O conceito de Cultura
26 Março 2020, 10:00 • Adriana Veríssimo Serrão
26 de Março 10h-12h (aula não presencial, sem contacto com os alunos)
O conceito de Cultura
Depois dos acesos debates sobre como seria o Homem em estado de pura natureza, já no final do século XVIII esta questão deixa de ter relevância. O interesse centra-se agora na compreensão da Cultura. Se a hipótese de um “estado natural” fora importante para justificar a igualdade entre os homens (e os direitos naturais), o conceito de Cultura vai poder justificar as diferenças entre modos de pensar e de viver que caracterizam a diversidade humana e a imensa variedade das suas manifestações: línguas, religiões, produções artísticas, técnicas, modos de alimentação, ….
O pensador de referência é Johann Gottfried Herder, um aluno de Kant, mas que critica o que seria em Kant uma ideia de razão demasiado universal, logo, demasiado uniforme e abstracta. Herder é justamente considerado o fundador da filosofia da cultura.
A diversidade das culturas é interpretada como uma extensão e adaptação ao mundo natural. Herder apresenta o homem como um ser disperso por solos e climas, em contacto com diferentes plantas e animais, ligado aos elementos naturais, alimentando‑se e vivificando‑se deles, seja em ambiente propício ou hostil. Mas nas suas considerações não são os traços meramente físicos, como a estatura ou a cor da pele, que lhe interessa sublinhar. São, sim, os povos, as comunidades enraizadas na sua terra natal, um enraizamento do qual provém uma espécie de seiva interior que define a característica própria de cada um e a respectiva diferença em relação aos restantes. É por isso o povo, e não a raça, a unidade originária, homogénea a todos os seus membros, irredutível à história natural e físico‑geográfica, emanando de uma força interior que dá origem a toda a esfera cultural, desde as mais visíveis manifestações, como os comportamentos, a alimentação, os hábitos sociais, até às mais profundas expressões como a língua, a religião, a poesia.
A atitude de Herder relativamente à multiplicidade das culturas – que acalenta o seu projecto de elaborar uma "doutrina da natureza e fisionomia da Humanidade" ou um "Atlas antropológico da Humanidade" – atinge nas Ideias para a filosofia da história da Humanidade a marca de uma profunda originalidade, inigualável entre os seus contemporâneos, ficando a teoria antropológica posterior a dever‑lhe a lição de uma especial sensibilidade, não apenas à pluralidade em geral, mas à singularidade de cada produção cultural como unidade orgânica. Uma sensibilidade bem patente no respeito e simpatia com que descreve os povos não‑europeus, mesmo os mais remotos, desde o gronelandês e o esquimó do pólo norte, ao chinês da Ásia, ao hindu de Caxemira, aos negros e americanos, todos eles equiparados como seres criadores de cultura própria, cada uma dotada de peculiar significação, beleza e valor.
Se o conhecimento, por via directa ou indirecta, da diversidade põe definitivamente em causa a unidade abstracta de uma essência humana, uma nova questão não deixa de se colocar: serão tais factores de diversidade suficientemente fortes para excluir um plano unitário?
Será a comprovada multiplicidade das raças, povos e culturas contraditória com uma qualquer unidade pensável do Homem? Fundamentar a unidade é em grande medida a tarefa da filosofia, mas, para a poder manter, a própria noção de unidade teria de sofrer uma inteira transformação. Não será já entendida como unidade do igual, do fixo e do imutável, uma identidade formal que despreza as diferenças como acidentais, mas como unidade diferenciada susceptível de conter a multiplicidade e a diferenciação, no fundo, uma unidade plástica capaz de assumir formas diversas.
Não obstante o elogio da singularidade dos povos e culturas, Herder defende firmemente a unidade natural do género – é uma só espécie natural à face da terra –, sendo os diversos grupos outros tantos ramos de um único tronco. Cada povo cultural, à semelhança de uma formação orgânica, é igualmente necessário ao todo e, embora diversos, todos existem em função desse todo; são "fisionomias" do género, matizes de uma coexistência no mesmo momento temporal e de uma continuidade que se processa historicamente.
Como apoio, peço que leiam a parte relativa a Herder no artigo meu já enviado:
– “O adeus à essência. Natureza, cultura e carácter na antropologia filosófica da época moderna", Philosophica, 15 (2000), 135‑149.
Utilize este identificador para referenciar este registo: http://hdl.handle.net/10451/11819