A Teoria da Arte em Francisco de Holanda e a Tratadística portuguesa do século XVI.

17 Novembro 2020, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     A tratadística sobre a arte da Pintura em Portugal nos séculos XVI e XVII não abunda de protagonistas e de textos verdadeiramente significativos. Salvo os escritos de Francisco de Holanda e Félix da Costa Meesen, não dispomos de uma produção original de testemunhos estéticos sobre a essência dessa arte, para além do que marginalmente integra os receituários e os manuais práticos de trabalho de pintores, iluminadores e desenhadores [1].

     Se é verdade que circulavam e eram lidos os exemplares da mais relevante tratadística italiana, castelhana, flamenga e francesa sobre Arquitectura e sobre Pintura, o que se verifica é que, à dimensão interna do país, pouco de original se escreveu que não fossem traduções ou reapropriações de ideias prevalecentes. Entre 1548, data em que o pintor e arquitecto Francisco de Holanda, regressado de Roma, escreve o seu famoso tratado Da Pintura Antigua (onde põe a tónica do discurso na scintilla divina e no primado do disegno) [2] e 1696, ano em que o pintor, escritor e poeta sebastianista Félix da Costa Meesen redige a Antiguidade da Arte da Pintura (espécie de elogio da liberalidade das artes e de memória sobre a nossa produção pictórica considerada digna de registo) [3], mal se pressente na produção literária nacional um ardor de teorização que permita falar-se de um corpo autonomizado de textos e compará-lo a outras situações da Europa coeva.

     Não sobressai no nosso panorama livresco desse arco cronológico, de facto, mais que o sopro de um adiado debate de ideias estéticas e parangonais que certamente animava a vida das tertúlias de literati que a conjuntura cultura destes tempos de mudança e crise, com a Europa cristã dramaticamente estremada em campos opostos e hostis, incrementava em determinados círculos humanísticos. Nas ‘cortes de aldeia’ de André de Resende em Évora, de D. João de Castro no locus amoenus da Penha Verde (Sintra), de D. Miguel da Silva na quinta do Fontelo (Viseu), ou dos Duques de Bragança à sombra do Paço de Vila Viçosa, decorriam debates das humanae litterae onde, além dos saraus de poesia, da leitura dos textos clássicos, do debate sobre as questões metafísicas, o estudo do all’antico, das ciências do primado das antigualhas, se discutiam também, marginalmente embora, o legado de Vitrúvio e de Alberti, o classicismo, o ideal de beleza, a essência das artes e a liberalidade da sua prática [4].

     Apesar de neste tempo artístico crescentemente pautado pela influência do Maneirismo italiano se encontrar em Portugal uma literatura que estava disponível para enfrentar essas questões, tais debates não impulsionaram uma intervenção teórica digna desse nome e são efectivamente residuais (como sucede com João de Barros em 1532 ao definir as «categorias» da Pintura na sua Ropica Pnefma (Mercadoria Espiritual), sintetizando um panorama onde «cada hum segue e obra o natural da sua condição e ingenho, uns imitando a natureza e outros a fantesia sem ordem», ou com Francisco de Monzón ao reflectir sobre a «ideia» das artes no Espejo del Perfecto Príncipe Christiano, autores a este propósito lembrados por Joaquim de Oliveira Caetano [5]) as referências à concepção das artes, ao valor pedagógico das imagens (antes de Trento, ou já em contexto tridentino), ao poder da ars memoriae, à carga emotiva do discurso plástico ou ao seu grau de intervenção social e espiritual.


[1] Cf. Vítor SERRÃO, «’Acordar as cores…’ : os pigmentos nos contratos de pintura portuguesa dos séculos XVI e XVII», in actas do Congresso Internacional The Materials of the Image / As Matérias da Imagem, coord. de Luís Urbano AFONSO (ed.), Série Monográfica «Alberto Benveniste», nº 3, Cátedra de Estudos Sefardsitas Alberto Benveniste, Lisboa, 2011, pp. 97-132. Este estudo integra-se no projecto da F.C.T. As Matérias da Imagem. Os Pigmentos na Tratadística Portuguesa entre a Idade Média e 1800, POCI/EAT/58065/2004, e analisa os materiais utilizados no final da Idade Média e ao longo da Idade Moderna, a partir de referências contratuais, receitas, pagamentos, compras de tinta, cartas de mercadores envolvidos, etc, numa leitura de conjunto.

[2] Cf. os ensaios de Sylvie DESWARTE-ROSA, «Idea et le Temple de la Peinture. I. Michelangelo Buonarroti et Francisco de Holanda» Revue de l’Art, nº 92, 1991, pp. 20-41; idem, «Idea et le Temple de la Peinture.II. De Francisco de Holanda à Federico Zuccaro», Revue de l’Art, nº 94, 1992, pp. 45-65; idem, Ideias e Imagens em Portugal na época dos Descobrimentos, Difel, Lisboa, 1992; e idem, «Si dipinge col cervello et non con le mani. Italie et Flandres», Bolletino d’Arte – Supplemento, nº 100, 1997, pp. 277-294.

[3] Ed. fac-similada do manuscrito seiscentista da Yale University, com anotação crítica por George KUBLER, The Antiquity of the Art of Painting by Felix da Costa, New Haven, Yale University Press, 1967.

[4] Cf., sobre esse ambiente, Luís de MATOS, A corte literária dos Duques de Bragança no Renascimento (conferência proferida no Paço de Vila Viçosa em 15 de Outubro de 1955), Lisboa, Fundação da Casa de Bragança, 1956; e Sylvie DESWARTE, op. cit., Difel, 1992.

[5] Cf., sobre as referências artísticas nas obras desses autores, Joaquim de Oliveira CAETANO, O que Janus Via. Rumos e Cenários da Pintura Portuguesa (1535-1570), tese de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1996 (não publicado); cf. também a edição da Ropica Pnefma, INIC, Lisboa, 1983, p. 77; I.S. RÉVAH, «Le colloque Ropica Pnefma de João de Barros, Bulletin Hispanique, LXIV, 1962; Maria Leonor Carvalhão BUESCU, Babel e a Ruptura do Signo, a gramática e os gramáticos portugueses do século XVI, Lisboa, 1984; António Alberto Banha de ANDRADE, João de Barros, historiador do pensamento humanista português de Quinhentos, Lisboa, 1980; Maria de Lurdes Correia FERNANDES, «Francisco de Monzón e a ‘princesa cristã’», Revista da Faculdade de Letras, Porto, 1993, pp. 109-121; e Carlota Fernández TRAVIESO, «La Erudición de Francisco de Monzón en ‘Libro Segundo del Espejo del Perfecto Príncipe Cristiano’», The Bulletin of Hispanic Studies, Vol. 87, nº 7, 2010, pp. 743-753.