Benito Arias Montano, a Reforma católica e o conceito de ‘ideia’: A tese da bondade das artes e a teorização estética ao serviço dos valores do Humanismo.

12 Abril 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O humanista, teólogo e latinista Benito Arias Montano (n. Fregenal de la Sierra, 1527 -- fal. Badajoz, 1598) é uma das mais notáveis personalidades da cultura europeia de Quinhentos. Contribuíu com as suas ideias e as suas escolhas para a sedimentação de uma Teoria da Arte, defendendo as harmonia, o rigor doutrinário mas também a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica dotada de um largo sentido de trans-contextualidade. Explorou as relações meta-textuais e imagéticas através da emblemática e um sentido profundo da Ut pictura poesis. Publicou estudos de antiguidade latina, grega e hebraica, e temas eruditos como Rhetoricorum libri IV (1569), Discurso del valor y correspondencia de las monedas e Monumenta humanae salutis (1571). Deixou poesia em latim, Hymni et saecula (1593), em castelhano, inspirada em Fr. Luís de León (escrevendo, como este, uma versão do Cântico dos Cânticos).

Erudito prestigiado, formado nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares, membro da Ordem de São Tiago, estante em 1562 no Concílio de Trento, responsável pela Biblioteca do Real Mosteiro de San Lorenzo (Escorial), adepto da Família da Caridade, amigo pessoal de Filipe II e falecido em Sevilha em 1598, é conhecido dos estudiosos pela famosa Bíblia Poliglota, a sua opus magnum, trabalho enciclopédico de Filosofia e de Teologia. Como conselheiro de Filipe II, teve relações com Christophe Plantin, com quem supervisionou o projecto da Bíblia Políglota, discutindo-o na cúria papal e dando-a à estampa em oito volumes em 1572. Fruto deste convívio em Antuérpia, revendo provas, escolhendo estampas e redigindo prólogos, é a amizade com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse, Rembert Dodoens e Philippe Galle, entre outros. Ainda não foram alvo de análise os contributos de Arias Montano como humanista do ‘largo tempo do Renascimento’ para a teoria das artes do tempo e o curso da arte portuguesa, que foi significativo, mas se mantém subestimado. Descendia de uma família de conversos; seu pai era notário da lnquisição. Cursou Filologia e Teologia nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares. Destacou-se pelo talento em interpretar a Bíblia e dominar línguas orientais. Por volta de 1569, ingressa na Ordem de Santiago e segue para Trento com Pérez de Ayala. Ao regressar, escreve o Comentario a Doce Profetas. Filipe II, que o estimava, propôs-lhe realizar, com Christophe Plantin, a edição monumental da referida Bíblia Políglota. Seu supervisor, seguiu o projecto e passa meses em Antuérpia a ver provas, escolhe estampas, redige prólogos. Vai a Roma reunir com o Papa Gregório XIII (depois de Pio V impedir a sua saída), expôe os objectivos da obra, impressa em oito volumes em 1572. Manteve estreita amizade com Plantin e ainda com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse e Rembert Dodoens. Adquiriu livros, instrumentos astronómicos, mapas, pintura e antiguidades para nobres como Juan de Ovando. Escreveu Hymni et saecula, Rhetoricorum libri IV, Monument humanae salutis, e uma Naturae Historia. Bibliotecário do Mosteiro do Escurial, aí organiza o acervo por línguas e temas em 74 matérias distintas. Dois anos depois de saír a Políglota, o professor de Salamanca León de Castro denunciava Arias na Inquisição, mas o apoio do rei e o respeito que grangeava permitiram a circulação da obra. Oito anos após a morte, porém, o Index proibiu a circulação de algumas das suas obras, que só voltariam a ter voga no final do século XVII.

Entre as estâncias em Sevilha, em Roma, Antuérpia ou em El Escorial, e os tempos que passa no seu retiro da Peña de Aracena (um verdadeiro locus amoenus renascentista), Arias dividiu a sua existência. A casa que fez erigir na Peña, sítio de meditação piedosa, tertúlias de humanae litterae, debates teológicos e all’antico, com a sua biblioteca e obras de arte, o seu bosque com rovine, a álea de plátanos, as suas fontes, tornou-se nos últimos anos de vida o refúgio privilegiado do humanista. As suas ideias sobre a concepção das artes, o valor pedagógico das imagens, o poder da ars memoriae e a carga emotiva do discurso plástico, mostram  que não esteve alheado do debate sobre as imagens sacras aberto no Concílio de Trento (onde participou) e sobre a acentuação de uma cultura de raíz neoplatónicaAmigo do editor Plantin, dos pintores-gravadores Cornelis Cort, Crispín van den Broeck e Philippe Galle, dos escultores dos Países Baixos Willem van der Broecke, chamado Palludanos, e Jacques Jonghelinck, Arias Montano nunca deixou de ser um instrumento inspirador nas criações desses artistas, sendo da sua responsabilidade o modelo composicional usado por estes estampistas flamengos. Conhece-se a influência dos livros de Arias em pinturas portuguesas, o que atesta que a sua obra circulava e era estimada. O seu interesse pela estampa de livro, cuja criação acompanhou de perto, e o pendor por um pensamento de tolerância, mostram-no sempre muito atento ao poder das gravuras de ilustração nas suas relações com a palavra, a narração, o exemplo, a sensibilização dos olhares e o apego aos sentidos morais.

Quando retornou de Itália, retirou-se para a quinta em Aracena, mas Filipe II convoca-o em 1568 para supervisionar a nova versão poliglota da Bíblia, contando no projecto com a colaboração de intelectuais e gravadores de valia. A obra foi lançada pela editora de Cristophe Plantin (1572) sob o título Biblia sacra hebraice chaldaice, graece et latine, Philippi II regis catholici pietate et studio ad sacrosanctae Ecclesiae usum. A erudição e sensibilidade de Benito Arias Montano para a linguagem das artes foi estimulada pelo contacto com seu mestre Jacobus Vasquus e pelo seu amigo pintor sevilhano Pedro Villegas Marmolejo.

Em nome de uma visão de paz no campo religioso, usa as imagens bíblicas como exemplo e advertência, mas sempre à luz da tolerância. O seu conhecimento como crítico de arte foi usado na definição de programas de estampas (na Bíblia poliglota, etc) e empreendimentos como o polémico monumento ao Duque de Alba ou o projecto do Patio de los Reyes de El Escurial.

Como inspirador de gravuras junto aos melhores artistas do tempo, viu-as sempre com uma estrutura tripartida de lema, ícone e epigrama, em que palavra / narração / imagem se articulam num mesmo corpo de coerências. Arias contava entre os seus amigos íntimos com Pedro Villegas Marmolejo, pintor que mereceu receber uma lápide com homenagem imortalizada por uma poesia latina do próprio Arias. Este pintor realizou obras para o humanista, algumas para a quinta de Aracena, o seu locus amoenus, onde era famosa a biblioteca e a colecção de antigualhas, estudadas por Sylvaine Hansel e Juan Gil. Perante o fim do antropocentismo renascentista, a barbárie e o caos, um mundo e uma  ordem que se desfazem, a  melancolia e a skize que se impõem como estados de espírito Arias propõe uma renovação ecumenista do cristianismo. A época debate-se face ao  humor melancholicus (atestado em pinturas de Lucas de Heere, Albrecht Durer, Vasco Fernandes, Hans Holbein...), e os sintomas saturnianos da crise generalizada vivida na Europa do pleno século XVI, à luz dos conflitos religiosos e da desagregação dos valores do Renascimento. A ordem, estabilidade, harmonia, tolerância, dignidade, utopia do antigo, antropocentismo, a perspectiva, o sentido regulador de uma ‘geometria do mundo’, dão lugar a um estado generalizado de descrença... Tem-se atribuído a Arias a concepção do malfadado monumento a Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, 3º duque de Alba (1507-1582), em Antuérpia, erguido após a  vitória de Jengum, em 1568, com esculturas de Jacques Jonghelinck (figura de bronze) e de Willem van den Broek ou Paludanus (o pedestal). Ambos eram amigos de Arias. A violência demonstrada pelo Duque de Alba nas campanhas da Flandres grangeou inimigos, tanto nos Países-Baixos, incluindo ods círculos católicos, como na corte de Espanha. É certo que, após a chegada do novo governador Luis de Requesens, em 1573 (sendo Arias designado seu conselheiro), e obtida a paz pelo perdão geral de 6 de Junho do ano seguinte (tardia, mas bem acolhida), a estátua foi apeada e fundida. Mas eram medidas que chegavam tarde para restituir o prestígio de Espanha, abalado pelas repressões contra as populações protestantes submetidas. O Duque foi ilustre militar castelhano que se notabilizou nas campanhas de Navarra, Flandres, Itália e Portugal, primeiro ao serviço do Imperador Carlos V e depois de Filipe II. Após a conquista de Lisboa (1581) foi nomeado Condestável de Portugal. Desde 1547 lutou contra os protestantes da liga de Esmalcada (Schmalkaldischer Bund) e comandou os terços espanhóis, com os famosos arcabuzeiros, na batalha de Muhlberg e na repressão dos vencidos. Venceu o príncipe-eleitor Johann Friederich de Saxónia, protector do luteranismo, e tomou parte no cerco de Wittenberg, que a princesa Sybilla de Cleves defendia. Forçou os vencidos a assinar a capitulação de Wittenberg (1547), em que parte do território da Saxónia passou a seu primo Maurício von Sachsen. Até 1573, quando foi substituído no governo da Flandres por Luís de Requesens com gestão mais tolerante (perdão geral de 6 de Junho de 1574, bem aceite embora tardio), a opinião sobre o Duque dividia-se entre o ódio dos povos flagelados e o prestígio que as suas vitórias militares proporcionaram (vitória contra os protestantes de Nassau em Jemgum).Numa das estadias em Roma (em 1572 e em 1575-76) para explicar e discutir os princípios da Bíblia Poliglota nos círculos papais, Arias relacionou-se com Johannes Battista Raimundos, matemático, autor de globos terrestres e de um mapa da China, e do nobre Tommaso de Cavallieri, que fora discípulo de Miguel Ângelo, que lhe fizera sonetos e lhe dedicara, em 1532, o famoso desenho Rapto de Ganímedes. Testemunho ambíguo do amor erótico e homossexual e do triunfo do Amor Divino, o desenho seria ofertado ao Dr. Arias Montano, talvez porque a sua defesa dos valores da Família da Caridade e os conceitos do Amor Divino de Arias tenham sugerido a Cavallieri um presente condigno com a fama do grande humanista andaluz...

Na mitologia greco-romana, Ganimedes era o mais belo dos homens e despertou, por isso, o desejo de Júpiter, que o raptou, assumindo a forma de águia, e o levou para seu pagem. O tema é descrito por Ovídio nas Metamorfoses. A relação entre Júpiter e Ganimedes reflecte também a sexualidade grega: Júpiter, o parceiro mais velho, e o pastor Ganimedes o parceiro passivo; Miguel Ângelo desenhou o Rapto de Ganimedes em 1532 quando conheceu o jovem nobre romano Tommaso De Cavalieri, para quem também escreveu sonetos e com quem se correspondia. No desenho, Júpiter, em forma de águia, rapta Ganimedes. Trata-se, para além da sua carga erótica, da evocação da beleza ideal segundo parâmetros gregos. O tema, raro na iconografia do tempo, dada a sua ambiguidade, teve variações sobre o modelo miguel-angesco. No início do século XVII, o pintor-escritor Francisco Pacheco recebeu o «debuxo de Ganimedes de mano de Micael Angel cuyo original yo tengo, que fué del Dr. Benito Arias Montano», que lhe serviria de mote para uma das cenas pintadas no Palácio de Hércules em Sevilha, aí com comedimento no desnudo. Em 1758, insatisfeito pela falta de representações do mito, Winckelmann promoveu o falso achado arqueológico do mural Ganimedes e Júpiter (1758-59) de Antón Raphael Mengs, como autêntico. Era outro o sentido do desenho nas mãos de Arias, obviamente.Como todos os intelectuais do seu tempo, Arias Montano desaconselhou o uso do  nu senão em composições onde o sentido da alegoria cristã ou ecumenista justificassem o recurso a figuras e temas de sensualidade. Em nome do decorum tridentino e dos seus valores de rigorismo e de clareza didascálica, também ele não entendia bem a licenciosidade, o falso dogma, a luxúria, a venalidade e a imoralidade, senão pornografia, de muitas estampas e imagens produzidas no contexto do Maneirismo italiano e nórdico.

Arias Montano entrou nestas polémicas. Em nome do seu racionalismo exegético, foi pionero em conciliar a arquitectura revelada com a arquitectura do paganismo clássico. Arias, ao contrário de Villalpando, defendeu a ideia de que o Templo de Salomão e o que sonhou Ezequiel eram distintos, sendo o primeiro similar ao que mais tarde reconstruíram Zorobabel e Herodes. A planta do Templo inspira-se claramente na de Maimónides, ainda que, diz Juan Antonio Ramírez, possa ter havido fonte intermédia. O desenho é frágil, inferior à vista de conjunto e sem qualquer comparação com a altíssima qualidade dos gravados de Villalpando. Como Maimónides, parece diluir ainda mais nos patios cruciformes das cozinhas dentro dos seus pátios concêntricos. Durante a segunda metade de Quinhentos do século XVI produziram-se tratados sobre o Templo de Jerusalém, alguns deles à revelia do estudo da Bíblia e, por isso, muito discutidos nos círculos intelectuais. Espanhóis, milaneses, flamengos e portugueses intervieram nesse debate, em tempo de Filipe II. As ilustrações do Templo de Ezequiel do teólogo-helenista protestante Sèbastien Castellion ou Châteillon (1515-63), defensor da tolerância religiosa e opositor de Calvino, defendem a centralidade radial com o Santuário no centro do átrio interior. A porta ocidental substitui o edifício que a Bíblia situa atrás do Sancta Sanctorum, favorecendo a simetria do conjunto. O átrio exterior divide-se em quatro espaços quadrados com os pátios das cozinhas em cada esquina, fazendo uma cruz perfeita, o que se favorece a idea renascentista de que o Templo de Jerusalém prefigurava a Igreja fundada por Cristo. Também fez uma ilustração do Templo de Salomão com o Santuário, considerando que o exterior era igual ao de Ezequiel. A discussão sobre a traça do Templo de Salomão ou sobre a origem das ordens clássicas preocupou Arias e levou-o a acesas discussões contra Villalpando e os seus sequazes. Arias conheceu em Roma o pintor-escritor Pablo de Céspedes (Córdoba, 1538-1608), cuja discussão sobre o Templo, entre as correntes montanista e villalpandista, gerou um Discurso sobre el Templo de Salomón, primeiro capítulo do seu Tratado de Pintura de 1599, em que segue Arias nas ideias sobre a origem das colunas coríntias, e contra as ideias de Villalpando. O jerónimo português Fr. Heitor Pinto (1525-1584) escreveu os In Ezechielem Prophetam Commentaria sobre a profecía em visão simbólica, à luz das ideias de Arias Montano, com desenho esquemático do Templo segundo Ricardo de S. Victor (F. Hectoris Pinti lusitani hyeronimi In Ezechielem prophetam commentaria / omnia iudicio et correctioni Sanctae Romanae & universalis Ecclesiae subiecta sunto. Antuerpiae: in aedibus Viduae & haeredum Ioannis Stelsii, 1570 (1ª ed, Salmanticae, 1568, fol.; Antverp, 1570, 1582; Lugduni, 1581, 4to; Ibid. 1584, fol.; Colon., 1615, 4to). O protestante Matthias Hafenreffer publica em 1613 em Tübingen o livro Templum Ezechielis, onde defende a interpretação luterana da Bíblia, mas a respeito do quadrado de Ezequiel e do Templo volta a seguir as teses de Arias, com a fachada do Santuário em influência provável de El Escorial; na geometria seguiu os matemáticos e astrónomos protestantes Michael Maestlin e Johannes Kepler (Helen Rosenau, Vision of the Temple: the Image of the Temple of Jerusalem in Judaism and Christianity, pp. 93 y 106, London, 1979).

Quando se admira A verdadeira Inteligência (Idea) inspira o Pintor, gravado por Cornelis Cort (1533-78) segundo desenho de Frederico Zuccaro, estampa aberta em 1577-78 em Roma, vemo-la acompanhada pelo poema latino onde Arias enfoca o papel emotivo e pedagógico da arte. A gravura (no Staatlische Museum, Berlim) recorre à alegoria clássica e a conceitos neoplatónicos: Apolo como Ideia das Artes a admirar a Fraga de Vulcano com as Fúrias, a Inveja, o Concílio dos Deuses, Ceres, Vénus, Baco, Hércules, divindades fluviais, Pan, Diana, Marte, Pomona, Saturno, Tétis, Neptuno, num Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante. O quadro em que trabalha o pintor é a FRAGA DE VULCANO. À direita, vêem-se as FÚRIAS. Sob Apolo, a INVEJA numa gruta. Eis toda uma síntese da teoria estética de Arias Montano e dos princípios do Humanismo cristão que defendia.

Não são muitos os contactos directos do Dr. Arias Montano com Portugal: em 1578, é enviado por Filipe II a Lisboa para convencer D. Sebastião de desistir da malograda empresa de Marrocos que iria conduzir, meses depois, à tragédia de Alcácer Quibir; em 1580, tem um papel decisivo, junto ao rei, para a elaboração das teses de Tomar que confirmariam a Monarquia Dual; e poderá ter tido um papel relevante de consultor na programação da Joyeuse Entrée em Lisboa em 1581 (a que todavia não assistiu), a crer no relato do simbolismo das decorações escrito pelo Dr. Afonso Guerreiro. A obra de Arias Montano (of. Cristopher Plantin, ed. Antuérpia, 1575), com quarenta e oito emblemas desenhados por Crispin van den Broeck e gravados por Philippe Galle, sob o título David . Hoc Est Virtutis Exercitatissimum Probatum Deo Spectaculum, ex David Pastoris Militis Ducis Exulis ac Prophetae Exemplis, explorou o carácter polissémico atribuído ao rei-pastor do Antigo Testamento, no contexto das guerras fratricidas na Flandres ao  tempo do Governador D. Luis de Requesens. É de destacar este ideal do príncipe cristão benigno e tolerante, defendido por Arias Montano, tão ligado ao historial vetero-testamentário de David, rei-pastor cujas virtudes são a FIDES, PIETAS, PRUTENTIA e TEMPERANTIA, e compará-lo com o ambiente terrível nas guerras de religião da Flandres. A proposta de políticas mais indulgentes e a defesa da impunidade dos derrotados (a exemplo da piedade que a cidade bíblica de Abel-Bet-Maaká demonstrara após a entrega do traidor) eram, para os leitores, aspectos que mostravam à época um evidente contraste face às barbaridades cometidas pelo Duque de Alba contra os protestantes de Malines e Haarlem...

Uma obra portuguesa poucos anos posterior à edição antuerpiana do David de Arias-Galle (1575) foi a decoração do tecto da Câmara de David e Golias (vulgarmente chamada Sala de David e do Gigante Golias) no Paço de Vila Viçosa, encomenda do 7º Duque de Bragança D. Teodósio II, em que os mesmos valores da tolerância e bom governo se destacam, à luz do texto vetero-testamentário, através de um programa inspirado directamente nas gravuras do livro. Foi pintada cerca de 1603 aquando do casamento deste Duque com D. Ana de Velasco e Girón, por Tomás Luís. O Paço Ducal de Vila Viçosa, sede da Casa de Bragança, o mais poderoso ramo da nobreza lusa, vive no século XVI uma fase de esplendor com os Ducados de D. Teodósio I (1532-63), D. João I (1563-83) e D. Teodósio II (1583-1630). A influência do David. Virtutis Exercitatissimae Probatum Deo Spectaculum, (ed. Antuérpia, 1575) e as gravuras de Philippe Galle, expressa-se na arte portuguesa do tempo da Monarquia Dual: o programa iconográfico de uma das salas do Palácio Ducal de Vila Viçosa, encomendado no início do século XVII ao pintor de fresco Tomás Luís pelo 7º Duque D. Teodósio II. A Sala de David e do Gigante Golias, uma das «casas novas» mandadas decorar nos preparativos do casamento do Duque D. Teodósio II com D. Ana de Velasco y Girón, da Casa de Medina Sidónia (de onde nasceria o 8º duque D. João II, mais tarde D. João IV, rei Restaurador), apesar de carecido de restauro, segue com fidelidade os gravados de Galle (edição de Antuérpia, 1575). A utilização por Tomás Luís dessas gravuras é exemplo da via de influência das ideias e gostos do Dr. Montano. A sanca representa cenas mitológicas de temário ovidiano em quadri riportati (Triunfo de Apolo, Perseu matando Medusa e a libertar Andrómeda, Belorofonte domando Pégaso, Apolo, Metamorfose de Daphne em loureiro, «países», trechos agrícolas e campestres) junto a retratos em busto (podem representar o ilustre visitante Duque de Parma D. Rainúcio, e seu pai, o falecido Alessandro Farnese), a envolver o brasão teodosino. É de crer que a pintura da sanca possa ser coeva da visita da embaixada parmense de 1601, em que o Paço se engalanou para receber D. Rainúcio.

  

 BIBLIOGRAFIA:

Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999.

Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995.

Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998.

Aires Augusto NASCIMENTO, «Erudição e livros em Portugal ao tempo de Arias Montano: a biblioteca do Duque de Bragança», Actas do Congresso Benito Arias Montano y los humanistas de su tiempo, coord. José María Maestre Maestre, Eustaquio Sánchez Salor, Manuel Antonio Diaz Gito, Luis Charlo Brea, Pedro Juan Galan Sánchez, vol. II, 2006, pp. 723-750.

Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).

Idem, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Lisboa, 2008.