VIAS PARA A COMPREENSÃO DE UM TEXTO. EXEMPLIFICAÇÃO A PARTIR DO TEXTO DE EPICURO, Carta a Meneceu
12 Outubro 2015, 12:00 • Adriana Veríssimo Serrão
VIAS PARA A COMPREENSÃO DE UM TEXTO
I. EXPLICAR
- O sentido do texto é imanente ao texto.
- Limitar-se ao texto e não sair dele (não introduzir elementos estranhos).
- Explicar todo o texto, mas apenas o texto.
- Explicitar todas as noções, conceitos, temas e teses centrais (apresentá-los por palavras nossas).
- Mostrar a articulação dessas noções e teses numa síntese completa (“um todo ordenado”, segundo Kant).
- Redigir em linguagem clara e concisa.
- Recordar que a sequência dos enunciados (a "ordem da exposição") pode não coincidir com a “ordem das razões”.
II. COMENTAR
O comentário aplica-se geralmente:
- a teses (afirmações centrais).
- a curtos excertos de texto.
- pode incidir ainda sobre noções e conceitos (ou outros elementos) que permanecem ainda obscuros após a explicação e carecem de esclarecimento "fora do texto".
Segundo Pierre-Jean Labarrière, o comentário pode ser entendido como simples paráfrase ou já como um processo de invenção:
"O 'comentário' então – e entendo esta palavra que aqui surge, pela primeira vez, na sua acepção mais banal – recebe a forma de uma 'pará-frase' que duplica o texto, inscrevendo-se nas suas margens, propondo, em relação a ele, uma outra expressão, cuja forma mais simples é a tradução-transposição de língua para língua, mas que pode deslizar já na figura de uma obra original, excedendo os limites de uma repetição melhorada, para prolongar a pesquisa que se encontra aí inaugurada.
Deslize imperceptível que nos afasta da simples paráfrase do primeiro género e que delineia outras potencialidades para o comentário. Com efeito, a fecundidade do gesto originário exige este esforço de inovação que se apoia no texto, para dele extrair outras figuras de sentido, em função das exigências de uma situação nova; processo de invenção que não designa nem autoriza qualquer insuficiência do texto fundador."
Pierre-Jean Labarrière, "Textos sobre texto ou como silenciá-lo?", in Irene Borges Duarte et alii (org.), Texto, Leitura e Escrita. Antologia, Porto: Porto Editora, 2000, pp. 185-192.
Para o esclarecimento desses elementos, ser útil consultar um dicionário de língua portuguesa.
Mas é necessário recorrer a bibliografia especializada:
-- OBRAS INSTRUMENTAIS:
- Vocabulários e Dicionários de conceitos filosóficos.
- Enciclopédias de Filosofia.
- Histórias da Filosofia.
(Estas obras têm diferentes níveis de complexidade, sendo conveniente começar pelas mais simples e ir avançando para as mais elaboradas).
-- BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA:
Estudos especificamente dedicados ao(s) tema(s) e ao(s) autor(es).
Ex: a Contextualização e o Comentário à Informação … de Kant ou à Carta de Epicuro.
Estudos cada vez mais especializados, consoante a exigência da investigação.
III. INTERPRETAR
Restituir o sentido geral do texto, articulando o sentido expresso (manifesto) com outros entidos implícitos.
Níveis de integração
- na obra do autor.
- na época histórico-cultural.
- na problemática filosófica em jogo.
-
EXEMPLIFICAÇÃO A PARTIR DO TEXTO DE EPICURO, Carta a Meneceu
Teses explícitas:
A. Necessidade e utilidade da filosofia.
A filosofia como caminho para a felicidade.
A filosofia como terapia (cura dos males que afectam a busca da felicidade)
Obstáculos à felicidade: temor dos deuses, medo da morte, receio de não ter bens, medo das dores
Os males fundamentais do homem são todos ilusórios.
B. Natureza do prazer
É o princípio (archè) e finalidade/fim (telos)
Ausência de dor física (aponia) e de perturbação da alma (ataraxia).
= ausência de movimento e de dor = estabilidade, equilíbrio de corpo e alma.
= serenidade
C. A prudência ou ponderação (phronesis)
Alcançar saúde do corpo e tranquilidade da alma.
A reflexão indica quais os desejos legítimos e ilegítimos:
· a) Naturais – necessários (conservação da vida)
· b) Naturais – não necessários (excessos, requintes…)
· c) Não naturais nem necessários (artificiais, originados na sociedade)
D. A sabedoria ou a liberdade do sábio
“Vida boa”: não tomar como a) os c); vigiar os b).
Seguir os prazeres naturais.
Não estimular os desejos, dominá-los e extingui-los.
Autarqueia /autarcia (suficiência); (<autarkes / autarca: auto-suficiente)
Phronesis: cálculo da utilidade e escolha do prazer maior (reflexão sobre o fim), sabendo que, por vezes, a dor presente leva a um prazer maior.
· prazer cinético (kinesis, movimento): alegria (hedonè)
· prazer catastemático: ausência de dor; sem mais nem menos. É o bem supremo.
(Epicuro admite os dois, tendo em conta o segundo).
Comentário
“A prudência é mais importante que a filosofia”
Comentar=pensar com
Interpretação geral
Filosofia moral: o bem alcança-se como termo de uma prática equilibrada dos prazeres.
Filosofia como arte de viver ou prática de vida (ou como medicina animae).
Estilo filosófico: a carta.
Níveis de contextualização
Biográfico: vida e obra de Epicuro (séc. IV a C.)
Na obra do autor (outros textos que fundamentem e esclareçam os pressupostos gerais do pensamento de Epicuro:
- a física (o atomismo)
- a metafísica (refutação do espiritualismo e negação da providência)
- a antropologia: inseparabilidade de alma e corpo; a alma não é imortal; a alma é contemporânea do corpo
Na época histórico-cultural: fim da época clássica, fase helenística.
Na problemática filosófica em jogo: o problema ético.