Introdução a Aby Warburg.

25 Fevereiro 2021, 15:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

NOTAS DE ICONOLOGIA WARBURGHIANA

SOBRE ABY WARBURG – A ACTUALIDADE DO SEU «MÉTODO ICONOLÓGICO»

 

 

    Aby Warburg (1866-1929) foi um dos mais extraordinários praticantes da História da Arte. Desde cedo se interessou, de modo sistemático, pelo estudo da antropologia artística, aquilo a que chamou pormenores histórico-artísticos e procurou saber de que modo as obras de arte se inscrevem sempre nos seus contextos de origem. Filho de uma família de ricos banqueiros judeus de Hamburgo, estuda em Bona com grandes nomes como C. Justi, K. Lamprecht e H. Thoda, continua os estudos em Estrasburgo e em Florença, com M. Friedlaender e H. Ullmann e aprofunda as suas revolucionárias teses sobre um Renascimento naturalístico à luz da sobrevivência (e não da descoberta) de uma Antiguidade clássica que os tempos medievais preservaram, teses estas opostas à «estática beleza ideal» de Winckelmann e do formalismo académico, e que expõe na sua tese Ricerche sull’immagine dell’antichitá nel primo Renascimento italiano (1893).

    Leitor atento de Burckhardt e de Alois Riegl, defensores de um estudo da civilização como desenvolvimento geral e como comunidade espiritual, pretendeu ver a obra de arte como mediadora simbólica entre a subjectividade do artista e a realidade social objectiva. Mas não é o ‘conteúdo’ e sim a «psicologia histórica da expressão humana» que o movem. Assim, aquele que é considerado o fundador da Iconologia e, também, da História Social da Arte, desde as suas primícias universitárias se afastou da lição do formalismo (de Riegl a Wolfflin), justamente por rejeitar a crença de que a aspiração à liberdade sentida pelos artistas pudesse conduzir a uma espécie de região autónoma da actividade humana – o que se designa por arte – e que seria, nesse caso, algo independente da vontade, das necessidades e das aspirações da vida comum. Vai dedicar-se ao estudo da função da criação figurativa na vida das civilizações na sua relação entre imagem, palavra e símbolo.

     A iconologia é vista, na obra pioneira deste autor, como a via disciplinar da História da Arte que assume o estudo integral (e integrado) dos estereotipos formais, tomando como exemplo de pesquisa os da Antiguidade clássica retomados no Renascimento italiano, e preterindo o conhecimento de construção do espaço geométrico ou perspéctico à análise das regras que, de facto, determinam a representação de um espaço interior tornado visível no ecrán plástico em duas ou mais dimensões. Pergunta Warburg: «qual a relação entre a vida de um período histórico e o modo como o homem é nesse período representado ? Como se conexa tal com a concepção de vida do indivíduo ?». Por isso, ele estudou as festas, as representações teatrais, a literatura, a astrologia, a magia, etc, tudo o que permite transfigurar na esfera artística o modelo antigo, esse patetismo ligado a uma anciana emotividade ritual. A atenção dada à memória como função geral da matéria organizada que entronca no imaginário primitivo adquire novas atenções e desenvolvimentos em torno de símbolos e testemunhos de uma qualquer sobrevivência de experiências emotivas do passado.

     Warburg delimitou um campo de pesquisa que baptizou de ‘psicologia histórica da expressão humana’, a partir do estudo associado das formas e das funções. A análise da obra artística e dos seus usos na sociedade andam a par: segundo o seu discípulo Ernst Cassirer, uma das suas maiores contribuições para a História da Arte foi ter entendido a «lei da inércia» segundo a qual as formas artísticas se transferem naturalmente ao longo dos tempos e das sociedades. Em 1895-96, Warburg vive a sua aventurosa passagem junto das comunidades índias do Novo México (os Hopis e Oraibis), aí estudando o «ritual da serpente», os símbolos e mitos dessas sociedades ainda poupadas ao etnocídio que se aproximava. Foi um estágio frutuoso. Afirma, a partir do estudo dos símbolos hopis, a transcendência do primitivismo sobre o barbarismo, e que o homem racional se mantém o mesmo em todos os tempos, pelo que alguma das bases do psicologismo do Renascimento, no seu «recorrente primitivismo», pode ser encontrado no tipo de vida e nos costumes das comunidades índias do Novo México. O símbolo da serpente de língua bifurcada dos hopi ressurge, de facto, em muitas culturas ao longo de milénios e com significações que, no essencial, se não afastam do eterno desejo de ordem contra o caos.

     No estudo de Warburg sobre Albrecht Durer e a Antiguidade clássica, saído em Leipzig em 1906, analisa um desenho de Durer de 1494 e outro da escola de Mantegna com a cena da Morte de Orfeu e mostra como o patetismo da cena deriva de vasos gregos e não é tão-só um exercício de atelier, como se supunha, mas uma reviviência apaixonada do Antigo, segundo os mistérios do paganismo, o Orfeo de Poliziano, alinhado com as representações teatrais da obra de Ovídio (que se representava em Mântua em 1471, e em outras cidades italianas). O itinerário temático sai de Atenas, passa por Roma, Mântua, Florença e atinge Nuremberga e outros centros, em épocas distintas e sob signos culturais distintos. Warburg rejeitou com clareza as teses de que o Renascimento era um mero retorno ao Antigo (como impunham as teses formalistas de Winckelmann). Para ele, citamos, «os estudos sobre as religiões da Antiguidade clássica ensinam sempre mais do que considerar essa mesma Antiguidade simbolizada por um Hermes bifronte de Apolo e Dionísio. O ethos apolíneo apagar-se-ia com o pathos dionisíaco, quase como uma dobra dupla de um mesmo tronco enraizado na profundeza misteriosa da terra grega... Ora o Quattrocento sabia apreciar essa dupla riqueza oriunda da Antiguidade pagã: os artistas do século XV veneravam a Antiguidade, tanto pela sua ordem e regularidade como pela destreza com que ela dava expressão ao temperamento patético. Podia-se pois recorrer aos superlativos da mímica até então banidos como processo mais de acordo com um tempo que defendia uma expressão mais livre, tanto no sentido real como figurado. Devemos aprender a considerar de modo imparcial a dupla riqueza estilística dos Antigos, como durante tantos anos tentei conseguir através da pesquisa. Posso afirmar que fui guiado na via da pesquisa pelas palavras do meu venerável mestre Carl Justi: ‘’A erudição não deveria ser senão a redescoberta do ponto de vista segundo o qual a obra de arte fui feita em determinado momento do passado’’...».

    Nessa perspectiva, para a iconologia warburghiana, o Renascimento não foi só um momento único de ressurreição da simplicidade e grandeza da escultura grega, já que Botticelli não se interessou pelo estudo da perspectiva nem pela teoria das proporções mas sim pelo estudo dos temas alegóricos e literários (mesmo os mais obscuros, como se vê na sua Primavera), temas que eram caros à elite de Florença do tempo dos Médicis e estavam em plena harmonia com o seu próprio apego à alegoria e aos valores neopagãos (e neoplatónicos). Se o conceito de «Renascença do estilo» pode ser algo híbrido, é certo que «os artistas italianos buscavam, mais que a medida do ideal clássico, os modelos de mímicas patéticas acentuadas»... Assim, a ICONOLOGIA CRÍTICA de Warburg nasceu com a consciência de que é antes de mais imperioso cumprir um «inquérito sobre as fontes da imagem». Na obra Arte Italiana e Astrologia Internacional, Warburg estuda as imagens pagãs «emigradas» nos países do Norte, que de seguida ressurgem nos frescos quatrocentistas do Palazzo Schifanoia em Ferrara (encomenda de Borso d’Este a Francesco del Cossa em 1470), com uma série de metamorfoses naturalmente integradas no discurso. As trocas de experiência entre o Oriente e o Norte explicariam essa origem clássica: para Warburg, «o símbolo é sempre uma forma radical de sobrevivência, exclusivamente racional, simbolicamente omnipresente e omnicompreensível através da memória imagética colectiva». O símbolo conduz ao espaço de pensamento (Denkraum) em que, através de ondas mnemónicas, estímulos e imagens de fenómenos ancestrais, se exprime o equilíbrio entre polos opostos, a emotividade e a racionalidade, equilíbrio esse que define como a «iconografia do intervalo».

      Como afirma Eveline Pinto (prefácio a Essais florentins de Warburg, 1990), «ao invés de remeter para um acto de interpretação visando o sentido-outro do programa iconográfico (como fará Panofsky), a análise iconológica de Warburg situa-se no primeiro nível de pesquisa pois visa assegurar o ‘stock’ de referências e conhecimentos históricos, literários e outros indispensáveis para se compreender a cadeia de fenómenos em apreço: tal ‘stock’ é imperioso para resolver questões, iluminar o chamado ‘conteúdo representativo’ das imagens, compreender a coesão dos processos evolutivos que governam o curso estilístico, ou seja, a transformação da forma expressiva ou representativa. Longe de se limitar, como fez Panofsky, a identificar a forma a fim de aceder ao conteúdo representado, Warburg orienta o processo explicativo das obras pela elucidação das tensões e lutas de que a forma é sempre a objectivação, a manifestação ou o resultado»... Nessa medida, o homem do Renascimento não se teria fechado num espaço cultural exclusivamente definido pelo regresso ao Antigo. As imagens e formas que a cultura renascentista criou saíram menos da Antiguidade clássica, ao contrário do que se pensa, que de uma herança cristã medieval a que os seus clientes continuavam de certo modo ligados, pelo que o «milagre do Renascimento» foi, sim, a resistência que a cultura desse tempo soube opôr à violência do ‘pathos’. Assim, Piero della Francesa, na sua pesquisa sobre a luz e a perspectiva em moldes quase científicos, e Ghirlandaio (frescos de Santa Maria Novella, Florença), no seu «estilo ideal antiquizante’ (sic), sintetizando a partir do tríptico Portinari de Van der Goes o realismo do Norte (uma ninfa vestida ‘alla francese’...) e a esfera idealizada vinda do antico (uma ninfa nua exprimindo a paixão profana), são artistas que representam bem esse tipo de resistência.

     Warburg (cujo internamento no hospital-sanatório de Kreuzlinger entre 1921 e 1923, vítima de psicoses e traumas, o obrigou a provar sanidade mental, retornando em 1924 ao instituto de Hamburgo) é figura preponderante da História da Arte no sentido em que esta disciplina aspira a construír um pensamento analítico e reflexivo eficaz no estudo integral da obra de arte. Ele não buscou demonstrar que o modo de representação artística faz parte do comportamento social (embora tal estivesse explícito), mas soube ligar as obras de arte à expressividade das personalidades envolvidas na sociedade dos tempos. À luz de um estudo da função da criação figurativa na vida das civilizações, as obras não poderiam pois, ser compreendidas fora do conhecimento explícito dessa vida. O «estilo ideal antiquizante» impõe-se na Toscana do séc. XV como atestam os frescos de Santa Maria Novella, de Ghirlandaio, com ecos da escultura do Arco de Constantino, caso da Vitória troiana, o triunfo de Baco e Ariadne, etc. A dupla riqueza da Antiguidade foi retomada no séc. XV como testemunho da beleza estética e do patetismo. É a descoberta do «ponto de vista» que guiou a obra de arte num dado momento que orienta a pesquisa... A ressurreição dos demónios da Antiguidade na forma metafórica que assumem os calendários medievais e as imagens impressas no tempo da Reforma de Lutero tem um sentido que não é tanto estético mas político e religioso. Mostra o medo e incerteza colectiva que se orienta para fins políticos, através da força coerciva da imagem. As previsões de um ‘novo dilúvio’ e o estudo da astrologia no fim do séc. XV influenciam a linguagem das imagens; a guerra dos camponeses na Alemanha reformista identifica-se contra a luta entre Júpiter e Saturno; os dois monges da ‘Invectia’ de Middelburg (1492) retratam essa dualidade (mesmo sem recurso à reutilização pró-papista que gravura terá mais tarde). Aliás, a propaganda dos acólitos de Lutero insistiu muito no contexto da reviviscência da Antiguidade no humanismo alemão, no estudo da cosmologia grega aplicada ao profetismo. O medo dos cometas em forma de espada definidos por Plínio como maléficvos era comum, como se deduz da troca decorrespondência entre Melanchton e Camerarius, e as interpretações do próprio Lutero... Além disso, o princípio metodológico da Iconologia warburghiana não dissocia o estudo das formas e o estudo das funções que assumem, bem como a utilidade social das obras e a caracterização do ‘mundo da arte’ no seio da qual as obras foram geradas. Trata-se da primeira concepção da H. da Arte que é verdadeiramente interdisciplinar e que pode ser hoje, com grande vantagem, retomada como lançamento das bases teórico-metodológicas da nossa área de estudos. Da obra de Warburg ao conceito de NOVA ICONOLOGIA vai um passo... No livro Through the Looking-glass and what Alice found twere, Lewis Carroll narra o fascínio de Alice junto ao gato negro Kitty pelo espelho que a intriga, onde se reflecte o quarto em que está encerrada, até ao momento em que atravessa o espelho e começa a sua aventura. Dentro, tudo é igual à imagem que Alice podia ver reflectida na superfície, mas o que não era entrevisto na imagem reflectida é, pelo contrário, diferente do imaginável... É o mundo da fantasia, com regras precisas, um mundo que Alice tem de percorrer para o compreender na sua globalidade... Através do espelho, através da imagem: a abordagem iconológica encontra nesta dimensão de entrega ao descobrimento as suas puras raízes, o inflamado desejo de flanquear a superfície das coisas (e das obras de arte) para descobrir o seu lado escondido, a sua face oculta... A História da Arte passou o tempo ’vasariano’ das biografias e o tempo ‘morelliano’ das leituras formais dotadas da maior cientificidade, aprendendo nas várias vertentes – histórica, documental, laboratorial, sociológica, semiótica – um pouco da sua especificidade como disciplina dotada de fascínios no modo sempre irrepetível de saber ver em globalidade as obras de arte.

     Eis que a ICONOLOGIA ultrapassa a sua dimensão de ramo operativo da História da Arte e se torna capaz de apontar sentidos, descodificar programas, entretecer mistérios que as imagens oferecem ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou, ilustrado, em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no X Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Warburg ao expôr a «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente descritivas dos seus colegas. Na biblioteca de Hamburgo, reunirá materiais de approche inter-disciplinar da H. Arte, Astrologia, História das Religiões, Antropologia, Sociologia, Literatura, Folclore, etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que com o regime nazi será transferido em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, aí se formarão Ernst Cassirer, Erwin Panofsky, etc. Ao recordar o modo como o estudo do significado das obras de arte foi esquecido, Saxl compara a Iconologia com a Geologia e a Iconografia com a Geografia: esta limita-se a registar as coisas terrenas, enquanto a Geologia estuda as estruturas, origem, evolução, coerência dos elementos... A imagem metafórica pode aplicar-se à Cosmografia /Cosmologia, à Etnografia /Etnologia, que permitem o mesmo raciocínio: aquelas disciplinas limitam-se a constatar, as últimas a explicar e interpretar... Hoogewerff seguirá o ‘colossal trabalho iconográfico’ de Émile Mâle para traçar as bases de uma iconologia da arte cristã medieval. A hagiografia, crenças e superstições, a história dos Concílios, a patrologia, a himnologia, os apócrifos, os textos sagrados, servem-lhe para compreender ‘iconologicamente’ op sentido da arte românica e gótica francesa. A introdução, em 1939, aos Studies in Iconology de Panofsky, vai aprofundar estes conceitos e fazer a célebre distinção entre três níveis de leitura das obras de arte:

     1. Nível pré-iconográfico, com descrição ‘primária e natural’ dos objectos, factos e imagens em termos estritos de formas e de estilos;

     2. Nível iconográfico, com ‘análise dos temas e conceitos específicos’ expressos pelos objectos segundo as fontes literárias e/ou o seu tipo ou época;

     3. Nível iconológico, onde se situa a leitura interpretativa dos significados intrínsecos da Obra de Arte em apreço segundo o quadro contextual (social, ideológico, político, etc) e segundo o quadro mais lacto dos símbolos e códigos que a informam como «tendência essencial do espírito humano».

     Na prática, a ICONOLOGIA dedica particular relevo ao estudo dos textos, dos contextos e dos programas: todas as obras de arte têm um programa interno, que pode ser perceptível. O modelo conceptual de Aby Warburg, e de Panofsky, buscava já englobar forma, sujeito e sentido na sua abordagem das obras de arte. É certo que os estudos iconológicos têm dado maior ênfase aos temas do Renascimento (como o estudo de Panofsky e Fritz Saxl, de 1923, sobre a Melencolia I de Durer), e tem negligenciado outras épocas artísticas – mas tal não deve ser visto como sinónimo de fraqueza, mas sim como falta de aplicação integral do seu modus faciendi...

     O uso da Iconologia, tal como praticado após a morte dos seus fundadores, tem tido recuos e «vulgatas» redutoras. É certa, e tem dose de verdade, a crítica de que alguma iconologia presta mais atenção aos textos literários que às obras de arte. É certo, e tem dose de verdade também, a crítica de que alguma iconologia se perde nas gavetas infindas das colecções de gravura na sua busca desenfreada de um «sentido escondido» em todas as imagens, e de lhes determinar a priori um sentido determinado de que depois tenta fazer prova... Enfim, é também certo que a obra de arte se não pode reduzir aos seus códigos de significação, e que esta «irredutibilidade» de alguma iconologia presta um mau serviço ao estudo integral das obras de arte, por não as deixar expressar livremente os seus códigos estéticos... É certo que algumas destas críticas colhem fundo: em nome da iconologia, tem-se praticado uma H. de Arte redutora. Mas convém lembrar também que, num prisma bem diverso, a Iconologia suscitou outro tipo críticas (o maccarthismo nos EUA versus a teoria de Panofsky, desconfiando do uso do termo ‘ideologia’...). A questão reside, segundo o grande historiador de arte, na operacionalidade do método: «a Iconologia é uma técnica que quedará fundamental para a identidade dos géneroas de imagem e no uso das fontes», aduzindo que importa também  ter-se em conta a necessária «abertura» inerente à arte e à interpretação dos símbolos e códigos artísticos.

     Segundo Aby Warburg, o que importa à ICONOLOGIA é abrir as fronteiras entre várias matérias do saber, entre várias disciplinas das Humanidades, redefinindo noções como «contexto» e «programa artístico» e arrticulando vias interdisciplinares de saber ver as obras de arte na sua carga de integralidades. 

 

     A Primavera de Sandro Botticelli

     Sandro Boticelli nasceu em Florença em 1445 e ali faleceu em 1510. Foi discípulo de Fra Filippo Lippi, cujos modelos seguiu nos primeiros tempos da sua actividade, e, à excepção de curto período em Roma (1481-82; obras como a História de Moisés na Capela Sistina), permaneceu sempre em Florença. Esteve ao serviço dos poderosos Medici, em especial de Lorenzo di Pierfrancesco de Medici (primo de Lorenzo de Medici, pessoa muito influenciada pela obras de Poliziano e Marsilio Ficino), para quem pinta entre 1478 e 1484 as célebres obras, Primavera e Nascimento de Vénus. Foi também para Lorenzo di Pierfrancesco que Botticelli fez os desenhos para uma das edições da Divina Comédia de Dante. Pelo que se conhece da biografia do pintor verifica-se que o mestre trabalhou sobretudo para a burguesia florentina e para uma clientela culta de formação neoplatónica. Após os primeiros anos de actividade, o seu modo estilístico foi-se personalizando, afastando-se quer de Fillipo Lippi, quer dos seus contemporâneos Verrochio e Pollaiollo.

     Os estudos e referências à Primavera e ao Nascimento de Vénus multiplicam-se ao longo dos tempos na História da Arte, em perspectivas diversas (formalistas, positivistas, etc). Na perspectiva iconográfica e, sobretudo, iconológica, são fundamentais as obras de Erwin Panofsky Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental e de Edgar Wind Pagan Mysteries in the Renaissance (trad.: Los Misterios Paganos del Renacimiento). Um estudo recente de Mirella Levi d’Ancona, (Due quadri del Botticelli eseguiti per nascite in Casa Medici, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1997) envolve conceptualizações úteis, a ponderar cuidadosamente, dado que envolvem aspectos polémicos ou redutores. Poucos quadros poderão almejar ao estatuto de «Pintura do Século» como A Primavera, de Sandro Botticelli, uma das obras de inspiração mitológica que o autor (criador do género) realizou na década de 1480 à sombra do mecenato da poderosa família florentina dos Médicis. Foi, ao que tudo indica, pintado para um primo segundo de Lorenzo o Magnífico, de nome Lourenço de Pierfrancesco, que se tornaria protector do pintor e fora educado sob a tutela do primo, tendo sido discípulo do poeta Poliziano e do filósofo Marsílio Ficino, o principal animador da Academia Platónica que se reunia num dos palácios da família, a Academia de Careggi, nos arredores da Cidade do Arno. Apesar da controvérsia que a identificação das fontes de inspiração da pintura tem suscitado entre os estudiosos do Renascimento, a leitura de Edgar Wind (Pagan Misteries in the Renaissance, 1968) é a mais abrangente e lúcida, baseando-se precisamente na conjugação de textos antigos e modernos proporcionados ao pintor por Poliziano e nos princípios da Theologia Platonica de Ficino. A leitura do quadro deve ser feita da direita para a esquerda.

     A primeira tríade de personagens representa a metamorfose da ninfa Clóris na esplendorosa Flora, por acção do vento fecundante da primavera, Zéfiro, inspirando-se num passo dos Fastos, do poeta latino Ovídio. Assim se justificam as cinco centenas de espécies botânicas representadas, atapetando os diferentes planos da composição, documentando o interesse para-científico dos artistas do Renascimento pela Natureza. Em contraponto, no lado oposto, vemos uma segunda tríade, constituída pelas Três Graças, Castidade, Beleza e Volúpia. Entre as duas tríades, Vénus, Deusa do Amor, comanda a acção que seu filho, Cupido, energia do Amor, desencadeia, ao disparar, cego, as flechas com o fogo da Paixão, na direcção da Castidade. Se, na primeira tríade, vemos um princípio produtor, em que a Paixão fecunda a terra e a transforma «em sons e cores» (como diria Fernando Pessoa), na segunda emerge um princípio conversor, em que a energia do Amor Divino desencadeia na Alma a procura da Verdade. E, de facto, o olhar da Castidade vira-se para Mercúrio, última figura desta istoria, mensageiro dos Deuses, líder das Graças e intérprete dos segredos, que, afastando com o seu caduceu as nuvens da obscuridade, conduz o intelecto na contemplação da luz escondida da Beleza intelectual. Uma tão sublime interpretação plástica do ideal do Amor e da Beleza, tal como o concebia o Humanismo florentino, dificilmente voltaria a ser alcançada, pelo que este quadro se transformou no ícone do próprio Quattrocento, coração artístico e filosófico de um Renascimento que será sempre, na história dos homens, uma eterna Primavera.

     O título da obra, Primavera, decorre de uma referência do pintor e escritor florentino Giorgio Vasari (nas suas Vite, 1550), segundo o qual a pintura “significa a Primavera”. De acordo com E. Wind, as fontes clássicas utilizadas por Botticelli foram principalmente os textos de Poliziano e, deste, as referências às Odes de Horácio e aos Fastos de Ovídio, sempre em episódios não forçosamente interrelacionados. Na cena da direita vê-se Zéfiro, o vento da Primavera, de bochechas inchadas a tentar tocar a ninfa Cloris, que procura escapar-lhe sem, no entanto, o conseguir. Do vento que sai da boca de Zéfiro escapam algumas flores que, ao tocarem Cloris, a transformam em Flora, a terceira figura do grupo e a mensageira da Primavera. Iremos encontrar nos Fastos de Ovídio o jogo etimológico que transforma a ninfa Cloris a deusa romana Flora: (Chloris eram quae Flora vocor). Há neste primeiro grupo uma clara alusão a um ciclo de tempo, mas não de um tempo cronológico, stricto sensu, mas do tempus que a idea platónica compõe ciclicamente. Como Wind refere, a criatura primitiva e tímida de Cloris (tal como Ovídio a descreve) dá lugar à beleza vitoriosa da Flora. Mas foi essa timidez e singeleza de vestuário, - uma túnica quase transparente e denunciar nudez -, que atraiu Zéfiro e fez dele “um fiel marido que a fez germinar e exibir mil cores de flores novas( Cf. Fastos)”. Este grupo da direita está, evidentemente, relacionado com as três figuras da esquerda, as Três Graças, baseando-se numa relação dialéctica ovidiana da trilogia pulchritudo, castitas, voluptas.  

     Enquanto no grupo da direita se denota uma criação da beleza, que está na figura central da pintura – a deusa Vénus, como sugeria Vasari – é desta divindade que decorre a presença das Três Graças, as ninfas que sempre estiveram ao seu serviço. Ao alto, sobre a cabeça da deusa, um Cupido de olhos vendados, dirige a sua seta para a Graça que se encontra no centro do grupo de três. Observando das Três Graças verificamos que se relacionam como numa dança, denunciada pelo modo como colocam os pés em sequência de movimento. A Graça que se encontra ao centro é, pelo seu vestuário e ausência de adornos, a Castitas. Veja-se, nomeadamente, a simplicidade do vestuário e a simplicidade das pregas da túnica, em evidente contraste com as suas companheiras. Por outro lado o rosto apresenta uma expressão triste e melancólica enquanto a Voluptas exibe um vistoso penteado, com tranças serpenteantes e uma jóia sumptuosa no peito, e túnica a acentuar as curvaturas do corpo. É a energia voluptuosa. A terceira graça, a Pulchritudo, é a mais atractiva e a que exibe orgulhosamente a sua beleza. A sua jóia é mais modesta e os cabelos não esvoaçam, serpenteantes, mas exibem um penteado cuidado menos espectacular que o da Voluptas.  facto de as Três Graças se apresentarem vestidas com túnicas e não exibindo nudez, como viria a acontecer em pinturas de outros mestres e, sobretudo, em épocas mais tardias, decorre, uma vez mais de autores clássicos, como Horácio e Séneca, como é de Horácio que resulta a sua gestualidade e também  o facto de não olharem, exibicionisticamente para o exterior. Aquilo a que Wind chama a coreografia da dança tem, mais uma vez, correspondência nas alusões da literatura clássica: “Ille consertis manibus in se redeuntium chorus” (Séneca). Estes atributos e gestualidade, obviamente decorrentes de fontes literárias, não se limitam a eles porque se limitam  a «reforçar o sentido da acção» (Wind). «Enquanto a “verde” Castitas e a “abundante” Voluptas avançam uma para a outra, a Pulchritudo, mantém-se pura e serena no seu esplendor, aliando-se à Castitas, agarrando-a pela mão e ao mesmo tempo unindo-se à Voluptas num gesto florido» (Wind).

     Há, naturalmente, um sentido dialéctico neste relacionamento entre as três graças  (e sob este ponto de vista encontramos aproximações entre as perspectivas de E. Wind e de E. Panofsky), sentido esse  que se definirá pela «oposição», «acordo» e «acordo na oposição», todas estas atitudes reflectidas pelos movimentos corporais, pela elegante colocação das mãos que se entrelaçam e, no caso da Voluptas e da Pulchritudo, se unem como que formando uma coroa sobre a Castitas, que elas próprias vão iniciar no Amor e, consequentemente, na tríade que acompanha Vénus. A ideia de Vénus, tradicionalmente identificada com a deusa do amor, sofreu algumas alterações desde as palavras do humanista Pico della Mirandola (que seguiu Plutarco) até Marsílio Ficino que, ao retomar, em versão sua, o mesmo Plutarco,  permite a Boticelli a introdução na dança das Três Graças de um sentido de decoro, sentido ausente da «enérgica vitalidade» (Wind) da relação do grupo da direita, quando Zéfiro se aproxima de Cloris, produzindo uma Flora com o «aspecto de jovem camponesa louçã» (Wind). Seguindo à letra a interpretação de Edgar Wind, “quando a Paixão (na figura de Zéfiro) transforma a fugidia Castidade (Clóris) na Beleza (Flora), a progressão representa o que Ficino denominou como «tríade produtiva»”. Daí que, quando estas três figuras se “transformam” nas Três Graças, passam a uma «tríade convertida» em que a Castitas, ao centro, se mantém virada de costas para o observador dirigindo o olhar para o “mais além”. E esse mais além é, nada mais nada menos, que a figura de Mercúrio que ergue o caduceu não para os frutos que pendem da árvore, mas sim para o pequeno grupo de nuvens que se acumula junto dos ramos.

     Qual a razão da presença de Mercúrio neste conjunto ? Resumindo os textos de Wind e as fontes clássicas, designadamente Vergílio (Eneida) e Boccaccio (Genealogia dos Deuses) teremos que Mercúrio, por tradição o guia das Três Graças, é simultaneamente aquele que conduz ao mais além, simbolizado na pintura pelas nuvens. E, curiosamente, esse mais além pode ser «lido» como a morte, identificável no seu manto pelo símbolo neoplatónico das múltiplas chamas invertidas (divinus amator). Mercúrio assume, aqui, uma multiplicidade de funções e significados que estabelecem o relacionamento não apenas com os grupos já mencionados, mas também com a deusa Vénus. O deus que domina as nuvens e os ventos “não era apenas o mais astuto e veloz de todos os deuses, o deus da eloquência [...], o guia das almas dos mortos, o acompanhante das Graças, o mediador entre mortais e deuses, o que salva a distância entre a terra e os céus; para os humanistas, Mercúrio era, sobretudo, o deus engenhoso, o do intelecto indagador, sagrado aos olhos dos gramáticos e metafísicos, o patrono dos eruditos e da interpretação, o revelador do conhecimento hermético, do qual o seu bastão mágico (o caduceu) chegou a ser símbolo” (Wind).

     Todavia, de todas estas funções, aquela que mais se aproxima do significado do grupo das Três Graças será a da divindade que atinge o «mais além». E não é por acaso que Botticelli representou a Castitas, voltando as costas para o observador e dirigindo o olhar para o mais além representado nos poderes de Mercúrio, seu guia e companheiro. Será ele que romperá as nuvens permitindo o acesso à luz divina. Tendo em conta a filiação da pintura nos textos dos clássicos e dos humanistas que retomaram os seus textos e referências, é possível concluir, com Edgar Wind (e também com Panofsky e, menos directamente, com Chastel), que “não é possível compreender totalmente a composição da pintura, nem entender completamente o papel de Mercúrio, até que se observa a simetria de composição entre esta divindade e Zéfiro”. Virar as costas ao mundo com o distanciamento de Mercúrio e regressar a ele com a impetuosidade de Zéfiro, são essas as duas forças complementares do amos, de que Vénus é a guardiã e Cupido o agente: «A Razão é a rosa dos ventos, mas a paixão é a tempestade»(Alexander Pope, apud Wind)”.  Mais ainda, se Zéfiro simboliza mitologicamente o vento, Mercúrio é o condutor das nuvens e, consequentemente, uma espécie de deus do vento (Ventus agere Merurii est, Boccacccio, in Genealogia dos Deuses). Assim, “Zéfiro e Mercúrio representam duas fases de um processo  periodicamente recorrente: o que desce à terra como sopro da paixão, regressa ao céu no espírito da contemplação”.

 

 

Biliografia (notas e reflexões a partir das leituras seguintes): 

Aby Warburg. The Renewal of Pagan Antiquity, intr. Kurt W. Forster, The Getty Inst., 1999.

Eveline Pinto, prefácio a Essais florentins de A. Warburg, Klincksieck, 1990;

Jean-Luc Chalumeau, Les théories de l’art, ed. Vuibert, Paris, 1994;

Michael P. Steinberg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America – Aby M. Warburg, Cornell University Press, 1995;

Claudia Cieri Via, Nei Dettagli Nascosto. Per una storia del pensiero iconologico, ed. Carocci, 1994 (reed. Roma, 2001).

André Chastel, Marsile Ficin et l’Art, Genève, Droz, 1996

Giorgio Vasari, Les Vies des Meilleurs Peintres ...., Vol 4, Paris, Berger-Levrault, 1983, pp. 253-266.

Erwin Panofsky, Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, Lisboa, Presença, 1981

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