O pensamento de Aby Warburg: actualidade do seu legado.

8 Março 2022, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Fala-se hoje de um renascimento das teorias de Aby Warburg  para designar o interesse crescente pela sua obra e reconhecer que terá chegado ao momento da sua legibilidade. Este renascimento não é motivado por interesse arqueológico, mas pela constatação de que todo o seu trabalho -- elaborações teóricas, investigações, a constituição da grande biblioteca que o ocupou a vida inteira -- são um contributo fundamental para pensar a História da Arte, isto é, tanto a disciplina assim chamada – nos seus métodos, nos seus pressupostos – como a própria historicidade das obras de arte. E de modo mais alargado para pensar o vasto campo das ciências da cultura.   

É certo que contingências de vária ordem tornaram difícil a transmissão e recepção de um legado que nunca adquiriu uma forma fixa e acabada e nem sempre se materializou em «obra». 

Quando morreu, em 1929, com 63 anos, Warburg deixava a seguinte herança:

1) o exemplo pessoal de alguém destinado a gerir a os negócios da família de banqueiros judeus de Hamburgo, com enorme relevo na vida da cidade desde o século XVII, mas que opta por uma vida de Privatgelehrter (de erudito trabalhando em regime livre e privado), sustentada pela fortuna familiar, que o torna um representante notável e quase certamente último de «um tipo de erudito senhorial, esplendidamente inaugurado por Leibniz», como o classificou Walter Benjamin no seu ensaio sobre Bachofen.

2) uma biblioteca erguida à custa de investimento privado (de acordo com o entendimento de que «o capitalismo pode também permitir a realização de um trabalho de reflexão com o mais vasto alcance», prescindindo para um irmão das suas prerrogativas de herdeiro) e reflectindo, na sua complexa organização, os interesses, métodos e conhecimentos do seu criador, acabaria por se tornar em 1921 uma instituição parcialmente pública, desempenhando ao mesmo tempo as funções de instituto de investigação, cuja direcção foi assegurada por Fritz Saxl

3) um conjunto de estudos em grande parte consagrados aRenascimento, campo onde centra a sua investigação histórica e antropológica, apresentados sob a forma de conferências ou comunicações em congressos em parte nunca editados; um volume imenso de notas, apontamentos e escritos diarísticos que reflectem um processo de trabalho com dificuldade em se cumprir (a cada página escrita correspondem dezenas ou centenas de páginas de notas); 

4) um «Atlas» consistindo num conjunto de 63 painéis, onde agrupa mais de mil fotografias a que deu o nome grego colocado à entrada da biblioteca, Mnemosyne, através do qual queria mostrar a permanência de certos valores expressivos dotados de uma «força formadora de estilo» (stilbildende Macht), que sobrevivem como património sujeito a complexas leis de transmissão e recepção.

A administração de tal herança tem-se revelado difícil. Os dois volumes de escritos reunidos só são editados em 1932 por Gertrud Bing, fiel assistente de Warburg, e só vieram a ter continuidade quando em 1998 foram reimpressos, inaugurando uma edição dos Gesammelte Schriften que compreende seis secções. Até à data, para além desses dois volumes com o mesmo título da edição de 1932, Die Erneurung der heidnischen AntikeKulturwissenschaftliche Beiträge zur Geschichte der europäischen Renaissance, foram ainda publicados o Bilderatlas Mnemosyne (2000) e o Tagebuch der kulturwissenschaftlichen Bibliothek Warburg (2001), o que parece indicar que a tarefa editorial está finalmente em andamento.

É ainda uma parte do anunciado, mas já encontramos material que antes só se conhecia em segunda mão, através das referências de quem trabalhou no arquivo do Instituto Warburg, em Londres, especialmente através de E. H. Gombrich, seu director a partir de 1959 e autor de uma biografia intelectual de Aby Warburg saída em 1970.