HERDER: A ideia de cultura e a diversidade das culturas dos povos

17 Abril 2020, 10:00 Adriana Veríssimo Serrão

HERDER: A ideia de cultura e a diversidade das culturas dos povos

 

Para citar este documento nos trabalhos, usar as páginas deste mesmo Word.

 

1. Apresentação. Da autoria de Ma­nue­la Ri­beiro Sanches retirada do livro Ma­nue­la Ri­beiro Sanches e Adriana Veríssimo Serrão, A Invenção do “Homem”. Raça, Cultura e História na Alemanha do século XVIII, Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2002, pp. 265-266.

 

“Obra de toda uma vida, a Filosofia da História da Humanidade (1784-91) de Herder retoma e problematiza as propostas de Iselin e de Meiners. Se a história da humanidade narra o modo como o «homem» progrediu do estado de «selvajaria» ou «barbárie» para a «civilização», a Filosofia da história da humanidade tenta pensar esse progresso de forma mais complexa e contraditória. Autor da primeira grande crítica à filosofia da história das Luzes na sua obra de juventude, Também uma filosofia da História para a formação da Humanidade (1774), Herder tem consciência dos limites dessa filosofia do progresso e do seu eurocentrismo. Defensor das culturas entradas em declínio, das minorias eslavas e não-europeias, Herder desenvolverá a ideia prenunciadora do relativismo cultural, segundo a qual as culturas deverão ser interpretadas a partir de si mesmas, na medida em que cada uma repousa sobre o seu próprio centro. Tal proposta prende-se com o facto de as generalizações e abstracções da História da Humanidade não serem susceptíveis de dar conta da individualidade que assiste a qualquer cultura, na medida em que todas as nações «têm em si mesmas o seu ponto intermédio da felicidade, tal como cada esfera possui o seu centro de gravidade». […] a filosofia da história herderiana pressupõe a unidade do género humano, na medida em que todo ele partilha de um plano de aperfeiçoamento, que reúne quer as manifestações físicas quer culturais.

[…] o modo como a clima continua a exercer um papel decisivo na transformação física e cultural dos povos, introduz o acaso na história da humanidade, excluindo qualquer possibilidade de uma superioridade necessária e inata, incompatível com a dignidade humana. A analogia entre o homem e a natureza que o circunda pretende, sobretudo, assinalar o modo como as culturas evoluíram e se adaptaram diferentemente, contra a lógica linear dos «civilizados». É evidente a polémica com as visões que sabem apenas pensar a evolução como um processo civilizacional europeu, polémica essa patente no interesse pelas diferentes manifestações culturais e adaptabilidade às condições do solo e do clima. Os elementos que revelam o modo como nas terras mais inóspitas os homens inventam e transmitem geracionalmente modos particularmente criativos de lidar com essas limitações […].

A crítica das Luzes desemboca assim numa das mais veementes críticas do colonialismo europeu, em que a diferença e a igualdade do género humano não surgem dicotomicamente opostas, nem tão pouco submetidas a uma dialéctica legitimadora da violência. Contudo, a teleologia e a universalidade presentes na obra de Herder não escondem um modelo eurocêntrico, embora também haja que assinalar que é a ressalva dos momentos individualizados das culturas que impede a tentação de impor um modelo de aperfeiçoamento: a felicidade individual, o mesmo é dizer, o direito à diferença, a que a lógica do progresso europeu se opõe ou pretende subsumir sob um ponto de vista histórico-filosófico kantiano, persiste assim no horizonte de uma utopia em que igualdade e diferença, universalidade e particularidade constituem dois pólos em tensão.”

 

2. Johann Gottfried Herder, II parte da obra Ideias para uma filosofia da história da humanidade. (1785)

O esboço de um quadro da Humanidade até agora apresentado não deverá ser mais que o pano de fundo sobre o qual desenvolveremos algumas observações, do mesmo modo que os respectivos grupos mais não podem pretender ser do que templos dos auguros no céu, a saber, meios auxiliares para a nossa memória. Vejamos pois aquilo que eles oferecem para a filosofia do nosso género.

LIVRO VII. POR MUITO DIVERSIFICADAS QUE SEJAM AS FORMAS DO GÉNERO HUMANO SOBRE A TERRA, TODAS PERTENCEM A UMA E MESMA ESPÉCIE

Se, na natureza, não existem duas folhas iguais numa árvore, ainda menos encontramos dois rostos e duas organizações humanas que se assemelhem. De que infinita diversidade é a nossa estrutura rica em artifícios capaz! As suas partes sólidas dissolvem-se em fibras de tal modo finas e entrelaçadas de múltiplas formas entre si, que nenhum olho as consegue detectar; estas encontram-se ligadas entre si por uma matéria viscosa, cuja mistura delicada escapa a qualquer arte calculadora; e, contudo, estas partes são a ínfima parte daquilo que possuímos. Mais não são que recipientes, invólucros e condutores de um humor rico em diversidade e vitalidade que existe em muito maior quantidade em nós e através do qual desfrutamos e vivemos. «A estrutura interna de um homem, diz Haller, nunca é exactamente idêntica à de outro. Os seus nervos e artérias distinguem-se em milhões e milhões de circunstâncias, pelo que não podemos detectar, perante a diversidade destas partes delicadas, em que é que se assemelham.» Se o olhar do anatomista reconhece esta diversidade infinita, qual não será a diversidade que habita as forças invisíveis de uma organização tão cheia de artifício! Assim, cada homem torna-se finalmente um mundo, um fenómeno semelhante do ponto de vista exterior, mas no seu interior é um ser único e incomparável.

E uma vez que o homem não é uma substância independente, mas se encontra ligado a todos os elementos naturais — vive do sopro do ar bem como dos mais diferentes produtos da terra, as comidas e as bebidas, consome o fogo, do mesmo modo que absorve a luz e infecta o ar; acordado ou adormecido, em repouso e em movimento contribui para a transformação do universo —, como não poderia ele deixar de ser transformado por estes? Não basta de modo algum compará-lo à esponja absorvente ou à centelha incandescente; ele é uma harmonia infinita, um Mesmo vivo sobre o qual age a harmonia das forças que o rodeiam.

Todo o curso da vida de um homem é mudança, todas as suas fases da vida são fábulas dessa mudança e assim todo o género humano se encontra em permanente metamorfose. As flores caem e morrem; outras irrompem e despontam; a árvore antiga carrega sobre a sua copa todas as estações. Se, ao calcular-se a segregação, se conclui que o corpo dum octogenário se renovou pelo menos vinte e quatro vezes, quem poderá acompanhar as mutações da matéria e das suas formas em todo o reino humano com todas as causas da transformação, se não existe um único ponto sobre o nosso globo, uma onda na corrente do tempo que sejam iguais? Os habitantes da Alemanha eram há poucos séculos patagónios e já não o são; os habitantes de futuros climas não se assemelharão a nós. Mas remontemos a esses tempos em que tudo sobre a terra parece ter sido diferente, quando, por exemplo, os elefantes viviam na Sibéria e na América do Norte, em que ainda existiam os animais enormes cujos esqueletos foram encontrados junto ao rio Ohio etc.; como tinham de ser diferentes os homens que agora vivem nessas regiões dos seus actuais habitantes! E assim a história da humanidade torna-se num palco de transformações que já só reconhece no seu todo Aquele que anima todas estas imagens, se regozija e se sente em todas. Cria e destrói, aperfeiçoa e transforma formas, depois de ter transformado o mundo em seu redor. O peregrino sobre a terra, a efemeridade transitória, só pode admirar uma ínfima parte dos milagres deste grande espírito, regozijar-se com a forma que lhe foi atribuída na grande cadeia do ser, adorar a forma e com ela desaparecer.

Mas como a inteligência humana busca a unidade na diversidade e o entendimento divino, à imagem do qual foi criado, associou por toda a terra a unidade à infinita multiplicidade, podemos também deduzir do gigantesco reino das transformações a proposição mais simples: o género humano é uma só e mesma espécie sobre a terra. […]

Finalmente, desejaria que não se exagerassem as distinções dentro do género humano resultantes de uma ciência louvável. Foi assim que alguns ousaram designar como raças quatro ou cinco divisões daquele, divisões essas originariamente introduzidas segundo regiões e cores; não vejo motivo para tal designação. Raça indica uma origem diferente que ou não se verifica ou que compreende em todos os climas, sob todas estas cores, as mais diversas raças. Pois todo o povo é um povo: tem uma morfologia nacional, tal como possui uma língua; é certo que o clima lhe conferiu determinadas características, o cobriu com um véu ligeiro, mas isto que não destrói a imagem originária da nação. Esta estende-se às famílias e as suas transições são tão variadas quanto imperceptíveis. Em suma, não existem sobre a terra quatro ou cinco raças, nem variedades exclusivas. As cores fundem-se umas nas outras; as formas dependem do carácter genético; e, no seu todo, mais não são do que matizes de um e mesmo quadro que se estende a todos os locais e tempos. Não pertencem, assim, nem à história natural sistemática, nem à história físico-geográfica da humanidade.”

 

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DA OPOSIÇÃO ENTRE GÉNESE E CLIMA

[...] Ninguém exige que, num clima estranho, uma rosa se transforme num lírio, um cão num lobo, pois a natureza traçou fronteiras precisas entre as espécies e prefere deixar sucumbir uma criatura, a que a sua imagem se distorça ou deteriore. Mas que a rosa seja susceptível de variedades, que o cão adquira algumas características do lobo, isto já é conforme com os exemplos que a história fornece. E, também neste caso, a variação não procede tão só por meio de uma violência mais ou menos rápida ou lenta, exercida sobre as forças orgânicas que se lhe opõem. Ambas as forças em conflito possuem, portanto, um enorme efeito, mas cada uma age à sua maneira. O clima contém em si um enorme número de causas, que agem de forma muito desigual e, portanto, também de um modo lento e diversificado, até que finalmente penetram no interior e o transformam através do hábito e da génese; a força viva resiste durante muito tempo, forte, uniforme e igual a si mesma. Mas, como não é independente de circunstâncias externas, também tem de adaptar-se gradualmente a estas.

Em lugar de prosseguir a discussão no geral, preferiria uma análise atenta de casos particulares, para o que o campo da geografia e da história nos oferece inúmeros exemplos. Sabemos, por exemplo, o que sucede a determinadas colónias portuguesas em África e a outras espanholas, holandesas, inglesas e alemãs nas Índias Orientais e na América, consoante adoptaram os costumes dos nativos ou conservaram os costumes europeus etc. Se tudo isto tivesse sido analisado com precisão, poder-se-ia então passar a migrações mais antigas como as dos malaios nas ilhas, dos árabes em África e nas Índias Orientais, dos turcos nos países por eles conquistados e depois aos mongóis, aos tártaros e finalmente ao enxame de nações que cobriram a Europa durante as grandes migrações. Nunca se deveria esquecer qual o clima de que um povo proveio, o modo de vida que trouxe consigo, o país que encontrou, os povos com que se misturou, as revoluções que experimentou na sua nova sede. Se este exame fosse tornado extensivo aos séculos sobre os quais possuímos dados mais precisos, talvez se pudessem aplicar as conclusões a estas antigas migrações de povos que conhecemos apenas através de mitos de escritores antigos ou de coincidências entre mitologia e língua: pois todos ou a maior parte dos povos sobre a terra migraram mais cedo ou mais tarde. E assim obteríamos, com recurso a alguns mapas, uma história físico-geográfica da origem e da transformação do nosso género, segundo os climas e as épocas, que teria de fornecer gradualmente os mais importantes resultados.”