Georges Dii-Huberman e o pensamento iconológico actual.

9 Março 2021, 14:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Georges Didi-Huberman, historiador de arte e filósofo, professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, é o herdeiro intelectual de Aby Warburg, de Walter Benjamin e de Georges Bataille, e tem consagrado a sua reflexão iconológica a uma leitura crítica da tradição da História da Arte e do pensamento das imagens. Abrangendo tanto as artes visuais como a História da Arte, a Psicanálise, a Antropologia e as Ciências Humanas, Didi-Huberman publicou mais de 40 títulos, traduzidos em várias línguas. a sua obra recobre uma multiplicidade assombrosa de temas e artistas, da histeria ao Holocausto, de Fra Angelico a Pasolini, entre outros.

Georges Didi-Huberman nasceu em Saint-Étienne em 1953 e é filósofo, historiador, crítico de arte, professor da École de Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris e autor de títulos como La Peinture incarnée, suivi de Le chef-d’oeuvre inconnu par Honoré de Balzac (Paris: Minuit, 1985), Devant l’image. Question posée aux fins d’une histoire de l’art (Paris: Minuit, 1990), Ce que nous voyons, ce qui nous regarde (Paris: Minuit, 1992; trad. O que vemos, o que nos olha, São Paulo, Editora 34, 1998; Porto, Dafne, 2011), La Ressemblance de l’informe, ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille (Paris: Macula, 1995), Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images (Paris: Minuit, 2000) e L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg (Paris: Minuit, 2002).

As fronteiras entre Historia da Arte, imagens e Antropologia foram felizmente abaladas no decorrer das duas últimas décadas. Na virada cognitiva visual do nosso tempo, essas ciências – Antropologia e História da Arte – outrora distintas, vão redescobrindo a natureza e os horizontes de seus próprios começos. Num ensaio de Etienne Samain, retraçam-se algumas das etapas de relações entre antropologia, imagens e arte, remetendo às contribuições de Gregory Bateson, Claude Lévi-Strauss, Alfred Gell, Hans Belting, William J.T.Mitchell e, em novo espaço crítico, a obra humanistica de Georges Didi-Huberman, na linhagem de Aby Warburg e Walter Benjamin. Situam-se  as imagens e o saber visual num campo privilegiado de questionamentos sobre a nossa História e sobre o porvir de nosso planeta. Para Aby Warburg, mentor de Didi-Hubermann, a História da Arte não se define no sentido cronológico ou evolutivo da análise estilístico-formal, mas sim através do estudo do sentido da involução morfológica que afecta de anacronismo todos os modos históricos e estilos. Urge estabelecer, portanto, um espaço de reflexão e de investigação – a que chamou Denkraun – que permita o projecto de uma psicologia histórica da expressão humana a partir do estudo das imagens. Esse teatro será a Biblioteca por si imaginizada, construída a partir de 1926 em Hamburgo para albergar a célebre Kultgurwissenschstliche Bibliothek Warburg.  Defende o conceito de imagem em contínuo movimento, apto a criar espaços de trans-contextulidade, de acúmulo de memórias e afectos e, por conseguinte, de demanda de um olhar antropológico.

As quatro fotografias tomadas clandestinamente em Auschwitz-Birkenau acompanharam o trabalho de Dici-Huberman de modo quase obsessivo. Mostram um extermínio em massa. Toda a revolta que causa, para um historiador das imagens, está destinada ao fracasso, ainda que a força testemunhal que delas se exala sej enorme. As fotografias testemunham um levantamento, ainda que desesperado, por ser conduzido prisioneiros judeus que arriscaram fazer essas fotografias para testemunhar para além de sua própria morte – mas o que sucede é que são precisamente as imagens que se insurgem e que sobrevivem…Images malgré tout, obra seminal de Didi-Huberman (2003) é uma elaboração do problema da visualidade da Shoah (Holocausto) a partir de quatro fotografias capturadas em agosto de 1944 no crematório V do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, por membros do Sonderkommando nazi: grupo de judeus e comunistas obrigados, em troca de parca sobrevida, a conduzir os recém-chegados às câmaras de gás e recolher os cadáveres, arrastá-los aos fornos crematórios, limpar os dejectos e dispersar as cinzas !

No verão de 1944, alguns imembros do Sonderkommando conseguiram, articulados com a resistência polaca, transmitir ao mundo os únicos testemunhos visuais do genocídio. Escondidos num tubo de pasta de dentes, os negativos, junto com manuscritos (depois publicados França sob o título “Vozes sob as cinzas”), foram enviados pelos prisioneiros , assim furando a lógica implacável do universo concentracionário. A máquina, escondida num balde, documenta o momento em que 24 .000 judeus e comunistas húngaros eram executados por dia, com aniquilação de 435.00 em apenas quatro meses. As câmaras de gás funcionavam 24 horas por dia, até que os fornos crematórios e o Zyklon B (substância que produzia o gás letal) se esgotavam…  É nesse contexto que, sob a moldura negra do interior da câmara de gás do Crematório V e sob pena de execução imediata, o grego conhecido como Alex pôde tirar a câmara, apertar o obturador e registar as trémulas imagens. Dois anos antes da publicação de Images malgré tout, as imagens deste inferno (precárias mas tão falantes), tornaram-se alvo de polémica aquando da exposição Mémoire des camps - Photographies des camps de concentration et d’extermination nazis 1933-1999 (Paris., 2001)

“O imaginável como experiência não pode ser o inimaginável como dogma”, diz Didi-Huberman, sobre a imagem que nada ou pouco revela para além do gesto último de alguém que, sob vigilância dos SS faz aparecer ao mundo o bosque de bétulas de Birkenau. Ora as imagens interrogam essas testemunhas indiferentes e mudas. Didi-Huberman não nega o “inimaginável” e o “irrepresentável” da ordem da experiência traumática, como aporia do testemunho e fundamento negativo da linguagem, encarnado pelo sobrevivente. Nega, sim, o “inimaginável”, o “irrepresentável” como norma, dogma e imperativo, tão evocados por certas “estéticas da negatividade” (os quadros suprematistas de Malevitch, os monocromos negros de Ad Reinhardt) e, mais perigosamente, manipulados pelo negacionismo histórico. Damos-lhe a palavra: «Costumamos pensar que as imagens devem mostrar algo reconhecível, mas elas são mais do que isso. São gestos, actos de fala. As sombras e a falta de foco dessas fotos mostram a urgência e o perigo com que foram feitas. Eliminar isso com o pretexto de que prejudicam a visibilidade é errado. Essas fotos são testemunhos, e é desonesto cortar a fala de uma testemunha. Temos que escutar também seus silêncios».•Estas fotografias feitas por prisioneiros de antemão condenados , captadas do interior de um crematório, coloca uma radical problemática ética, política e estética entre a tomada de posição e a posterior manipulação dessas imagens. Por isso, não sendo a imagem uma coisa, um troféu privado, mas um gesto, um “acto coletivo” historicamente situado, como é o caso, Didi-Huberman afirma: ela responde a esse ato com outro acto, nosso próprio olhar. •O gesto do fotógrafo clandestino foi, no final das contas, tão simples quanto heróico, ao usar a máquina no interior da câmera de gás, justamente onde os SS o abrigava, dia após dia, a descarregar os cadáveres das vítimas assassinadas. Alex transformou, por raros segundos roubados, o trabalho servil, o seu trabalho de escravo de inferno, num verdadeiro trabalho de resistência”. Sendo assim, pergunta, o seu acto de testemunho não devia ser entendido como um minúsculo deslocamento do trabalho de morte em trabalho de olhar ?  Reenquadradas pelo Museu de Auschwitz-Birkenau, decupadas em Noite e neblina, negadas em Shoah, problematizadas em "Cascas" e reencenadas em O filho de Saul, essas imagens, clandestinas e sobreviventes, sublevam-se, rasgam o arquivo e o fazem-nos murmurar…

Numa entrevista dada à Marianne Alphant no Centro Pompidou em junho de 2010, Georges Didi-Hubermann dizia: «O meu sonho era o de fazer o que Michel Foucault conseguiu nos seus textos [As palavras e as coisas], isto é, esboçar uma arqueologia do saber visual». Que caminhos heurísticos e metodológicos sugere, que indagações propõe ?  Parte da ideia de que as imagens são fenómenos, acontecimentos, aparições, revelações, epifanias, luzes que queimam o tecido humano (social) e interpelam (ou não) nosso quotidiano. Olhamos Gostaria para elas e deixamos que nos provoquem, inquietem (ou deixem indiferentes), já que elas não são apenas actos e factos, mas lugares de memórias (lembranças, retomas, sobrevivências, ressurgências… nachleben !), revelações de tempos passados e presentes, senão lugares de expectativas, esperança, prefigurações, presságios, promessas, desejos...Ver arte não é só estudar campos de memória, arquivos vivos e lugares de desejos, mas sobretudo terrenos de questões sobre nossa história e o nosso ser, os nossos anseios e apelos que nos convocam a tomar posição em nome da história humana, em nome do porvir de nosso planeta. 

Assim, importa não só pensar a imagem  mas pensar por imagens, isto é, aprender a abrir, a desdobrar as imagens, para nelas se redescobrir, na perspectiva aberta por Walter Benjamin, os seus profundos valores de uso (de utilização, de projecto) para o nosso tempo. O antropólogo, o cientista social, o historiador de arte, tem de ir além da descrição, do registo, da documentação da história presente dos homens e das culturas, etc, pois deve «atentar  nas pulsões e sofrimentos do mundo, e transformá-los e remontá-los numa forma explicativa implicativa e alternativa» (Didi-Huberman 2010:191) .Pergunta Didi-Hubermann: «Somos artistas, antropólogos, sociólogos, historiadores de arte, fotógrafos, videógrafos, amantes das imagens, seres humanos. Levanto esta questão: o que faremos das imagens (das imagens dos outros e de nossas imagens) para servir ao nosso século, para pensar nossa História, para fazer viver os homens? E, mais ainda: como faremos delas e com elas, lugares de conhecimentos e de questionamentos, actos de memória, campos de desejos e de futuros ?»

A HISTÓRIA DA ARTE É TAMBÉM UM EXERCÍCIO DE COMPAIXÃO. O trabalho do antropólogo das imagens Georges Didi-Huberman (1953-) é,  pois, um desafio analítico-comparatista do saber ver. Como diz, as imagens tomam posição e, mais, coincidem num ponto: exprimem a infinda compaixão pelos outros, os oprimidos da História, as vítimas do mundo transfigurado em arena de cobiças, o mistério vivencial dos deserdados. Sim, as artes não se fazem ignorando a desordem do mundo mas podem consolar os que nela (e com ela) vivem. 


• Livros em português de Georges Didi-Huberman: 

--1992, O que vemos, O que nos olha, São Paulo, Editora 34, 1998.

--1992, O que nós vemos, O que nos olha, trad. G. Anghel e J. P. Cachopo, Porto, Dafne, 2011.

--2002, A Imagem Sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, trad. V. Ribeiro, Rio de Janeiro, Contraponto, 2013.

--2004, Imagens apesar de tudo, trad. V. Brito e J. P. Cachopo, Lisboa, KKYM, 2012.

--2009, Ser crânio. Lugar, contato, pensamento, escultura, trad. V. C. Nova, A. Tugny, Belo Horizonte, Ed. C/Arte,  2009.

--2011, Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta, trad. R. C. Botelho e R. P. Cabral, Lisboa, KKYM+EAUM, 2013.

--2011, Sobrevivência dos vaga-lumes, trad. V. C. Nova e M. Arbex, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011.

--2013, Falenas. Ensaios sobre a aparição, trad. A. Preto, V. Brito, et. al., KKYM, Lisboa, 2015.

--2013, Que emoção! Que emoção?, trad. M. P. Santos, KKYM, Lisboa, 2015.