O Concílio de Trento e as teorias contra-reformistas sobre arquitectura, arte e imagem.

26 Abril 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O conceito de restauro storico: Ad Perpetuam Rei Memoriam VS. Ad Majorem Gloria Dei.

O controlo da representação das “imagens sagradas” assumiu, com a XXXVª sessão do Concílio de Trento, em 3 e 4 de Dezembro de 1563, um especial acento ideológico e programático que terá largos efeitos até ao pleno século XVIII. “A Igreja apoderou-se nesse período do comando da arte religiosa, a fim de a expurgar das notas tidas por censuráveis e de promover uma iconografia de combate, de testemunho e de catequese”, como diz escreveu Flávio Gonçalves grande especialista no campo da iconografia sacra, dando corpo, assim, à vasta reacção contra os ataques da Reforma protestante e os seus efeitos. As directivas tridentinas nesta matéria tiveram imediato acolhimento no seio do mercado intestino das artes, fossem os encomendantes ou os artistas envolvidos na produção destinada ao culto, uns e outros dependentes de uma vasta estrutura de controlo vigilância a que as Constituições Sinodais dos bispados deram corpo de lei e os visitadores episcopais da Igreja prática de censura, quando não repressiva. Apesar de essa nova situação ser de absoluto controlo cerceadora das liberdades criativas, é certo que também foi estimuladora de um novo espírito de solenidade e eficiência dos resultados artísticos, acentuando-se uma significativa melhoria nas condições estatutárias dos pintores e demais artistas portugueses que trabalharam para o mercado religioso.

Tal como estabeleceu o Concílio de Trento na sua derradeira sessão, as imagens sacras servem para “anatemizar os principaes erros dos hereges do nosso tempo”, e por isso buscou adequar a sua representação a uma finalidade de combate contra a heresia iconoclasta do calvinismo e de reafirmação do sentido tradicional do culto em afirmação catequética. Retomando directrizes do velho Concílio de Nicéia II, proibiu-se “que se exponha imagem alguma de falso dogma”. Defendeu-se o papel das imagens sacras como intermediárias de fé e a multiplicação nos locais de culto de imagens representações  de Cristo, da Virgem e dos santos, numa acção clarificada face a qualquer espécie de idolatria, ou seja, não para se lhes prestar um culto só devido a Deus, mas reforçando o seu papel salvífico como intermediárias de oração. Definiu, também, a necessária qualidade, imprescindível para a eficiência das reproduções artísticas dos mistérios da fé, tornando-as credíveis, no sentido de as adequar a objectivos pedagógicos junto das populações. Abriu-se, também, por isso, uma frente de combate contra as chamadas “imagens de falso dogma” e de “formosura dissoluta”, em muitos casos alvo de alterações impostas ou de destruição pura e simples. Afirmou-se a intenção de ensinar que a divindade não é percebível pelos sentidos nem através de cores ou formas, mas que estas são demasiado importantes pois concorrem para abrir os olhos da alma. O papel renovador do Concílio de Trento para valorizar o património secular da Igreja Católica assentou e teve ênfase na sua reorganização global, numa prática que teve acento na conservação e reconquista da sua auctoritas, na valorização do cristianismo primitivo, na afirmação litúrgica dos cultos específicos (o culto mariano, dos santos, das relíquias e das imagens sagradas) e a definição de princípios artísticos normativos e de controlo da ecclesia. Com a última sessão conciliar e o debate sobre as normas de representação, a arte sacra passou a reforçar a primeira linha desse princípio da auctoritas, face aos ataques protestantes.

As bases doutrinárias do Concílio de Trento encontram-se, nestas vertentes, reflectidas em obras dos cardeais Cesare Baronio, Carlo Borromeo e Gabriele Paleotti, e outros autores, nos quais a noção de tempo e a noção moderna de História se reforçam em argumentação e pesquisa. Os seus livros destes autores tridentinos pesaram na refutação das Centurias de Magdeburgo (Basileia, 1559-74), a compilação de teóricos protestantes (como Iliricus Flacius, entre outros) que criticavam Roma pelo desvio do ideal evangélico. A Igreja Católica assumiu então um moroso caminho de renovação, no qual seguiu um idêntico método de compilação de textos, segundo uma estrutura inovadora, que permitiu fundamentar as bases de um formidável processo de reforma em todas as suas estruturas. Abriu-se uma cruzada apologética dos teólogos católicos, como era o caso do padre jesuíta Roberto Belarmino, que estruturou a defesa teológica da Igreja segundo os princípios tridentinos, através das suas Controvérsias Religiosas (1586-1593). Outra figura de peso no campo da renovação da representação e uso imagem sacra foi o cardeal Gabriele Paleotti, autor do famoso livro De immaginibus sacris et profanis (1582), onde se defendeu que a arte cristã tem devia seguir clareza didascálica, decorum, decoro, rigorismo e apego à ut ars rhetorica divina.

No campo da arquitectura, o princípio da Restauratio est Rinnovata Creatio veio indicar a subordinação do espaço sacro à liturgia e à necessidade de seduzir as almas (animos impellere). O valor histórico-devocional passou a ser motor da intervenção sobre a preexistência, transformada por necessidades de adaptação (instaurare). São obras como esta que permitem compreender o intrincado processo de restruturação intestina levado a cabo pelos renovadores da Igreja Católica e a atenção que tiveram, nesse contexto, aos aspectos plurais da cultura visual. Seguiu esse caminho, com acento especial no campo do património edificado e nas políticas de restauro storico, o oratoriano cardeal Cesare Baronio, autor do Martyrologium Romanum, cum notationibus Caesaris Baronii (Roma, 1598), onde se deu destaque ao papel do historiador como investigator veritatis e ao papel das artes como fonte afectiva, documental e pedagógica. Com Baronio, a defesa dos “factos históricos” através da compilação da história da própria Igreja Católica constitui um pólo de interesses articulados, em que se defendia a análise rigorosa das fontes documentais, filologicamente organizadas, integrando nesse estudo as preexistências arquitectónicas (paleocristãs, românicas e góticas) e seguindo um método de revalorização do património católico em todos os territórios de implantação. As fontes históricas passavam a ser objecto de dupla investigação, filológica e patrimonial, abrindo campo dos arquitectos, escultores, pintores e outros artistas para o cumprimento de uma espécie de arte senza tempo.pontuando o triunfo de Roma e a autoridade absoluta da Igreja Católica.

Figura-chave da teoria artística de signo tridentino, o Cardeal Baronio proferiu em San Girolamo della Carità, entre 1564 e 1567, várias leccios lições sobre a história da Igreja, dando início, nesta última data, à compilação dos seus famosos Annales, com recurso a informação provinda de toda a Europa e do Médio Oriente e a uma eficaz pesquisa de arquivo. Definia-se nessa obra de sólida metodologia, baseada no estudo crítico das fontes, o princípio que deveria regular o restauro storico das velhas igrejas e lugares de culto paleo-cristão e, bem assim, as normas para uma nova arquitectura tridentina senza tempo. Em 1596-1600, nas vésperas do grande jubileu Católico, o Cardeal Baronio coordenou uma tarefa emblemática e que serviria de modelo-âncora para ulteriores intervenções no campo da arquitectura sacra: o restauro da igreja dos Sancti Nereo e Acchileo, em Roma. Aí orienta os trabalhos com pleno respeito pela préexistência e com acento no bom uso desse conceito de restauro storico. Segundo observou oportunamente Gabriella Casella[4], as igrejas paleocristãs e medievais deviam ser vistas, segundo explanava Baronio, como opus antiquitatis, ou seja, como monumentos, pelo que era imperioso restaurar as suas estruturas e decorações em respeito à estratificação do tempo. Assim, o conceito de restauro storico em Baronio é sinónimo de encomenda heróica, de acto providencial de agentes tutelares, de intervenção apta a preservar a memória do sítio hierofânico assente em avaliações qualitativas das existências e das próprias intervenções recomendadas. É por isso que a cumplicidade territorial e a memória histórica da Igreja se fundem, como afirma explicitamente nos Annales, numa força identitária cristã que é comum à vastidão dos territórios abrangidos e que vem consolidar a sua própria auctoritas.

Conquanto geralmente esquecida no contexto da História da Arte, a importância de Baronio foi imensa e as suas obras estavam presentes nas bibliotecas portuguesas do tempo, o que explica o carácter de certas campanhas artísticas jubilares. Foi o caso das obras que decorreram no arcebispado de Braga, ao tempo de D. frei Bartolomeu dos Mártires, personalidade muito influente que participara no Concílio de Trento, em que participou, e das que se atestam no arquiepiscopado de Évora, ao tempo de quando governando por D. Teotónio de Bragança, prelado que leva a efeito patrocinou a dinamização de velhos lugares de culto templos paleo-cristãos do Alentejo e de lugares tradicionais de culto de relíquias, abrindo a Igreja a novas iconografias de representação. O facto de, entre os seguidores portugueses de Baronio, se contarem estes arcebispos tridentinos e, bem assim, o cardeal D. Henrique, abre uma pista importante para caracterizar o munus desses prelados no final do século XVI. Os princípios baronianos aplicados à realidade portuguesa expressam-se bem num manuscrito anónimo intitulado De Antiga et Veneranda Species Aedificatione Religiosa in Regni Portucalensis Pro Maxima Causa Christiana (Roma, Biblioteca Vallicelliana), dado a conhecer por Gabriella Casella Teixeira, onde a identidade lusitana se reforça, à luz de uma espécie de carácter providencial, através da crónica do passado que integra milagres e novos santos locais – uma hagiologia autóctone que assenta numa encomenda heróica de tipo baroniano, com exemplo numa arquitectura que integra discursos documentais e memoriais. Esse manuscrito, firmado com o monograma M. L. (iniciais do seu autor, ou copista), prova a força de um método baroniano-tridentino aplicado às várias regiões, onde a intenção apologética reforça o peso da antiguidade cristã e a identidade de uma comitência nacional. Aí se refere, aliás, o papel histórico que teria sido assumido por Portugal dentro da intenção subliminar que Baronio lhe atribui: a importância do seu contributo para a Reconquista cristã da Península e para o povoamento e cristianização do território, traduzida na aedificatione ecclesiae et fondatione monasterii per mano genus portucalensis. Aliás, o próprio papa Gregório XIII, que Baronio tanto elogiava pelas suas politicas de restauro, enviou, em 1572, o breve Cum sicut ao arcebispo a D. frei Bartolomeu dos Mártires e aos vigários das igrejas de Braga e Lamego aos Vigários das igrejas de Braga e Lamego em que pelo qual ordenava que os eclesiásticos, nas visitações dos seus templos e nas normas sinodais estipuladas, custeassem a restauratio das antigas igrejas para maior proveito da auctoritas romana.


BIBLIOGRAFIA

Anthony BLUNT, Artistic Theory in Italy, 1450 to 1600, Oxford, 1962.

Gabriella Maria CASELLA, O Senso e o Signo. A relação com as préexistências românicas (1564-1700). Contributos para uma História do Restauro Arquitectónico em Portugal, [s.l.]: [s.n.], 2005 (tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).

Flávio GONÇALVES, Breve Ensaio sobre a Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal, sep. de Belas-Artes – Revista da Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa, 1973, p. 13.

Flávio GONÇALVES, História da Arte. Iconografia e Crítica, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1990 (colectânea póstuma de estudos deste especialista), pp. 111-127.

Vítor SERRÃO, Arte, religião e Imagens em Évora no tempo do Arcebispo D. teotónio de Bragança, 1578-1602, Lisboa, Fundação da Casa de Bragança, 2015. 

Ottavia NICOLI, Vedere com gli occhi del cuore. Alle origine del potere delle immagini, ed. Laterza, Roma, 2011.