o Mediterrâneo e se estendia pela maior parte da Europa Ocidental, Norte de África, e o Próximo Oriente. Esse desejo, nas obras e casos considerados, exprime toda uma pulsão utópica (propensão utópica, como já foi designada), assinalada com maior evidência de significado de forma e conteúdo nos aspectos seguintes:
-- Utopia Edificatória, de Alberti: transformação do Mundo através da res aedificatoria (ou Arquitectura), visando tornar a vida feliz, mas não fornecendo modelos concretos, mimetizáveis, apenas um conjunto de regras operativas.
-- Cidades Ideais, de Filarete e de Da Vinci: projectos de edificação de cidades ideais, inspiradas em Vitrúvio, marcadas pela regularidade do traçado geométrico – rádio-concêntrico (Filarete) ou ortogonal (Da Vinci) –, conexionadas com projectos de utopias de Estado, de sociedades aristocráticas.
-- Utopia Insular, da Hypnerotomachia
Poliphili: representação de um ambiente paradisíaco (locus amoenus)
e onírico, marcado pela regularidade de um traçado geométrico, inspirado
em Vitrúvio ou Filarete, em que se operaria a união de Cultura e Natureza (com
subordinação da Natureza pela Cultura), sublimada pela existência
de Monumentos Arquitectónicos e
Artísticos da Antiguidade, dispersos em todo o exótico
ambiente por onde os amantes fazem a sua viajem. Ao contrário de Alberti, os
outros casos exprimem-se em modelos desenhados.
Veja-se, ainda, o que se passa
com as Imagens Pictóricas de Cidade Ideal. Existe um tipo de pinturas
de ambientes urbanos imaginários, que se consideram como
constituindo autênticas imagens
de cidades ideais.
A autoria das pinturas não está exactamente determinada, hesitando-se entre
Luciano Laurana, Piero della Francesca, Francesco di Giorgio Martini. Em desenho, sob
a forma de
gravura, existe uma imagem do
mesmo género que está identificada como sendo de Donato Bramante.
São todas, sensivelmente, da mesma época: segunda metade do Século XV, princípios do Século XVI. – Vai-se
mostrá-las e intentar uma interpretação
visando evidenciar as
suas características como imagens de cidades ideais, análogas às da Teoria da
Arquitectura desse tempo. Reduzindo a tópicos simples, essas pinturas
mostram de imediato: a) Arquitectura inspirada nos modelos e formas da
Arquitectura Antiga. b) Composição
marcada por centralidade, frontalidade e domínio da profundidade espacial, de modo teatral,
cenográfico, como imagem. c) Culto rigoroso, intensificado, quase
exacerbado, da perspectiva. No total, evidencia-se a concepção da cidade
como uma imagem ideal, marcada
por uma grande
regularidade, tudo disposto
de uma maneira
que parece querer banir a
irregularidade da esfera urbana, e regrar a cidade obedecendo
aos conceitos vitruvianos de ordinatio, dispositio, eurythmia e symmetria,
também podendo ver-se naquela regularidade expressão das categorias albertianas
de numerus, finitio e collocatio, constituintes
da concinnitas (harmonia ou completude), que abbraccia
l’intera vita dell’uomo e sue leggi; presiedi alla natura tutta quanta. E será talvez esta noção duma harmonia
que abarcaria a vida inteira do homem
e as suas leis, e presidiria a toda a Natureza, que explicará toda a regularidade ordenada,
definida, contida, que se observa, quer nas
imagens das cidades ideais da Teoria da Arquitectura da Idade Moderna, quer
nas imagens pictóricas
de cidades ideais,
e que se apresenta
de modo análogo na Pintura desse tempo, e noutras
formas de expressão, como se
pode ver, por exemplo, em Leonardo da Vinci. Enfim, trata-se de
um Estilo, e
como já foi dito:
que é
um estilo senão uma
maneira de opor uma ordem à desordem estuporada da vida ? ou como se pode reformular: que é a Utopia
senão um modo de emascarar o Caos dos interesses e desejos
inconfessáveis que movem isto tudo ? Cite-se a propósito Herberto Hélder e a
poesia de Os Passos em Volta, 1962; ou a
conhecida obra de
Leonardo da Vinci,
Ultima Cena, de Milão, onde se encontra uma
das mais significativas representações das
concepções espaciais da Arquitectura
do Renascimento: Centralidade,
Frontalidade, Domínio da Profundidade, Definibilidade,
Regularidade)… Na sua diversificada e complexa totalidade os exemplos de imagens de
cidades ideais, eivadas de utopismo, quer as que se apresentam na Teoria da
Arquitectura, quer as das imagens pictóricas ou desenhadas de ambientes
urbanos, revelam uma mesma ideia, também ela, na sua essência, de natureza
utópica: a ideia
da possibilidade de construir o
mundo. É uma ideia que,
na matriz cultural
do Ocidente, remonta
ao Mito de
Prometeu, revelador do segredo das artes aos homens, para compensar a sua falta de defesas: o homem nú, descalço
e indefeso, de Platão. De facto, é o Mito de Prometeu que ressoa, quer na
narrativa da origem da Arquitectura, de Vitrúvio, quer na Utopia Edificatória,
de Alberti. O mesmo Mito, reformulado pela Teoria, ecoará em João de
Castilho, homem para construir
o mundo…
BIBLIOGRAFIA:
L. B. Alberti, Momus o del principe (escrito em latim entre 1443-50, impresso em 1520), testo critico, trad., introd. e note a cura di G. Martini, Bologna, 1942, Zanichelli Editore.
L. B. Alberti, L. B., L’architettura (De re aedificatoria, escrito entre 1443-52, impresso em 1485), ed. crítica, trad. di G. Orlandi, introd. e note di P. Portoghesi, Milano, 1989, Ed. Il Polifilo.
Claude-Gilbert Dubois, Le Bel aujourd’hui de la Renaissance, Paris, Seuil, 2001.
Leonardo da Vinci, Lo spazio urbanizzato – Per una politica di urbanizzazione, in Bruschi, A., e.a. (a cura di), Scritti Rinascimentali di Architettura, Milano, 1978, Ed. il Polifilo.
E. Hénard, Études sur les transformations de Paris, 1903-1909, in Sica, P., Antologia di urbanistica. Dal Settecento a oggi, Roma-Bari, 1980, Laterza.