Iconologia e Trans-memória: uma nota do diário de Aby Warburg.
1 Março 2022, 11:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
TRANS-MEMÓRIAS: UMA NOTA SOBRE ARTE E MAÇÃS.
Em 26 de Outubro de 1929 morria
em Hamburgo Aby Warburg. O fundador da
Iconologia (na realidade uma Antropologia das Imagens entendida
como espécie de meta-psicologia das sobrevivências, as nachleben) anotou
então um fenómeno singular: no jardim da casa, uma
macieira de há muito seca começava a gerar botões de fruto !
Descreveu no diário uma nota sobre a velha árvore
de frutos onde vida acabava de irromper... e morreu,
deixando na mesa de trabalho mais essa lição: quando menos se espera, a arte da
memória cria botões, isto é, renova rebentos frutíferos.
Assim se passa com os artista, reinventores de
tempos, aporias, fábulas crónicas
e fragmentos memoriais perdidos. No ensaio Essayer Voir (2014), Georges
Didi-Hubermann evocou as imagens da série 'Apple T', video-projecções do
polaco Miroslaw Balka (n. 1958) cuja obra é percorrida pela
memória traumática dos campos de extermínio
de Treblinka e Auschwitz.
Essas imagens, fragmentos de sítio onde nascem
maçãs por entre vegetação sem memória, são o fermento com que o
artista pretende rasgar o sentido dos tempos (mais do que decifrar sinais
históricos), assumindo a busca identitária através de uma criação feita nos
limites do teórico e do poético. Mais uma vez as obras de
arte (e a História da Arte que as estuda) provam que
só fazem sentido se vistas numa dimensão afectiva, antropológica
e trans-contextual. Como diz Didi-Huberman, «la raison, l'art,
la poésia, ne nous aident sans doute pas à déchiffrer le lieu d'où ils ont été bannis,
mais ils nous démeurent nécessaires, et même vitaux, pour le déchirer».
Belo elogio, sem dúvida, sobre esta nossa senda através de parcelas floridas de
humanização -- que é a terra em que a arte reside. Tal como esta história de
maçãs renascentes ajuda a lembrar...