O conceito de Aura em Walter Benjamin e a sua utilidade para o pensamento estruturado em História da Arte..

20 Fevereiro 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Walter Benjamin, o conceito de aura e a História crítica das artes

Escreveu Benjamin em 1936: «A autenticidade de uma coisa é a suma de tudo o que desde a sua origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico. Uma vez que este testemunho assenta naquela duração, na reprodução ele acaba por vacilar, quando a primeira, a autenticidade, escapa ao homem e o mesmo sucede ao segundo; ao testemunho histórico da coisa. Apenas este é certo, mas o que assim vacila é exactamente a autoridade da coisa e o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura»…

Walter Benedix Schönflies Benjamin (Berlim, 1982-Portbou, 1940), crítico, jornalista, historiador de arte, cientista, filósofo, tradutor, icionólogo e sociólogo, é uma das figuras mais prestigiantes no campo da Estética, que dinamizou através do conceito de Aura para uma nova percepção teórica e sensitiva das artes. Associado desde sempre à Escola de Frankfurt, tal como George Lukács e Bertold Brecht, recebeu a influência do místico judeu Gershom Scholem. Era um profundo conhecedor da língua e cultura francesas, tendo traduzido para alemão obras como Quadros Parisienses de Charles Baudelaire e Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust. Mas é no campo da Estética que o seu contributo é original. "Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos seus olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés". (Gesammelte Schriften, I, 2, "Über den Begriff der Geschichte", p. 697 (O Anjo da História, Obras escolhidas de Walter Benjamin, trad. João Barrento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010). Escreveu na A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica: «A singularidade é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição, ela própria, é algo de inteiramente vivo, de extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga de Vénus, por exemplo, situava-se num contexto tradicional diferente, para os gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma era a sua singularidade, por outras palavras, a sua aura»…O talento analítico de Benjamin expressou-se no modo como soube entrever relações entre tudo o que parecia disperso e amalgamado, numa capacidade de perceber as relações, afinal estreitas e clarificantes, entre a matéria bruta e o imaginário da produção de bens de consumo. São valores de longa sobrevivência, que interessam à prática da História e da Crítica das Artes e que explicam os mecanismos paragonais de gosto e de repulsa, de marginalidade e de massificação, de deriva repressiva e de ruptura vanguardística.

As novas gerações de historiadores e críticos de arte da era da globalização aprendem com estas lições oriundas da esfera da sociologia da arte, a psicologia, a antropologia e a filosofia marxista e que se tornam de utilidade para a definição da disciplina. A História-Crítica da Arte, ao mostrar utilidade perene, ao falar das obras em aberto (como as definiu Eco), progrediu de modo significativo no contexto de um mundo em globalização. Alargou capacidades de análise, recentrou interesses regionais, atraiu jovens investigadores, disponibilizou apoio dos poderes instituídos, redefiniu objectos de estudo no enfoque micro-artístico, amadureceu a visão patrimonialista sem antigas peias auto-menorizadoras, e reforçou esse seu entendimento (que só ela pode ter…) do discurso da arte como um fenómeno que é em todas as circunstâncias inesgotável e por isso trans-contemporâneo. O fio de pensamento une os textos, que se agrupam sob o título O Anjo da História relaciona-se com a paixão de Benjamin por um quadro de Paul Klee, Angelus Novus. Gershom Scholem, seu amigo e biógrafo, conta que Benjamin adquiriu a obra de Klee em 1921 e diz que o amigo considerava a obra como uma sua possessão. O quadro de Klee tornou-se imagem obsessiva, expressão de uma certa visão da História, sem falar nas implicações talmúdicas da angelogia judaica, alegorizava a ideia da ruína e catástrofe. Essa concepção benjaminiana da catástrofe já aparece na obra A Origem do Drama Barroco, como percepção lúcida da falência do paradigma da concepção da História como progresso, insuflada pela visão contínua da temporalidade dos factos históricos. O olhar de Benjamin desespera nessa percepção falseada da realidade, em que a ilusão do progresso norteia toda a concepção da História na sua época. Para WB é preciso interromper a catástrofe, romper com a ilusão do Progresso e despertar para outra concepção da História, capaz de redimir a injustiça e despertar a débil força messiânica que existe em cada geração: despertar para outra dimensão da História, em que o passado surja metamorfoseado pela luz da redenção messiânica, mas também para outra dimensão da temporalidade, a do instante do Agora (Jetzt). Ora, esse é precisamente o "momento revolucionário", que rompe o contínuo da história e da visão da história entendida como sucessão e continuidade, a única, assim, capaz de interromper a catástrofe imparável. No textos Sobre a crítica do poder como violência e Fragmento teológico-político, de 1919/1920, o que é claramente anunciado é o poder revolucionário e instaurador de uma nova ordem de valores que a interrupção messiânica comporta a partir de si. No primeiro é a interrupção do Direito humano a favor da instauração violenta do Direito divino, pois só esse funda a verdadeira justiça." Também no texto "Fragmento teológico-político", é a interrupção da ordem profana e o seu contínuo que opera a restitutio in integrum espiritual, isto é, fazendo surgir, através da dissolução do profano, a verdadeira ordem messiânica. Essa ideia, de uma ordem messiânica, é algo que se esbaterá nos anos seguintes da obra de Benjamin, que descobre o materialismo dialéctico em 1924, ao conhecer Asja Lascis. Só mais tarde regressará à sua visão messiânica da História. A obra deste pensador combina ideias só na aparência antagónicas, desde o idealismo alemão ao materialismo dialéctico e ao misticismo judaico, e constitui um contributo fundamental para a Estética, com títulos como A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica (1936), as Teses Sobre o Conceito de História (1940) e a inacabada Paris, Capital do século XIX, enquanto A Tarefa do Tradutor constitui desde sempre referência incontornável dos estudos literários. O Projecto de Arcades (Passagenwerk), mais de mil pp. (1927-1939) com notas, citações, artigos curtos, recortes, imagens e fragmentos em justaposição sobre os Arcades parisienses do século XIX (centros comerciais cobertos) é também uma obra de referência.

Walter Benjamin faleceu em 1940, em Portbou, na fronteira espanhola, fugitivo da barbárie nazi. Suicidou-se após recusa de obter passaporte após passar pela França ocupada. A sua epistolografia final sintetiza bem o modo como a análise marxista e o misticismo se interligam para entender os modos de intersecção das artes e tecnologia, a luta de classes e a consciência libertária dos homens, incluindo a dimensão de transcendência. WB analisou de modo pioneiro o Cinema e a Fotografia, os media, e deixa obra imensa, só postumamente publicada. «Para se ser feliz, há que ser capaz de tomar consciência de si mesmo sem medo», escreveu… WB tinha o ensaio A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica na conta de primeira grande teoria materialista da arte. O texto centra-se na análise das causas e consequências da destruição da aura que envolve as obras enquanto objectos individualizados, únicos. Com o progresso das técnicas de reprodução, sobretudo do Cinema e da Fotografia, a aura dissolve-se nas várias reproduções do original, destituindo a obra de arte do seu status de raridade. Para Benjamin, a partir do momento em que a obra fica excluída da atmosfera aristocrática / religiosa que a tornam uma peça de eleição e objecto de culto, a dissolução da aura atinge dimensões sociais. Essas dimensões são o resultado da estreita relação existente entre as transformações técnicas e as da percepção estética.

A perda da aura e as consequências daí resultantes são muito sensíveis no Cinema, onde a reprodução de uma obra de arte carrega a possibilidade de uma radical mudança qualitativa na relação das massas com a arte. Embora o cinema, diz WB, exija o uso da personalidade viva do homem, este priva-se de sua aura; se, no Teatro, a aura de um Macbeth, p. ex., se liga indissoluvelmente à aura do actor que o representa, tal como essa aura é sentida pelo público, o mesmo não ocorre no Cinema, onde a aura do intérprete desaparece com a substituição do público pelo aparelho. Na medida em que o actor se torna acessório da cena, não é raro que os próprios acessórios desempenhem o papel de actores. Benjamin considera que a natureza vista pelos olhos difere da que é vista pela câmara: esta, ao substituir o espaço onde o homem age por outro onde sua acção é inconsciente, possibilita a experiência do inconsciente visual, tal como a prática psicanalítica possibilita a experiência do inconsciente instintivo. Exibindo a reciprocidade de acção entre a matéria e o homem, o Cinema seria de valia inestimável para o pensamento materialista. Adaptado adequadamente ao proletariado, que se prepararia para tomar o poder, o Cinema tornar-se-ia, em consequência, portador de uma extraordinária esperança histórica. A análise de Benjamin mostra que as técnicas de reprodução das obras de arte, ao provocarem a queda da aura, promovem a liquidação do elemento tradicional da herança cultural; mas, por outro lado, esse processo contém um germe positivo na medida em que possibilita um outro relacionamento das massas com a arte, dotando-as de um instrumento eficaz de renovação das estruturas sociais e da sua consciência. Trata-se de uma postura optimista, objecto de reflexão crítica por parte de Adorno.

Actualmente a obra de Benjamin exerce grande influência, p. ex., em G. Agamben, no que toca ao conceito de Estado de excepção. O texto Teorias do Fascismo Alemão, de 1930, pressente a iminência do nazismo na Europa. A sua visão da História pretende-se como um antídoto face ao que pressente, pois percebeu que o optimismo da visão progressista oculta o hediondo rosto do fascismo alemão. Por isso, a visão benjaminiana da História, o seu pessimismo, associa-se ao sentimento de uma melancolia revolucionária que procura uma saída de emergência: "Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história universal. Mas talvez as coisas se passem de maneira diferente. Talvez as revoluções sejam o gesto de accionar o travão de emergência por parte do género humano que viaja nesse comboio." (Arquivo Benjamin, mss. 1100). Trata-se de procurar um gesto ético que interrompa a catástrofe e abra passagem para uma outra compreensão da História: redespertar a força do passado no presente e devolver a glória aos vencidos da História. O Anjo espera esse momento redentor, pese o vendaval do Progresso que o arrasta "imparavelmente para o futuro“... A obra de Benjamin reúne conceitos que têm provocado debates, como os de Jacques Derrida, em quem se destacam aspectos místicos e o conceito benjaminiano alteridade absoluta. O princípio messiânico de Derrida defende que cada momento do tempo apresenta oportunidade única, revolucionária. De facto, Franz Rosenzweig, Gerschom Scholem, Hannah Arendt, Franz Kafka, Paul Celan, Emmanuel Levinas, Jacques Derrida, assumiram papel importante na tradição do pensamento judaico no século XX. A concepção materialista da História enriquece a perspectiva marxista de Benjamin e, bem assim, de Theodor Adorno e Max Horkheimer (a Escola de Frankfurt em geral), bem como de Georg Lukács e Bertold Brecht, com protagonismo na tradição estética do século passado. A tradição da Filosofia alemã de Immanuel Kant, incluindo os românticos alemães (de Goethe aos irmãos Schlegel), FWJ Schelling e GWF Hegel, sem esquecer Edmund Husserl e seu discípulo Martin Heidegger, mostra paralelos com o trabalho de Benjamin. As suas principais preocupações giraram em torno da compreensão dos problemas sociais e culturais da chamada era do alto capitalismo, consequência imediata da passagem para o capitalismo industrial no início do século XX. Por isso, os temas que trata focam a modernidade (com início na Renascença), a passagem da cultura burguesa do século XIX para o urbanismo do século XX, as problemáticas dos mercados de arte, os gostos (clássico, capitalista, burguês), a escrita (de crítica à jornalista e à tradução), as minúcias do mundo que emerge da 1ª Grande Guerra, a urbanidade e o urbanismo, a infância e os sonhos, os anúncios e cartazes da publicidade, os panfletos, jornais, espaços (quartos, ruas, mapas) e edifícios em relação com a cidadania. «Por close-ups das coisas que estão em nosso redor, concentrando-se em detalhes ocultos de objectos familiares, explorando ambientes comuns, sob a orientação engenhosa da câmara, o filme amplia, por um lado, a nossa compreensão das necessidades que governar as nossas vidas; por outro lado, consegue assegurar-nos um imenso campo de acção. Os nossos bares e as nossas ruas metropolitanas e os nossos escritórios e quartos mobilados, as estações de trem e as fábricas das cidades parecem ter-nos irremediavelmente presos. Depois veio o filme e explodiu nesta prisão-mundo em pedaços através da dinamite do décimo de segundo, pelo que, agora, no meio de longínquas ruínas e destroços, calmamente reaprendemos a viajar. Com o close-up, o espaço expande-se em câmara lenta, o movimento é ampliado. O alargamento de um instantâneo torna mais preciso o que, em qualquer caso, já era visível mas menos claro; revela inteiramente as novas formações estruturais de um tema qualquer»… (Walter Benjamin, Illuminations, 236).