História da Escrita Latina II
8 Outubro 2019, 16:00 • Susana Tavares Pedro
UNCIAL
O afastamento da escrita usual latina em relação à escrita canonizada (maiúscula cursiva) era demasiado grande para que não surgisse o impulso de formar uma nova escrita que a substituisse mesmo nos libros de maior prestígio editorial, ou seja, uma nova canonização.
A nova canonização dá-se no ambiente de algumas escolas escribais na vanguarda da vida cultural latina e latino-cristã (em África, segundo Traube). séculos IV-V dC
Terá sido motivada pela
• permanência do gosto pelo sistema bilinear maiúsculo
• influência de modelos alfabéticos consagrados por uso secular
=> nasce uma escrita que incorpora algumas caracteríscticas da nova usual mas reduz-lhe as hastes e alguns olhais e se reintegra no esquema bilinear
As letras características da uncial são: a, d, e, m, mais o g, h, l, q e u.
Têm em comum um traçado arredondado, com formas mais largas, espaçadas e pesadas que as da capital, e Cencetti vê nesta característica um reflexo do gosto estético e não o produto de uma mudança técnica (mudança do suporte do papiro para o pergaminho) uma vez que se encontra em escritos sobre papiro.
É a segunda canonização da idade romana, e manteve-se em uso durante o século VIII e mesmo até ao s. XI nas rubricas dos capítulos (mais do que a capital)
MINÚSCULA PRIMITIVA
Sendo um compromisso entre o velho e o novo, mesmo depois de canonizada, em muitas escolas escribais contiuam a tendência para extrair da “usual” uma outra escrita livresca minúscula, mais fluida e desinvolta que a uncial e, ao mesmo tempo, típica e caligráfica.
=> entre finais V e princ. VI os mesmos elementos que foram usados na canonização da uncial são adaptados a uma nova caligrafização, a que se dá o nome de minúscula primitiva (tb minúscula antiga ou semiuncial — este menos adequado porque não deriva da uncial, como o nome sugere).
Mantém alguns elementos formais como o arredondamento das formas mas respeita plenamente os modelos alfabéticos livrescos usuais.
Embora seja considerada por alguns autores como o 3.º tipo de escrita romana, Cencetti duvida que tivesse sido um “tipo”, i.e., “una forma scrittoria com regole fisse e determinate”. [70]
Cencetti : a minúscula antiga é uma escrita na qual o processo de canonização foi interrompido em consequência da ruptura da unidade cultural e gráfica latina provocada pelas invasões bárbaras.
No seu cânone de formação estariam:
• a completa aceitação dos modelos alfabéticos minúsculos da escrita usual
• o arredondamento do traçado das letras com contraste vertical e oblíquo
Os olhais pesados e espaçados e as hastes pouco aumentadas davam-lhe um aspecto geral não muito diferente das maiúsculas e da uncial em particular. Usada esparsamente nos séculos VI e VII, quase desaparece no s. VIII e não resiste à nova minúscula do s. IX.
minúscula cursiva
Além destas transformações da escrita usual latina, a partir da maiúscula cursiva, numa nova canonização livresca (uncial) e numa via tendencialmente canonizável também livresca (a minúscula antiga ou semiuncial ou minúscula primitiva), há outra vertente que opera no âmbito da expressão cursiva da escrita usual.
(Battelli 2002: 75) Um elemento que aparece primeiro como tendência na maiúscula cursiva e se acentua até a transformar num outro género de escrita é o elemento minuscolizante, notável desde fins II dC.
O testemunho mais antigo data de 287-304 ou 287-293 e não se pode imputar apenas à escrita da maiúscula cursiva sobre papiro.
1. traçada com cálamo aparado em ponta aguda -> não há contraste
2. rapidez do traçado reflecte-se na feitura das letras individuais
3. reflecte o «tratteggio invisibile» das letras, i.e. o percurso que a mão deve realizar com o cálamo erguido entre o fim de um signo e o princípio do seguinte, as formas alfabéticas transformam-se "espontaneamente" para para o tornar o mais curto, ágil e escorreito possível. No traçado cursivo o cálamo sucede ficar pousado no suporte e dá-se a formação de ligaduras
4. as ligaduras, "efeito espontâneo da dinâmica de escrita", tornam-se elemento essencial da escrita cursiva e constrangem o modelo fundamental das letras individuais, obrigando a modificações, das quais a mais frequente é a abertura de olhais normalmente fechados.
No séc. V a minúscula cursiva perde as formas arredondadas características e a verticalidade do século anterior, inclina-se para a direita, fica mais cerrada e mais alongada, mais regular e aumenta a tendência para formar ligaduras.
Com o desmembramento do Império (476)não cessa de imediato a unidade gráfica que dura até à segunda metade do século VI. As escritas canonizadas, com regras fixas, mantém-se em uso, tal como a minúscula cursiva, em uso quotidiano. É um comunhão fundada na tradição que deixa gradualmente de ser nutrida por trocas contínuas. Tem em si o germe da diferenciação, ou melhor, de um desenvolvimento ramificado geograficamente em cada um dos novos reinos europeus.escritas “nacionais”
nas ilhas britânicas desenvolvem-se as formas mais livrescas da minúscula antiga (semiuncial) que são canonizadas em duas vaiedades: maiúscula e minúscula insulares – conserva sempre um carácter de escrita de livros, mesmo quando usada em documentos.
Em Espanha têm preponderância as formas mais correntes, cursivas e semicursivas, da mesma minúscula antiga, com um cursiva com formas e características locais muito pronunciadas que adquire alguma estabilidade morfológica nalgumas variedades (leonesa e moçárabe) e com duas variedades livrescas canonizadas, (toledana e castelhana).
Em França têm primazia as formas de chancelaria, cada vez mais artificiosas, canonizadas na escrita merovíngica, sem resolver o problema das escritas livrescas. Mantém-se o uso da uncial e da semi-uncial em paralelo com o universo disperso e florescente das pré-carolinas elaboradas em scriptoria monásticos, a maior parte das quais são tentativas de caligrafização das expressões cursivas e semi-cursivas da minúscula antiga ou mesmo da merovíngica.
Em Itália usam-se a uncial e a semi-uncial nos livros e, nos documentos, a minúscula cursiva, que se localiza e especializa em variedades particulares de «corsiva nuova» (ainda não estudadas sistematicamente), que dão lugar a canonizações cancellerescas na corte pontifícia (escrita curial) em em Nápoles (curialisca). No Norte as tentativas de criação de uma escrita livresca é interrompido com a adopção da minúscula carolina e no Sul, no mosteiro de Montecassino, canoniza-se a beneventana que se torna a escrita nacional livresca dessa zona da Itália e da Dalmácia.
minúscula carolina
Na sequência da evolução anterior, faltava completar um processo de refinamento, de adaptação das formas básicas da escrita usual a uma escrita livresca caligráfica, harmoniosa, que respondesse às exigências estéticas mais rigorosas, ou seja, uma escrita "que representasse para a «usual» minúscula o que seis séculos antes representara a capital para a «usual maiúscula» de então (Cencetti 1997:166). Foi este o processo interrompido com a ruptura da unidade gráfica do mundo romano.
O universo gráfico que nasceu desta ruptura permanece intrinsecamente romano mas articula-se em direcções divergentes e torna-se fragmentário e dispeso. Atenua-se o sentido de exemplaridade (de modelo exemplar).
Esta deriva cultural teria tido enormes consequências na difusão e circulação dos livros (do conhecimento e da cultura) mas foi travada pelo nascimento de uma escrita que se pode considerar a expressão gráfica da cultura romano-cristã universalizante do Sacro Império Romano-Germânico que, pela primeira vez, existe como ideia espiritual: a minúscula carolina.
No reinado de Carlos Magno renasce a ideia da unidade do ocidente cristão. A estabilidade política propicia o desenvolvimento cultural com a criação de novas escolas e a procura de textos mais correctos do ponto de vista textual e de livros mais acessíveis graficamente. Enquadramento cultural é a prática de escrita monástica especialmente em ambiente beneditino na busca pela simplicidade. A escrita carolina nasce da confluência de duas correntes gráficas, a usual cursiva e as semiunciais livrescas. Ressalta como uma das maiores influências a escrita pré-carolina que se foi desenvolvendo no mosteiro de Corbie, cuja exemplo no seu estádio final é a Bíblia datada de 772-780. Esta escrita apresenta já as características (ainda arcaicas) da nova escrita.Os vários paleógrafos que se debruçaram sobre o problema da origem da escrita carolina tenderam a procurar justificar a sua criação num único centro de escrita, de onde teria depois alastrado: Roma, S. Martin de Tours (com Alcuíno de York), a escola Palatina, Corbie, Luxeuil, Lucca. Cada uma destas teorias considera a origem da carolina em determinado centros de escrita sem explicar o seu surgimento quase contemporâneo em centros diversos e longínquos (Battelli: 175). Hoje entende-se que não se pode procurar um ponto geograficamente localizado da génese da carolina mas (Gasparri) sim reconhecer nos vários exemplos que são identificados em diversos mosteiros do território Franco e italiano a convergência de dois elementos: a re-elaboração da semiuncial (em parte assente no tipo de Corbie) e a síntese de escritas pré-carolinas de cariz cursivo = é um mistura de muitas formas de origem comum, o resultado de uma corrente geral. Procede de um evolução lenta e progressiva que se desenvolve não por obra de uma pessoa ou de uma escola mas em relação a um vasto movimento cultural que foi o renascimento dos estudos no tempo de Carlos Magno. A expressão pré-carolina designa todas as escritas minúsculas não cursivas nem semi-cursivas de carácter livresco usadas em França e na do Norte anteriores à carolina, ou seja, designa todas as tentativas individuais ou de escolas para criar uma minúscula que substituísse a uncial e a semi-uncial na escrita de códices. Mas nenhuma pré-carolina pode ser considerada a «mãe» da carolina: salvo raríssimas excepções, nenhuma tem a figura do A uncial e em nenhuma se nota a tendência para eliminar as ligaduras, outra característica fundamental da carolina. Em termos da morfologia essencial, a carolina tem mais pontos de contacto com algumas minúsculas antigas ou com semi-unciais cursivizantes. A evolução da minúscula romana antiga tinha atingido um ponto estável na forma cursiva mas (Cencetti) estava ainda "à procura" de uma expresssão livresca. A semi-uncial, em vias de canonização, foi uma das linhas concretas mas não a única, que exprimiu as tendências para o alongamento das hastes, a redução do corpo das letras, e que se detectam em escritas que a paleografia tradicional definiu como "de transição". Muitos dos códices terão desaparecido, quer porque de aspecto mais modesto que os em uncial e semi-uncial, quer pela fragilidade do suporte (papiro), descartados após cópias sucessivas. Mas no terceiro quartel do século VIII aparecem por todo o lado escritas minúsculas que reflectem as mesmas tendências evolutivas anteriores e de onde se destaca um tipo que prevalece e a esse se dá o nome de minúscula carolina.
Trata-se, portanto, não de uma nova criação mas de uma continuação e concretização de um processo evolutivo implícito nas formas antigas abandonadas e retomadas, a prossecussão em vários locais de um processo geral evolutivo iniciado no período da unidade gráfica do mundo romano e mantido em suspensão durante duzentos anos.
Resta explicar o porquê deste regresso a modelos esquecidos: a resposta genérica é (Cencetti) óbvia: é o vasto movimento cultural do renascimento carolíngio. A escrita carolina afirma-se nas últimas décadas do século VIII por substituição (Battelli) ou por transformação (Cencetti) as minúsculas locais nos países francos, na Itália do Norte e do Centro, na Alemanha e Suíça; no séc. IX difunde-se na Catalunha e no séc. XII no resto da Península Ibérica. Da utilização livresca passa para uso de chancelaria (onde dará origem à minúscula diplomática nos sécs. IX-XII) e documental, neste caso sem se formar uma variedade cursiva, apenas com traçado mais livre, menos regular Do ponto de vista da morfologia, é uma escrita com formas regulares e constantes; com excepção do N nos primeiros tempos (até m. IX), todas as letras são de forma minúscula, sendo de salientar o S alto em substituição do capital
• cada letra está isolada, traçada em vários tempos segundo um ductus definido, sem ligaduras. Apenas se mantém algumas ligaduras que são tratadas de maneira caligráfica: et, st, nt, rt mais tarde ct. É caracterizada pelo aspecto arredondado das formas, equilíbrio entre o corpo das letras e as hastes ascendentes e descendentes, espaçamento das letras e ausência quase total de abreviaturas até ao século XI. No século XI começam a aparecer características particulares em cada nação.
Com o tempo, a escrita carolina sofre modificações nas suas formas primitivas e, em finais do século XII, adquire um aspecto mais anguloso que a transforma nas várias formas da escrita gótica:
• em Itália é grande e redonda, regular
• na Alemanha é mais pesada, grossa e angulosa
• em Inglaterra é alta e estreita com traços finos
• em França assemelha-se à inglesa mas mais grossa e arredondada
• em Espanha tem semelhanças com a francesa. Em Portugal só a partir do primeiro quartel do séc. XII aparecem formas alfabéticas misturadas com as da visigótica redonda que Santos considera carolino-góticas ou da gótica primitiva. De notar que estes elementos são, inicialmente, parte do sistema braquigráfico de abreviação por letra sobrescrita. A predominância das formas góticas (ao lado de formas da visigótica redonda e da visigótica cursiva) caracterizam a visigótica de transição ou semi-visigótica, atestável nos documentos no período entre 1054 e 1172.