Sumários

Maneirismo e Contra-Maneirismo no tempo de Camões.

15 Dezembro 2020, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 

 

     A vida, obra literária, pensamento filosófico e dimensão metafísica do poeta Luís de Camões cruzam-se indissoluvelmente com os cumes mais evoluídos da estrada das artes do seu tempo. O sentido cromático e pictural que perpassa nos seus versos, definidos por uma estrutura que não é já a do classicismo renascentista mas que, como demonstraram Jorge de Sena e Vítor Aguiar e Silva, se mostra iluminada por formas de grande ousadia formal que o aproximam do Maneirismo italiano, atesta uma pesquisa criadora que converge com os mesmos gostos que gravitavam nos seus círculos de influência.

     O poeta interessava-se muito pela arte da Pintura, como se vai sabendo: teve relações conhecidas com Francisco de Holanda (1517-1584), teorizador das artes e «verdadeiro cavaleiro e defensor da alta Princesa Pintura», com quem conviveu na corte nos onze anos que decorreram entre 1542 e 1553 e, de novo, após o regresso do poeta ao Reino em 1570 (embora, então, já com o peso das desilusões e desencantos, e sob um pano de fundo contra-reformista que não era já o do Humanismo cristão em que se haviam formado). Mas o poeta também manteve relações, ainda mais ou menos nebulosas, com os italianizados António Campelo e Gaspar Dias, com Fernão Gomes, que lhe pintou um retrato «ao natural», com o poeta-pintor Jerónimo Corte-Real, com o iluminador António Fernandes, autor de alguns dos mais caprichosos frontispícios da Leitura Nova, e provavelmente também com Diogo de Contreiras, com o retratista Manuel Denis, tradutor do tratado Da Pintura Antigua para castelhano, e com o pintor-calígrafo Giraldo Fernandes de Prado, cavaleiro da casa de Bragança.

     Nesse ambiente cortesão que, em meados do século XVI, ainda vibrava de estímulos ao debate e à criação, sob signo do neoplatonismo e de uma mais generalizada influência do Humanismo italiano (quadro cultural que seria alterado a breve trecho pelo triunfo dos ditames da Contra-Reforma), Luís de Camões sentiu esse gosto por um discurso das artes que, como disse Sylvie Deswarte, o situa num «campo de criação dotado de uma mesma forma mentis, com uma imagística e uma inspiração filosófica idênticas». O Reino vivia uma fase de mudanças de paradigma estético e de efervescência criadora em que a produção das artes exprimia discursos de inusual actualização face às novidades italianas, segundo o gosto da Bella Maniera entretanto introduzida pelos melhores círculos picturais romanos e florentinos, e através de viagens de pintores à Cidade Papal (Francisco de Holanda, Campelo, Gaspar Dias, e ainda João Baptista, António Leitão e Francisco Venegas, suspeitando-se também de um estágio de Fernão Gomes após o seu aprendizado em Delft). O ambiente de animadas cortes literárias de recorte áulico, como a da Quinta da Penha Verde, onde conviviam personalidades como D. João de Castro, político, soldado, cosmógrafo e humanista, seu filho D. Álvaro de Castro, o arquitecto e pintor Francisco de Holanda, e o Infante D. Luís (1506-1555), príncipe das humaniores litterae portuguesas, a quem o primeiro dedicou os seus famosos Roteiro do Mar Roxo e de Goa, dá sonoridade a este pano de fundo em que os estudos humanísticos e as paragonas clássicas se abriam ao debate arqueológico, ao bucolismo do locus amoenus e à ressonância trans-contextual das antigualhas, sem esquecerem as reflexões em torno de Vitrúvio e das ruínas arqueológicas, os templos e aquedutos do Mundo Antigo, as novidades cosmológicas abertas pelos estudos do matemático Pedro Nunes, os temas agrícolas e botânicos e, mesmo, as citações herméticas de Hermes Trimegistro e demais autores clássicos. Outros círculos intelectuais, como a Évora de André de Resende, ofereceram certamente a Camões a possibilidade de conviver amiúde com o problema da natureza das artes, a sua ideia motriz, e a consciência liberalizante dos seus praticantes.

     O poeta explorou na sua vasta obra lírica e épica o sentido da «prisca beleza» da Ideia platónica, com referências multiplicadas à «alma pintada» (numa das suas redondilhas, por exemplo), sem esquecer palavras por vezes entendidas como de crítica a um panorama de menoridade das artes mas que, no fim de contas, são estímulo a uma actividade nobilitante e merecedora de um mais esclarecido apoio mecenático: «os pintores também aqui por certo pintariam (…) mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores, honra, prémio, favor que as artes criam» (Lus., VIII. 39). Se é certo que um homem de corte como Francisco de Holanda se confrontou quase sempre com a falta de mecenas à altura para dar à estampa os seus tratados e lhe apoiar muitas das iniciativas sugeridas a D. Sebastião no livro Da Fabrica que Falece à Cidade de Lixboa, é também um facto que o mercado artístico do segundo terço do século XVI não era uma realidade isolada: de facto, abriu-se às novidades estéticas do Maneirismo italiano e multiplicou encomendas públicas e privadas com programas de caprichoso sentido iconológico e com uma ousadia de formas que dava espaço às ideias platónicas e ao legado filosófico dos antichi. Assim o atestavam, entre as obras desaparecidas, as decorações fresquistas pintadas por Gaspar Dias para os Paços reais de Enxobregas (segundo provável «risco» do próprio Francisco de Holanda) e o programa de Fernão Gomes e Lourenço de Salzedo para o Hospital de Todos-os-Santos e assim o atestam, entre as remanescentes, as campanhas murais de Francisco de Campos, Giraldo de Prado e Tomás Luís para os palácios dos Condes de Basto em Évora e para o Palácio de Vila Viçosa a mando dos 5º, 6º e 7º Duques de Bragança, ou alguns retábulos de igreja que não escondem inquietações de discurso e referenciais neoplatónicos, como o de Nossa Senhora da Luz de Carnide, panteão da Infanta D. Maria, pintado por Francisco Venegas e Diogo Teixeira. Se parte destas obras desapareceu, restam contudo muitos desenhos e esquiços preparatórios (a mais importante colecção é a do Gabinete de Desenhos do Museu Nacional de Arte Antiga), descrições, textos, contratos de arquivo e outros testemunhos memoriais que atestam o significado de tais ciclos pictóricos, marcados por uma mesma ideia italianizante e, não poucas vezes, por referenciais literários e simbólicos precisos. ´

     O ambiente artístico nacional abria-se então ao gosto requintado da Bella Maniera, buscava inspiração nos espaços afrescados por Rafael de Urbino, Giovanni de Udine, Polidoro de Caravaggio, Perino del Vaga e outros mestres em salões e capelas privadas, mais atreitos à temática alegórica e mitológica e a uma linguagem de símbolos com ressaibos neoplatónicos, aptos a estimular os debates de círculos de literati, dentro de um espírito all'antico em que a poesia era presença viva. Sabemos que D. Catarina de Áustria teve em mente escolher Francesco da Urbino, pintor genovês malogradamente falecido e com actividade relevante no Escorial, para vir a Lisboa pintar o retábulo do Mosteiro dos Jerónimos, antes de a Raínha se decidir pela entrega dos painéis a Lourenço de Salzedo (não por acaso um artista já em 1559 associado a Gaspar Becerra em Roma). Os fios de identidade da melhor cultura portuguesa dos anos centrais de Quinhentos centram-se no postulado da Idea maneirista e na sua adaptação a uma realidade nacional que emula o debate intelectual e a busca de uma nova estética com fortes pressupostos ontológicos e um sentido de ars naturans como arte da natureza criadora, que perpassam para a própria consciência da liberalità do acto artístico e do consequente estatuto de nobilitação social dos praticantes. É esta idea, comum a Luís de Camões ao consagrar a arte como a mais divina de todas as actividades humanas (como faria o famoso humanista Benito Arias Montano, em 1577, no famoso poema em honra da Pintura como remédio para os males do Mundo que acompanha a gravura de Cornelis Cort «A verdadeira Inteligência inspira o Pintor» segundo desenho de Federico Zuccaro) e a Francisco de Holanda quando compara a «boa pintura» com o «terlado das perfeições de Deus e uma lembrança do seu pintar», que justifica o tronco estético comum à melhor criação dos círculos intelectuais portugueses desses anos de mudança e novidade.

     O signo da poesia camoneana encontraria eco artístico imediato, por exemplo, na decoração dos paços de Enxobregas, obra de grande sumptuosidade construtiva («os milhores de Portugal», com sua tapada que se estendia até ao vale de Chelas), apesar da interrupção motivada pela morte de D. João III e das prioridades dos anos de regência, para os quais Francisco de Holanda fez um risco de arquitectura e se propôs conceber as decorações internas («os desegnos para as Heroicas Pinturas»), recomendando «huma Capella pintada e com salas e camaras de Estuque ou Pintadas sobre bordo, ou a fresco, como he custume dos Reys antigos e modernos», obras essas que um pintor com sólida educação romana, Gaspar Dias, veio efectivamente a realizar (tal como, pelos mesmos anos sebásticos, realizaria as do Paço de Sintra), restando ainda alguns testemunhos plásticos dessa decoração fresquista a nível de desenho e de estudos preparatórios.

     Figura pioneira no processo de viragem para o Maneirismo e, consequentemente, com um percurso de bolseiro em Roma e de artista cortesão que o coloca nos mesmos trilhos de Francisco de Holanda e de Luís de Camões, foi António Campelo, desenhador exímio afeiçoado aos modelos do ciclopismo miguelangelesco e que trabalhou junto a Daniele de Volterra e para o Cardeal Giovanni Ricci da Montepulciano (a quem pintou o retábulo da sua capela em San Pietro in Montorio). Este ideário, que se paraleliza com o mundo criativo camoneano (não sendo exagerado imaginarem-se contactos entre as duas personagens), é bem atestado pelos desenhos e pinturas do artista, uma delas a Adoração dos Pastores do paço dos Melos Carrilho Sigeu, em Torres Novas, mais uma coincidência a ligar Campelo aos passos de Camões, aos círculos da Infanta D. Maria e à família da música Ângela Sigeia. Dos desenhos (MNAA), refiram-se pelo seu veemente traço neoplatónico a Alegoria ao Amor Divino castigando o Amor Profano (onde o cariz para-erótico remete para a sensualidade da poesia camoneana), a exaltante Alegoria à Força (com modelo inspirado num fresco da escola de Giulio Romano que existe na loggia Psychè na Villa Farnesina, relacionado com o tema neo-platónico do Amor omnia vincit, dentro de uma dinâmica exploração do fantástico) ou o projecto para o túmulo da Infanta D. Maria para o Mosteiro dos Jerónimos (com figuras alegóricas alteadas, de cunho miguelangelesco, enquadrando o medalhão central com o busto da Infanta, ao gosto de obras romanas como o mausoléu de Ceccino Bracci em Santa Maria in Aracoeli), empresa que se malogrou por culpa de um meio que na época de D. Sebastião estava envolvido nos preparativos da cruzada marroquina e já impreparado para entender a proposta estética de Campelo. É de lembrar que Félix da Costa Meesen, espécie de Van Mander português, no seu tratado Antiguidade da Arte da Pintura (mss. da Universidade de Yale), regista uma admiração pelos pintores maneiristas bem maior que a que nutrida pelos do seu tempo, e fala de Campelo «entre os Pintores Portuguezes que foram mais celebrados pella excellencia da sua arte» e, depois de elogiar como «obra prodigiosa» o Cristo com a cruz às costas do Mosteiro dos Jerónimos (MNAA), diz-nos que «floresceo no tempo de D. João 3º» e que «seguio em muita parte a Escola de Michael Angelo Buonarroti asim na força do Debucho, como parte do colorido, se bem que já com outra inteligencia no mexido das cores». Também D. Francisco Manuel de Melo, no seu Hospital das Letras, ao exaltar os feitos dos «grandes portugueses», destaca significativamente os nomes de Camões na poesia e Campelo na pintura.

     Os passos de Camões podem ter-se cruzado, também, com os de Gaspar Dias, cujos excessos caprichosos da maniera se expressam com acuidade no serpentinado desenho do painel Aparição do Anjo a São Roque (igreja de São Roque), e nos seus desenhos de aguada com alusões ao non finito buonarrotesco, e certamente se cruzaram com os de Fernão Gomes (1548-1612), um pintor de origem estremenha (nascera em Albuquerque), que se veio estabelecer em Lisboa em 1573 depois de um aprendizado em Delft com Anthonis Blocklandt (um discípulo do famoso romanista Franz Floris). Gomes, que pintou o retrato de Camões, esteve relacionado também com o poeta Jerónimo Corte-Real e teve o apoio mecenático de gente grada como D. Álvaro da Costa, senhor da Penha Verde, o que justifica, a par do seu «bravo talento e mui facil no pintar» de que fala Félix da Costa, que fosse, nomeado, sucessivamente, para os cargos de pintor régio de Filipe II (1594) e Filipe III (1595) e pintor dos Mestrados das Ordens Militares (1601), além de, como artista de consciência liberal, ter sido um dos promotores-fundadores da nova Irmandade de São Lucas, instalada no mosteiro de domínicas da Anunciada e embrião de uma primeira academia de desenho na cidade de Lisboa. Apesar de Gomes se converter a breve trecho num artista que, seguindo referenciais maneiristas ítalo-flamengos, será uma espécie de campeão da doutrina contra-reformista (ainda que pelo menos uma das suas obras, o fresco apologético da famosa «freira que pintava chagas» no mosteiro da Anunciada, tenha sido censurada pela Inquisição), é certo que em algumas obras suas onde se sente essa apregoada «bravura» é notório o gosto refinado pelo capricho dos serpentinatos e pela teatralização da idea, como sucede no Pentecostes do retábulo da Sé de Portalegre e nos desenhos da Ascensão de Cristo (MNAA) e da Scala Coeli (B. P. Évora), ambos traduzindo aspectos coincidentes com os valores da transcendência cristã e da reminiscência anamnésica, temas favoritos da obra camoneana (p. ex. em Sôbolos rios). Os tempos eram já de repressão das ideias, excessos inquisitoriais, suspeitas de errasmismo, senão de luteranismo (recorde-se como mero exemplo o processo do humanista Damião de Góis), e esses anos de «vil tristeza» serão também os últimos da vida de Camões, precisamente na altura em que os seus passos com Fernão Gomes se cruzam.

     A respeito do retrato, o chamado «retrato pintado a vermelho» que Vasco Graça Moura apurou ter sido realizado entre 1573 e 1575, trata-se do mais precioso e fidedigno documento remanescente que nos imortaliza o rosto de Luís de Camões; infelizmente, apenas subsistiu a cópia feita por Luís José Pereira de Resende (1760-1847), um pintor da Real Academia de Belas Artes e retratista de talento, que em data indefinida entre 1819 e 1844 cumpriu uma encomenda do 3º duque de Lafões para copiar um original camoneano que fora encontrado num saco de seda verde nos escombros do incêndio do palácio dos Condes da Ericeira e Marqueses de Louriçal, junto da Anunciada, onde se inseria o retrato de Fernão Gomes. Esta «fidelíssima cópia» mostra, pelas dimensões restritas do desenho, textura da sanguínea, manchas de distribuição dos valores, rigor dos contornos, definição dos planos contrastrados, neutro reticulado a harmonizar o fundo e o busto, tipo da barra e aparato simbólico da imagem captada em pose de ilustração gráfica, que o original se devia destinar à abertura de uma gravura a buril para ilustração de uma das primeiras edições de Os Lusíadas. A escolha de Gomes, recém-chegado a Lisboa mas já com notoriedade artística, para desenhar a efígie do épico, parece revelar um mundo de relações pessoais e acaso de amizade sobre o qual, infelizmente, pouco ainda se apurou. Mas o facto de Gomes, homem da corte, também ser amigo do poeta Jerónimo Corte-Real (que lhe apadrinhou uma filha) e ter recebido apoio mecenático dos senhores da Penha Verde, vem dar-nos alguns contornos dessas relações inter-artes em que poetas e pintores, escritores e arquitectos, antiquários e iluminadores, homens das ciências e das letras, apreciavam um convívio que era sobretudo pretexto para a paragona estética e para o culto das artes.

    É possível que os passos de Camões se cruzassem também com os de um aventuroso e quase romanesco personagem do tempo, o pintor-fidalgo António Leitão, natural de Castelo Novo, sobrinho do embaixador Domingos Leitão, educado na corte de Lisboa e moço de câmara da Infanta D. Maria, mandado aprender pintura em Roma, soldado na Flandres, onde se casou com a pintora Luísa dos Reis, instalado em Lamego, apoiante da causa de D. António, Prior do Crato, e discretamente activo em terras raianas no final da vida. Da autoria deste aristocrata formado simultaneamente (caso raro !) nos modelos de Roma e Antuérpia, que prezava a música e as montarias e se passeava a cavalo de chapéu emplumado e anel de ouro com as armas da Infanta sua protectora, é um interessante painel do Pentecostes existente numa capela de Freixo de Espada-à-Cinta, onde a composição se desdobra em sentidos plurais de ecumenismo cristão, integrando junto às figuras da Virgem e dos apóstolos Pedro e João uma plêiade de figuras profanas e contemporâneas, algumas delas possíveis retratados, desde mercadores a nobres, frades, soldados, um magrebino e três raras representações de japoneses, todos a receber as línguas de fogo numa espécie de convencimento do testemunho da fé apregoado numa escala imperial nos velhos e novos mundos.

     Merece referência especial neste quadro truncado de relações entre Camões e a pintura do seu tempo o papel assumido no século XVI pela corte de Vila Viçosa, a fase mais fulgurante da sua história. Essa espécie de «corte na aldeia», como a qualificou o poeta Rodrigues Lobo (ele mesmo um protegido do Duque D. Teodósio II), suportou um ambiente esclarecido, por onde passaram, ao serviço dos Duques ou por seu chamamento ocasional, eruditos como Diogo Sigeu e sua filha Ângela Sigea, o cosmógrafo e pedagogo António Maldonado de Hontiveros, o humanista Juan Fernández de Sevilha, os gramáticos Fernão Soares e Manuel Barata, o geógrafo António de Castro, o matemático Domingos Peres, os escritores Fernão Cardoso, Francisco de Morais e Públia Hortênsia de Castro, o poeta, Jerónimo Corte Real (irmão de Públia), acaso também Luís de Camões, além de muitos artistas de diversas modalidades. Numa corte como esta, onde a literatura, as artes plásticas, a música e o amor pelo bucolismo da natureza andaram de mãos dadas, são ainda numerosos os programas afrescados de salões e câmaras ducais (como as galleriettas de D. Teodósio I e a de D. Ana de Velasco, recém-restauradas e identificadas, e o oratório privativo de D. Catarina de Bragança), exemplos importantes de decorações ao italiano, com referenciais mitológicos e neoplatónicos, alusões à música e à poesia, e às virtudes da casa ducal. Pintores de fora como Francisco de Campos (falecido em Évora em 1580 devido a um surto de peste) e Tomás Luís ou da casa ducal como Giraldo Fernandes de Prado e André Peres, foram os responsáveis por essas decorações de caprichoso gosto maneirista, com extensos complementos de grottesche a envolver os quadri riportati, alegorias à música de Orfeu, aos trabalhos de Hércules ou aos feitos de Perseu, e outros testemunhos esclarecedores do modo como as ideias e as artes se fundiam na produção senhorial portuguesa da Casa de Bragança.

     Também nesse seio se desenvolveu o estudo pedagógico e a arte da Caligrafia. Numa época em que autores humanistas, de Erasmo a Juan Luís Vives e a João de Barros, se preocupam pela formação moral e cultural dos jovens da nobreza, de quem se esperam responsabilidades no aparelho de Estado, esteve na ordem do dia o ensino das primeiras letras e tipos caligráficos, como a letra «cancelleresca», e é nesse contexto que Giraldo Fernandes de Prado e Manuel Barata, calígrafos de primeiríssima linha, ambos cavaleiros e funcionários da casa brigantina, vão ter actividade relevante. O ensino dos filhos-família era prioritário na escala de investimento dos nobres e já o humanista Clenardo, ao chegar a Évora em 1535, com a estada da corte, se entusiasmava com o facto de que em Portugal floresciam os estudos dos príncipes e isso constituía sinal de bom augúrio para a projecção do Reino. Eram sentimentos partilhados pelos círculos de literati em que Camões se movia. Por isso, o incremento ao ensino das letras à sombra do Paço, aposta nobilitante dos Duques de Bragança, permitiu à caligrafia afirmar o seu espaço no seio das artes. Giraldo Fernandes de Prado (c. 1530-1592), elogiado numa crónica do lóio Frei Jorge de São Paulo como «homem de admiravel pincel na arte da pintura», foi pintor de óleo, iluminura e fresco, foi cavaleiro e funcionário da Casa de Bragança, estadeou na corte nos anos centrais do século, e aí escreveu em 1560-61 o Tratado de Caligrafia (mss. profusamente ilustrado, hoje na Rare Book and Manuscript Library, Columbia University, New York, Cód. Plimpton MS 297) e um Manual para Copistas (cód. Plimptom, MS 296, ainda inédito), que devem ser considerados os primeiros manuais práticos de ensino e da arte da Caligrafia escritos em Portugal, sob inspiração nas fontes disponíveis, de Geoffrey Tory a Juan de Içiar, Juan Bautista Palatino, Ludovico Vicentino e António Tagliente, obras que certamente estariam disponíveis nos círculos humanísticos nacionais (quanto a Tory, sabemos que Francisco de Holanda possuía o Champ Fleury, como atestou Sylvie Deswarte). Estes tratados de didáctica das primeiras letras escritos e desenhados por Giraldo de Prado conferem-lhe a honra de primeiro autor nacional a assumir esta arte pedagógica e formativa. O Tratado de Caligrafia de New York antecede em dez anos a escrita e suposta primeira edição da Arte de Escrever de Barata, por sinal realizada sob mecenato do mesmo Duque de Bragança. A especialização de Giraldo como pintor pode explicar que a caligrafia não tivesse sido para ele um campo de produção contínua, o que justificaria a ulterior mas injusta consagração de primazia de Barata.

     Nestes círculos aristocráticos de poetas, pintores e calígrafos em que gravitou Camões, também merece referência o manuscrito iluminado do Livro das Sentenças para a Ensinança e Doutrina do Principe D. Sebastião (Biblioteca D. Manuel II, Palácio de Vila Viçosa), de cerca de 1554, que reúne sentenças latinas traduzidas e compiladas pelo comerciante André Rodrigues de Évora, como demonstrou Luís de Matos, ornado com iluminuras maneiristas da autoria de António Fernandes (como provou Sylvie Deswarte), que se destinava a educar o príncipe e futuro rei. Não se tratando de um manual de caligrafia, este livro reúne em si os principais valores da pedagogia, da moral e da cultura cortesã do Humanismo cristão de meados de Quinhentos, precisamente os mesmos valores da cultura de Camões (e de Francisco de Holanda, e dos outros artistas aqui citados), onde não faltam as citações all’antico, as inscrições epigráficas clássicas, a representação do guerreiro porta-estandarte, e outras alusões a uma gramática italianizante. Voltando a Vila Viçosa e a 1572, nesse ano se terá editado, por estímulo do Duque D. Teotónio II e através do livreiro da casa ducal João de Ocanha, a Arte de Escrever, tratado de Caligrafia da autoria do gramático Manuel Barata (de quem Diogo Barbosa Machado disse ser «um dos mais célebres mestres de escrever, que florecerão no seu tempo de cuja arte abrio escola publica na sua pátria». Esse livro, de que não se conhece hoje nenhum exemplar, foi reeditado em 1590 (já sendo falecido Barata) utilizando algumas pranchas gravadas com desenhos de caligrafia datados de 1572, sacadas certamente da edição precedente, e de novo foi reeditado em 1592 (titulado Exemplares de Diversas Sortes de Letras, Tirados da Polygrafia de Manuel Barata), financiado pelo mesmo João de Ocanha e acompanhado por um belo soneto, Ditosa Pena…, atribuído (não sem controvérsia) a Luís de Camões, que foi com toda a certeza composto ainda em vida de Barata e é de sentido elogio aos méritos do calígrafo. Como já se afirmou, caso tal soneto tenha integrado a suposta edição de 1572, como deve ter sucedido, seria um dos raros poemas de Camões editados em vida, o que alarga a possibilidade de relações do genial poeta com os círculos brigantinos e a sua corte literária e artística. De Giraldo Fernandes de Prado conhece-se outro trabalho em que os passos do pintor-fidalgo mais uma vez mostram cruzamentos com os círculos neoplatónicos de Holanda, de António Fernandes, de Barata, e de Camões: as iluminuras do Compromisso da Irmandade das Almas da igreja de São Julião de Setúbal (1569-1571, hoje na Biblioteca Municipal de Setúbal), com caprichosas capitais, um fólio historiado miguelangesco do Julgamento das Almas (que sugeriu, antes, uma errada atribuição ao Holanda), e um sentido de desenho caligráfico a remeter para o que dele conhecemos nos tratados de New York. Estas personalidades gravitavam nos mesmos círculos ou, pelo menos, comungavam dos mesmos ideários, gostos e fontes referenciais.

     Está bem estudada a iconografia camoneana a partir do século XVII, no campo da representação gravada, esculpida e pintada, e conhecem-se bem tanto as versões multiplicadas da fisionomia do épico (com numerosas efígies seguindo, muitas vezes, o primevo modelo de Fernão Gomes) como os ciclos historiados inspirados em Os Lusíadas (caso da notável série de quadros de Francisco Vieira Portuense, dos programas de azulejo de Jorge Colaço, ou das representações muito estimadas de Metrass, Columbano e, mais perto de nós, António Soares, Costa Pinheiro e José de Guimarães, entre tantos outros a quem a personalidade do épico seduziu). É muito menos conhecida, estranhamente, a intrincada relação no campo da teoria e debate das ideias e das categorias estéticas que une o poeta com os artistas do seu tempo – como os que atrás se citaram, sabendo-se que todos conheceram o poeta, puderam com ele privar e, com toda a certeza, partilharam valências filosóficas e concepções do mundo e cultivaram linhas de pensamento e de concepção artística afins. É esse o caminho de inquérito que aqui se propôs e propõe ser seguido através de um estudo integrado ao sentido das imagens do tempo de Camões: um caminho analítico-comparatista que nos conduz, dos desenhos de Francisco de Holanda, às iluminuras de António Fernandes, à pintura de Gaspar Dias na igreja de São Roque, aos debuxos e tábuas de Fernão Gomes, às pinturas murais de Vila Viçosa e Évora, aos caprichos sensuais de Francisco Venegas na igreja da Luz de Carnide, no quadro da igreja da Graça, e nos seus caprichosos desenhos para-eróticos, e a tantas mais obras da pintura maneirista portuguesa da segunda metade do século XVI.

 

BIBLIOGRAFIA:

Vítor AGUIAR E SILVA, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Coimbra, 1971; Dagoberto L. MARKL, Fernão Gomes, um pintor do tempo de Camões, Lisboa, 1972; Jorge Borges de MACEDO, Os Lusíadas e a História, ed. Verbo, Lisboa, 1979; Luís de MATOS, Sentenças para a Ensinança e Doutrina do Principe D. Sebastião, Banco Pinto & Sotto Mayor, Lisboa, 1983; Sylvie DESWARTE-ROSA, As Imagens das Idades do Mundo de Francisco de Holanda, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1987; idem, Il Perfetto Cortegiano D. Miguel da Silva, Bulzoni, Roma, 1989; Vasco Graça MOURA e Vitor Serrão, Fernão Gomes e o Retrato de Camões, IN/CM, Lisboa, 1989; Rafael MOREIRA, «Com Antigua e Moderna Arquitectura. Ordem Clássica e Ornato Flamengo no Mosteiro de Belém», cat. da exp. Jerónimos – 4 séculos de pintura, coord. Anísio Franco e Sabina Hamm, vol. I, Lisboa, 1992, pp. 24-49; António PINELLI, Antonio, La Bella Maniera. Artisti del Cinquecento tra regola e licenza, ed. Einaudi, Turim, 1993; Vítor SERRÃO (coord.), cat. da exp. A Pintura Maneirista em Portugal – arte no tempo de Camões, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1995; Sylvie DESWARTE, «Si dipinge col cervello et non con le mani. Italie et Flandres», Bolletino d’Arte – Supplemento, nº 100, 1997, pp. 277-294; Adriano de GUSMÃO, Ensaios de Arte e Crítica (colectânea póstuma, organizada por Vitor Serrão e Dagoberto L. Markl), ed. Vega, Lisboa, 2003; Maria José REDONDO CANTERA (coord.), El modelo italiano en las artes plásticas de la Península Ibérica durante el Renacimiento, actas, Universidade de Valladolid, 2004; Sylvie DESWARTE-ROSA, «Le Rameau d’Or et de Science. ‘F. Ollandivs Apolini Dicavit’», revista Pegasus, nº 7, 2005, pp. 9-47; Helena LANGROUVA, A Viagem na Poesia de Camões, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, Lisboa, 2006; Maria José REDONDO CANTERA e Vitor Serrão, «El pintor portugués Manuel Denis al servicio de la Casa Real», Actas das XII Jornadas El Arte Foráneo en España. Presencia e Influencia, Instituto de Historia do Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid, 2006, pp. 61-78; João RUAS, Manuscritos da Biblioteca de D. Manuel II. Paço Ducal de Vila Viçosa, Fundação da Casa de Bragança, Caxias, 2006; Vitor SERRÃO, Os frescos maneiristas do Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, Fundação da Casa de Bragança, 2009.

 

 


Trento, entre liberdade e censura.

10 Dezembro 2020, 09:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

EROS E DECORUM NA PINTURA PORTUGUESA

O NU E A CARNE, CONTRADIÇÕES DA FÉ, ÊXTASE ENTRE LUXÚRIA E DISSIMULAÇÃO, GROTESCO E BRUTESCO, AMORES CASTO E PROFANO, PORNOGRAFIA E AMORES LASCIVOS, NO DISCURSO DAS ARTES ANTES E DEPOIS DA CONTRA-REFORMA.

 

 

     O corpo, pretexto eterno de criação artística, exaltação de fogo e da sensualidade carnais, afirmação insubmissa de desejos e de liberdade arrebatada, de dissimulações e de ousadias, é também factor cíclico de actos censórios, de peias repressivas e de indicadores de moralidade que o transformam, de rebelde ‘ilha de prazeres’, em decoroso testemunho da ordem instituída. Ao longo dos séculos, as obras de arte falaram-nos constantemente dessa dualidade de sentidos, desse auto-contrôle imposto aos criadores, dessa viagem parangonal em que «o sutil movimento dos olhos, cuja vista Amor cegou», como diz Camões, se transforma em território de consensos.

     Em todas as épocas, desde a mais remota Antiguidade, o erotismo se soube unir às artes plásticas e à literatura sob formas mais claras ou mais disfarçadas de um discurso de obsessões e encantações que tende a converter-se em testemunho da materialidade do desejo. Georges Bataille (1897-1962), no seu célebre livro L’érotisme, reflectiu sobre essa (o)posição interna do desejo incontido que escorre das fímbrias do discurso poético e pictural pela sua dimensão transgressora (ex.: a interdição bloqueia o impulso transgressor se a emoção é negativa, mas o acto transgressor suplanta o poder inibidor exercido pela interdição se a emoção for positiva). Pelo entrelaçamento de emoções, a expressão erótica revela-se: basta analisarem-se as acções censórias do decurso da História para se perceber que o que torna difícil falar de interdito não é a variabilidade dos objectos mas seu carácter ilógico; não existe interdito que não possa ser transgredido, ou anulado, conforme as conjunturas vigentes da moral e do gosto. O erotismo tratado nas variadas configurações das artes contribui para a tematização do prazer, deslocando o objecto da sedução e centrando-o no seu próprio «fazer poético», que envolve a relação sexual concreta (ou apenas sugerida) e a transforma num obscuro objecto do desejo. Outro autor, o sociólogo Anthony Giddens, no ensaio A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas (1992), discutiu as noções de modernidade e reflexividade à luz das mudanças da História e da convivência pública e privada, em que a sexualidade, a promiscuidade e o desejo se relacionam com o inconsciente reivindicativo através da aventura sexual extrema e das suas relações com uma dimensão quase religiosa: o eu poetante investe conscientemente no desejo, fazendo do discurso a projecção de seus anseios e, centrado no deslizamento dos signos, estabelece um pacto de cumplicidade com o espectador / leitor, na medida em que entra em sintonia com o desejo descrito ou representado. Segundo outro autor, o historiador de arte Giulio Carlo Argan, a arte erótica da Renascença, à luz de um ponto de vista rigorosamente fenomenológico, sublinha os seus significados poderosos (nas obras dos pintores maneiristas florentinos Pontormo e Bronzino, por exemplo). Os aspectos ocultos de uma obra de arte com estas características de investigação sobre o prazer ganham significação do carácter expressivo das formas e, quando nos surgem na intersecção entre objectividade e subjectividade, possibilitam uma história das imagens …. A obra de arte é sempre um fazer eloquente e exemplar que, em última análise, tem como horizonte a produção de objectos perfeitos, aptos a criar valores num movimento contínuo que traz necessariamente consigo uma temporalidade de ordem histórica em que passado, presente e futuro se condensam na obra em si.

     Durante o século de Quinhentos, temperado embora após a segunda metade do século, já sob signo da Contra-Reforma católica, existem na nossa pintura sacra e profana irreverências de Eros, mais ou menos ousados e abertos à carga sensual, mas que dão lugar a um maior comedimento por razões doutrinárias: assim o exigiam os dogmas catequizadores que o Concílio de Trento viera estabelecer como norma para os artistas. A grazia corpórea do Renascimento e a nudez serpentinata da Bella Maniera deram paulatinamente lugar a uma corporalidade de convenção, raras vezes aberta à licenciosidade de um nu integrado em alegorias morais ou, mais raro, numa versão de temas histórico-mitológicos, desde as Metamorfoses de Ovídio à Eneida de Virgílio -- tolerados por um mercado artístico que, apesar de tudo, sentia a força comunicativa das imagens ditas, escritas, recriadas em movimento ou concebidas pela arte (a poesia, a literatura, o teatro, a pintura) e o enorme poder social que através delas podia ser expresso. O Portugal pós-renascentista sentiu também, naturalmente, este apelo à expressão corpórea como poderoso terreno para exprimir a alegoria moralizante, através dela afirmando essa constante parangona entre o Eros dos sentidos e o Decorum do contrôlo oficial. Inúmeros testemunhos exarados dos processos do Santo Ofício revelam-nos como, durante a segunda metade do século XVI e ao longo do século XVII tantas obras de arte foram mandadas destruír pelo seu «apelo licencioso», ou repintar e alterar pela sua «formosura dissoluta» e «falso dogma», sabendo-se de artistas que foram chamados a depôr no tenebroso Tribunal da Inquisição (como Domingos Vieira, o Escuro, e o próprio Fernão Gomes, pintor régio de Filipe I, ambos por causa de certas obras não conformes ao «decorum» oficializado). Esta era a situação dominante na sociedade portuguesa do tempo de Luís de Camões, em que o peso dos ideais ultra-católicos impôs uma conduta muito especialmente controlada no que tocasse a representações artísticas – e é por isso que assumem tanto interesse as obras que, nesse contexto tridentino, ousaram afirmar o combate à intolerância e a ardência do apelo sensual, através da extrapolação da alegoria cristológica, ou seja, de uma hábil adequação dos temas aos objectivos de uma rígida moral.  

     Olhando-se uma peça tão notável como é o pequeno desenho O Amor Virtuoso castigando a Fortuna, do pintor Francisco Venegas, em que no limite de um minúsculo papel de 14 x 9 mm esse notável pintor cortesão desenhou um corpo de mulher em contrapposto, numa flagrante pose de nudez, açoitada por esbelta figura masculina, também desnuda, com um peixe, observamos como, mesmo em tempo de asfixia das veleidades sensuais, um artista oficial como era Venegas pôde desenvolver em perícias de traço o sentido da volúpia e a ardência do erotismo mais cru. O espaço restrito onde os nus formam núcleos em movimento, atraído pela perspectiva ambígua que envolve a cena, com olhares ocultos e uma sólida percepção sensorial no discurso das formas expostas, são expoentes de um singular inconsciente erótico-religioso. O artista incita à visão, isola tudo o que desperta uma resposta dos sentidos. A narrativa erótica ajuda a descobrir a ordem da vida tangível, a experiência humana, a linguagem simbólica que revela arquétipos do inconsciente. Desenhando o erotismo no decurso do traço, numa depuração artística com sobressaltos e anseios amorosos, a alegoria moral conduz à sedução sem freios e ao combate de opostos que se atraem. O elogio é o da beleza em si, desnuda e libertadora... Assim, o estudo de Venegas (Gabinete de Desenhos do Museu Nacional de Arte Antiga) mostra que era possível a resistência à intolerância e a exploração do espelho dos sentidos vitais, mesmo que recorrendo à alegoria casta, já que a composição de Venegas mais não é do que uma alegoria ao Amor Virtuoso, na linha de outras representações neoplatónicas do Renascimento italiano e nórdico. O capricho e a ambiguidade orientam o traço: nem a Volúpia parece submissa, nem o elemento cristológico do peixe esgrimido como arma punitiva mostra uma leitura moral inequívoca, sabendo-se como também identifica, em termos iconográficos, o símbolo fálico e, em extensão, o próprio amor lascivo... O artista era conhecedor de modelos de Rosso Florentino, dos livros com estampas da Emblemata Liber de Andrea Alciato, das Immagini dei Dei degli Antichi de Vincenzo Cartari, e por isso naveqava bem, por isso, nas águas de uma cultura neo-platónica onde a sonoridade da alegoria rimava com o timbre sensual das formas. Havia por certo clientes de sólida cultura italianizante aptos a entender as irreverências do intelecto...

     É facto que a reacção católica às críticas erasmianas e protestantes, e a rigidez dos novos ditames procedentes da Contra-Reforma, levaram a partir do terceiro quartel do século XVI a uma cuidadosa revisão da iconografia das representações sagradas, definida pelos teólogos de Trento no sentido de disciplinarem o uso das obras destinadas ao culto. Era importante assegurar que estas não contivessem qualquer desvio às linhas catequizadoras com que se pretendia encarar a função das «imagens sagradas», no quadro de uma espécie de ‘fim da História’, a ars senza tempo. Sob o lema «nihil profanum, nihil inhonestum, nihil insolitum», as obras de arte deviam servir com propriedade. O encantamento pelas formas nuas e pela magia sensual da carne, mesmo contornada sob as vestes, eram caprichos não mais toleráveis, pelo menos no terreno da arte religiosa. Obscuros pintores agiam em nome da virtude tridentina, retocando painéis antigos, cobrindo partes ditas licenciosas, pintando integralmente frescos e decorações de tónus ‘desonesto’ – assim intervindo como iconoclastas inflamados, de que restam tantos testemunhos nos autos inquisitoriais remanescentes nos arquivos... Lembramos o caso de um quadro com a Virgem e o Menino mandado da Flandres para uma vila portuária do Norte em início do século XVII e, que pelo facto de um zeloso visitador da Igreja achar licenciosos os pés nus e as pernas algo afastadas de Maria, mandou que a tela não fosse desembarcada antes de um pintor do sistema a vir repintar, aumentando o panejamento a fim de cobrir as partes polémicas.

      É por isso que, neste contexto de repressão das ideias, das obras e da criação livre, tem tanto interesse uma pintura do mesmo Francisco Venegas executada para um altar da igreja da Graça em Lisboas, que representa Santa Maria Madalena em êxtase. Se não podemos ter certeza absoluta de que o referido desenho de Venegas foi depois executado em decoração pictórica (acaso em fresco para revestimento de um salão de residência aristocrática, «ao modo italiano»), já esta bela tábua maneirista de cerca de 1580 nos chegou incólume, e mostra um bom testemunho de uma visão erótica das formas feminis em contexto de culto. As liberdades de acção que, apesar de tudo, afloram nas fontes de inspiração dos melhores artistas da época – e que também se atestam noprograma alegórico afrescado num dos tectos do Palácio dos Condes de Basto em Évora, pintado em 1578 por Francisco de Campos com suas «ninfas galantes» da Antiguidade clássica -- mostram um sentido de ousadia formal bem acentuado. Em tempos crus de repressão contra-reformista, é esse apelo à irreverência e à sensualidade dos valores femininos que se impõe destacar como uma constante do comportamento artístico, mesmo em épocas menos atreitas a cultuar essa via de refinamento para-erótico.

     O que levou Francisco Venegas, pintor régio de Filipe I de Portugal e um dos melhores artistas da sua geração, a pintar essa irreverente Santa Maria Madalena num altar do Mosteiro da Graça em Lisboa, articulando uma ousada exploração do nu a modos de Bartolomeu Spranger em Praga ou de Hans Speckaert em Roma, não é só o peso de uma cultura maneirista romana, em cujos modelos o artista foi educado. Essa lição explicaria, por certo, os efeitos fantásticos de contra–luz, as ousadias no alongamento e serpentinado das formas, as figuras em contrapposto e as tensões do espaço – mas não já essa atenta exploração do erotismo, de gosto anticlássico, numa agressiva ambiguidade contra a ordem estabelecida, onde a obsessão pelas carnes expostas denuncia o deleite pela fogueira da paixão e o ardor dos sentidos, exaltando forças vitais. Num tecto de capela lateral na igreja agostiniana de Nª Sª da Graça, em Lisboa, o mesmo Venegas pintou uma Alegoria à Verdade (disposta entre outras alegorias morais), exaltando a nudez descomposta e cortesã, que aproximam o gosto do artista dessa tensão para-erótica que já palpita no desenho O Amor Divino castigando a Fortuna e também numa belíssime Eva neo-platónica que surge em primeiro plano no quadro Alegoria à Imaculada Conceição da igreja da Luz de Carnide.

     É certo que, tal como o poeta Camões, a personalidade de Venegas, com a sua paleta brilhante, solta de mancha e requintada de desenho, trai um rebelde temperamento («de espirito muy levantado em suas ideias» conforme o descreveria o tratadista Félix da Costa Meesen), mas é nessa mancha de ambiguidade que reside o seu maior interesse de criador, dividido nesse conturbado final de Quinhentos entre a espiritualidade exposta nas teses de São Carlos Borromeu ou do Cardeal Gabriele Paleotti e o gosto ardente pela alegoria e pela sensualidade das formas. Erotismo e decorum andam, em Venegas (e também em Camões), de mãos dadas. No quadro das condições de trabalho que o mercado artístico português poderia oferecer, com limitações e instrumentos de contrôle muito marcados, a inflamação para-erótica que se regista nos testemunhos citados parece constituír uma veia corajosa de autonomia e liberalidade criadora. Num tempo que privilegiava a oração e a eficácia do exemplo, era certamente mais popular uma obra como a que Simão Rodrigues e seus colaboradores pintaram para o arcaz da Sacristia do Mosteiro dos Jerónimos, já no dealbar do século XVII, onde se narra a vida virtuosa de São Jerónimo: um dos quadros mostra o santo eremita a ser tentado por um grupo de «mulheres licenciosas» que, pela mão do próprio demónio, vêm perturbar o santo nas suas orações no deserto... Essa imagem era certamente mais preferida que a «nudez descomposta e carnal» das figuras pintadas por Venegas ou imaginizadas por Camões na épica «ilha dos amores».

     Um dos temas recorrentes na poesia de Camões é justamente o Amor; o poeta . assume simpatia pelos que sofrem por amor, e esse conflito entre o pensamento divino e o  corpo terreno (já destacado em Jorge de Sena, Hernâni Cidade, Vítor Aguiar e Silva) incorpora uma entrega ao amor do corpo sem deixar de aspirar a um outro, o amor divino, que remete à distinção feita por Erixímaco no Banquete e, de modo geral, na doutrina neoplatónica do Renascimento e nos preceitos do discurso de Sócrates. Em Camões,  o amor carnal gera a via de encontro com a beleza da alma, e o amor natural é elevado de vício à virtude, pois torna possível alcançar a esfera divina, a Beleza, a perfeição de Deus. Através da intervenção da graça divina, que transforma o amor material em espiritual, é a doutrina do Humanismo cristão que aqui se incorpora, como é visível numa moral de superação dos vícios da carne no poema Sôbolos rios que vão... O ensaísta Eduardo Lourenço viu nos «bem visíveis ‘raios de formosura’ da doutrina de Platão» fonte para as redondilhas de Sôbolos Rios foram escritas: «…E vi que todos os danos/Se causavam das mudanças”.

     Mudando de registo para um olhar sobre a pintura mural da aristocracia alentejana (que é riquíssima !), os estudos mais recentes sobre o ciclo de frescos maneiristas do Paço Ducal de Vila Viçosa e do Palácio dos Condes de Basto em Évora, e da obra de cavalete do pintor régio Francisco Venegas para várias igrejas da capital, vêm atestar de modo convincente uma faceta para-erótica, até há pouco insuspeitada, que caracteriza (e revaloriza) a nossa produção pictórica da segunda metade do século XVI e alvores do século XVII. Sob inspiração dos modelos maneiristas italianos, e com abertura a sugestões neo-platónicas de raiz ovidiana e à emblemática histórico-mitológica, a nossa pintura a fresco e a têmpera mostrou-se em condigno alinhamento com o mesmo gosto requintado e sensual que, à época, tanto peso assumia na decoração de salões da realeza, de câmaras e gallerietas nobres, ou de capelas e oratórios privativos, onde o capricho da Bella Maniera e a sedução pelo erotismo – apesar de se viver já um contexto de Contra-Reforma católica, com as suas redes de controlo e as suas visões ultra-moralizantes – acabam por se impor em ciclos artísticos de eleitos. As obras de pintores como Campelo e Francisco de Holanda, Francisco de Campos e Giraldo Fernandes de Prado, Tomás Luís e André Peres, e de iluminadores como António Fernandes e Jerónimo Corte-Real, atestam que o mercado português destes ano se não alheou das ardências carnais e das seduções para-eróticas em temas históricos e alegóricos, ambiguamente concebidos entre o religioso e o profano, que revelam, no fim de contas, um olhar atentíssimo para os mesmos percursos artísticos dimanados dos centros italianos do Maneirismo. Será importante cotejar os ciclos de pintura referenciados com a riqueza da literatura coeva, de Camões a António Ferreira e mesmo a Jorge Ferreira de Vasconcelos, na busca de tópicos, encantações e interesses que, no fim de contas, se revelam coincidentes.

     Conclui-se que, à margem de uma arte ‘oficial’, nunca deixou de se desenvolver uma outra, profana, caprichosa, alegórica e sensual, que toca todos os ramos da criação e chega a atingir altos padrões de qualidade. Os grottesche de Perino del Vaga e Giovanni da Udine e as grisalhas de Polidoro da Caravaggio tiveram ecos nas decorações de paços reais (Sintra, Xabregas) envolvendo pintores como Gaspar Dias, e a sedução erótica dos frescos da Sala Oval do Paço dos Condes de Basto em Évora, obra do neerlandês Francisco de Campos (1578), atesta essa maneira caprichosa e intimista que seduzia sectores de literati, inspirados nas Metamorfoses de Ovídio. Temas como o Mito de Danae, a História de Diana, a Saga de Perseu, as aventuras de Eneias e Ulisses, os feitos de Hércules, a imagem de Eva / Nova Eva, contam-se entre as temáticas que continuavam a seduzir os públicos (frescos, painéis, tapeçarias, iluminuras, gravuras de livros) e mostram a abertura inflamada a um pathos sensual, arrebatador e neo-antigo, que valoriza por certo a arte portuguesa do Pós-Renascimento.


Trento, entre liberdade e censura.

10 Dezembro 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     O corpo, pretexto eterno de criação artística, exaltação de fogo e da sensualidade carnais, afirmação insubmissa de desejos e de liberdade arrebatada, de dissimulações e de ousadias, é também factor cíclico de actos censórios, de peias repressivas e de indicadores de moralidade que o transformam, de rebelde ‘ilha de prazeres’, em decoroso testemunho da ordem instituída. Ao longo dos séculos, as obras de arte falaram-nos constantemente dessa dualidade de sentidos, desse auto-contrôle imposto aos criadores, dessa viagem parangonal em que «o sutil movimento dos olhos, cuja vista Amor cegou», como diz Camões, se transforma em território de consensos.

     Em todas as épocas, desde a mais remota Antiguidade, o erotismo se soube unir às artes plásticas e à literatura sob formas mais claras ou mais disfarçadas de um discurso de obsessões e encantações que tende a converter-se em testemunho da materialidade do desejo. Georges Bataille (1897-1962), no seu célebre livro L’érotisme, reflectiu sobre essa (o)posição interna do desejo incontido que escorre das fímbrias do discurso poético e pictural pela sua dimensão transgressora (ex.: a interdição bloqueia o impulso transgressor se a emoção é negativa, mas o acto transgressor suplanta o poder inibidor exercido pela interdição se a emoção for positiva). Pelo entrelaçamento de emoções, a expressão erótica revela-se: basta analisarem-se as acções censórias do decurso da História para se perceber que o que torna difícil falar de interdito não é a variabilidade dos objectos mas seu carácter ilógico; não existe interdito que não possa ser transgredido, ou anulado, conforme as conjunturas vigentes da moral e do gosto. O erotismo tratado nas variadas configurações das artes contribui para a tematização do prazer, deslocando o objecto da sedução e centrando-o no seu próprio «fazer poético», que envolve a relação sexual concreta (ou apenas sugerida) e a transforma num obscuro objecto do desejo. Outro autor, o sociólogo Anthony Giddens, no ensaio A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas (1992), discutiu as noções de modernidade e reflexividade à luz das mudanças da História e da convivência pública e privada, em que a sexualidade, a promiscuidade e o desejo se relacionam com o inconsciente reivindicativo através da aventura sexual extrema e das suas relações com uma dimensão quase religiosa: o eu poetante investe conscientemente no desejo, fazendo do discurso a projecção de seus anseios e, centrado no deslizamento dos signos, estabelece um pacto de cumplicidade com o espectador / leitor, na medida em que entra em sintonia com o desejo descrito ou representado. Segundo outro autor, o historiador de arte Giulio Carlo Argan, a arte erótica da Renascença, à luz de um ponto de vista rigorosamente fenomenológico, sublinha os seus significados poderosos (nas obras dos pintores maneiristas florentinos Pontormo e Bronzino, por exemplo). Os aspectos ocultos de uma obra de arte com estas características de investigação sobre o prazer ganham significação do carácter expressivo das formas e, quando nos surgem na intersecção entre objectividade e subjectividade, possibilitam uma história das imagens …. A obra de arte é sempre um fazer eloquente e exemplar que, em última análise, tem como horizonte a produção de objectos perfeitos, aptos a criar valores num movimento contínuo que traz necessariamente consigo uma temporalidade de ordem histórica em que passado, presente e futuro se condensam na obra em si.

     Durante o século de Quinhentos, temperado embora após a segunda metade do século, já sob signo da Contra-Reforma católica, existem na nossa pintura sacra e profana irreverências de Eros, mais ou menos ousados e abertos à carga sensual, mas que dão lugar a um maior comedimento por razões doutrinárias: assim o exigiam os dogmas catequizadores que o Concílio de Trento viera estabelecer como norma para os artistas. A grazia corpórea do Renascimento e a nudez serpentinata da Bella Maniera deram paulatinamente lugar a uma corporalidade de convenção, raras vezes aberta à licenciosidade de um nu integrado em alegorias morais ou, mais raro, numa versão de temas histórico-mitológicos, desde as Metamorfoses de Ovídio à Eneida de Virgílio -- tolerados por um mercado artístico que, apesar de tudo, sentia a força comunicativa das imagens ditas, escritas, recriadas em movimento ou concebidas pela arte (a poesia, a literatura, o teatro, a pintura) e o enorme poder social que através delas podia ser expresso. O Portugal pós-renascentista sentiu também, naturalmente, este apelo à expressão corpórea como poderoso terreno para exprimir a alegoria moralizante, através dela afirmando essa constante parangona entre o Eros dos sentidos e o Decorum do contrôlo oficial. Inúmeros testemunhos exarados dos processos do Santo Ofício revelam-nos como, durante a segunda metade do século XVI e ao longo do século XVII tantas obras de arte foram mandadas destruír pelo seu «apelo licencioso», ou repintar e alterar pela sua «formosura dissoluta» e «falso dogma», sabendo-se de artistas que foram chamados a depôr no tenebroso Tribunal da Inquisição (como Domingos Vieira, o Escuro, e o próprio Fernão Gomes, pintor régio de Filipe I, ambos por causa de certas obras não conformes ao «decorum» oficializado). Esta era a situação dominante na sociedade portuguesa do tempo de Luís de Camões, em que o peso dos ideais ultra-católicos impôs uma conduta muito especialmente controlada no que tocasse a representações artísticas – e é por isso que assumem tanto interesse as obras que, nesse contexto tridentino, ousaram afirmar o combate à intolerância e a ardência do apelo sensual, através da extrapolação da alegoria cristológica, ou seja, de uma hábil adequação dos temas aos objectivos de uma rígida moral.  

     Olhando-se uma peça tão notável como é o pequeno desenho O Amor Virtuoso castigando a Fortuna, do pintor Francisco Venegas, em que no limite de um minúsculo papel de 14 x 9 mm esse notável pintor cortesão desenhou um corpo de mulher em contrapposto, numa flagrante pose de nudez, açoitada por esbelta figura masculina, também desnuda, com um peixe, observamos como, mesmo em tempo de asfixia das veleidades sensuais, um artista oficial como era Venegas pôde desenvolver em perícias de traço o sentido da volúpia e a ardência do erotismo mais cru. O espaço restrito onde os nus formam núcleos em movimento, atraído pela perspectiva ambígua que envolve a cena, com olhares ocultos e uma sólida percepção sensorial no discurso das formas expostas, são expoentes de um singular inconsciente erótico-religioso. O artista incita à visão, isola tudo o que desperta uma resposta dos sentidos. A narrativa erótica ajuda a descobrir a ordem da vida tangível, a experiência humana, a linguagem simbólica que revela arquétipos do inconsciente. Desenhando o erotismo no decurso do traço, numa depuração artística com sobressaltos e anseios amorosos, a alegoria moral conduz à sedução sem freios e ao combate de opostos que se atraem. O elogio é o da beleza em si, desnuda e libertadora... Assim, o estudo de Venegas (Gabinete de Desenhos do Museu Nacional de Arte Antiga) mostra que era possível a resistência à intolerância e a exploração do espelho dos sentidos vitais, mesmo que recorrendo à alegoria casta, já que a composição de Venegas mais não é do que uma alegoria ao Amor Virtuoso, na linha de outras representações neoplatónicas do Renascimento italiano e nórdico. O capricho e a ambiguidade orientam o traço: nem a Volúpia parece submissa, nem o elemento cristológico do peixe esgrimido como arma punitiva mostra uma leitura moral inequívoca, sabendo-se como também identifica, em termos iconográficos, o símbolo fálico e, em extensão, o próprio amor lascivo... O artista era conhecedor de modelos de Rosso Florentino, dos livros com estampas da Emblemata Liber de Andrea Alciato, das Immagini dei Dei degli Antichi de Vincenzo Cartari, e por isso naveqava bem, por isso, nas águas de uma cultura neo-platónica onde a sonoridade da alegoria rimava com o timbre sensual das formas. Havia por certo clientes de sólida cultura italianizante aptos a entender as irreverências do intelecto...

     É facto que a reacção católica às críticas erasmianas e protestantes, e a rigidez dos novos ditames procedentes da Contra-Reforma, levaram a partir do terceiro quartel do século XVI a uma cuidadosa revisão da iconografia das representações sagradas, definida pelos teólogos de Trento no sentido de disciplinarem o uso das obras destinadas ao culto. Era importante assegurar que estas não contivessem qualquer desvio às linhas catequizadoras com que se pretendia encarar a função das «imagens sagradas», no quadro de uma espécie de ‘fim da História’, a ars senza tempo. Sob o lema «nihil profanum, nihil inhonestum, nihil insolitum», as obras de arte deviam servir com propriedade. O encantamento pelas formas nuas e pela magia sensual da carne, mesmo contornada sob as vestes, eram caprichos não mais toleráveis, pelo menos no terreno da arte religiosa. Obscuros pintores agiam em nome da virtude tridentina, retocando painéis antigos, cobrindo partes ditas licenciosas, pintando integralmente frescos e decorações de tónus ‘desonesto’ – assim intervindo como iconoclastas inflamados, de que restam tantos testemunhos nos autos inquisitoriais remanescentes nos arquivos... Lembramos o caso de um quadro com a Virgem e o Menino mandado da Flandres para uma vila portuária do Norte em início do século XVII e, que pelo facto de um zeloso visitador da Igreja achar licenciosos os pés nus e as pernas algo afastadas de Maria, mandou que a tela não fosse desembarcada antes de um pintor do sistema a vir repintar, aumentando o panejamento a fim de cobrir as partes polémicas.

      É por isso que, neste contexto de repressão das ideias, das obras e da criação livre, tem tanto interesse uma pintura do mesmo Francisco Venegas executada para um altar da igreja da Graça em Lisboas, que representa Santa Maria Madalena em êxtase. Se não podemos ter certeza absoluta de que o referido desenho de Venegas foi depois executado em decoração pictórica (acaso em fresco para revestimento de um salão de residência aristocrática, «ao modo italiano»), já esta bela tábua maneirista de cerca de 1580 nos chegou incólume, e mostra um bom testemunho de uma visão erótica das formas feminis em contexto de culto. As liberdades de acção que, apesar de tudo, afloram nas fontes de inspiração dos melhores artistas da época – e que também se atestam noprograma alegórico afrescado num dos tectos do Palácio dos Condes de Basto em Évora, pintado em 1578 por Francisco de Campos com suas «ninfas galantes» da Antiguidade clássica -- mostram um sentido de ousadia formal bem acentuado. Em tempos crus de repressão contra-reformista, é esse apelo à irreverência e à sensualidade dos valores femininos que se impõe destacar como uma constante do comportamento artístico, mesmo em épocas menos atreitas a cultuar essa via de refinamento para-erótico.

     O que levou Francisco Venegas, pintor régio de Filipe I de Portugal e um dos melhores artistas da sua geração, a pintar essa irreverente Santa Maria Madalena num altar do Mosteiro da Graça em Lisboa, articulando uma ousada exploração do nu a modos de Bartolomeu Spranger em Praga ou de Hans Speckaert em Roma, não é só o peso de uma cultura maneirista romana, em cujos modelos o artista foi educado. Essa lição explicaria, por certo, os efeitos fantásticos de contra–luz, as ousadias no alongamento e serpentinado das formas, as figuras em contrapposto e as tensões do espaço – mas não já essa atenta exploração do erotismo, de gosto anticlássico, numa agressiva ambiguidade contra a ordem estabelecida, onde a obsessão pelas carnes expostas denuncia o deleite pela fogueira da paixão e o ardor dos sentidos, exaltando forças vitais. Num tecto de capela lateral na igreja agostiniana de Nª Sª da Graça, em Lisboa, o mesmo Venegas pintou uma Alegoria à Verdade (disposta entre outras alegorias morais), exaltando a nudez descomposta e cortesã, que aproximam o gosto do artista dessa tensão para-erótica que já palpita no desenho O Amor Divino castigando a Fortuna e também numa belíssime Eva neo-platónica que surge em primeiro plano no quadro Alegoria à Imaculada Conceição da igreja da Luz de Carnide.

     É certo que, tal como o poeta Camões, a personalidade de Venegas, com a sua paleta brilhante, solta de mancha e requintada de desenho, trai um rebelde temperamento («de espirito muy levantado em suas ideias» conforme o descreveria o tratadista Félix da Costa Meesen), mas é nessa mancha de ambiguidade que reside o seu maior interesse de criador, dividido nesse conturbado final de Quinhentos entre a espiritualidade exposta nas teses de São Carlos Borromeu ou do Cardeal Gabriele Paleotti e o gosto ardente pela alegoria e pela sensualidade das formas. Erotismo e decorum andam, em Venegas (e também em Camões), de mãos dadas. No quadro das condições de trabalho que o mercado artístico português poderia oferecer, com limitações e instrumentos de contrôle muito marcados, a inflamação para-erótica que se regista nos testemunhos citados parece constituír uma veia corajosa de autonomia e liberalidade criadora. Num tempo que privilegiava a oração e a eficácia do exemplo, era certamente mais popular uma obra como a que Simão Rodrigues e seus colaboradores pintaram para o arcaz da Sacristia do Mosteiro dos Jerónimos, já no dealbar do século XVII, onde se narra a vida virtuosa de São Jerónimo: um dos quadros mostra o santo eremita a ser tentado por um grupo de «mulheres licenciosas» que, pela mão do próprio demónio, vêm perturbar o santo nas suas orações no deserto... Essa imagem era certamente mais preferida que a «nudez descomposta e carnal» das figuras pintadas por Venegas ou imaginizadas por Camões na épica «ilha dos amores».

     Um dos temas recorrentes na poesia de Camões é justamente o Amor; o poeta . assume simpatia pelos que sofrem por amor, e esse conflito entre o pensamento divino e o  corpo terreno (já destacado em Jorge de Sena, Hernâni Cidade, Vítor Aguiar e Silva) incorpora uma entrega ao amor do corpo sem deixar de aspirar a um outro, o amor divino, que remete à distinção feita por Erixímaco no Banquete e, de modo geral, na doutrina neoplatónica do Renascimento e nos preceitos do discurso de Sócrates. Em Camões,  o amor carnal gera a via de encontro com a beleza da alma, e o amor natural é elevado de vício à virtude, pois torna possível alcançar a esfera divina, a Beleza, a perfeição de Deus. Através da intervenção da graça divina, que transforma o amor material em espiritual, é a doutrina do Humanismo cristão que aqui se incorpora, como é visível numa moral de superação dos vícios da carne no poema Sôbolos rios que vão... O ensaísta Eduardo Lourenço viu nos «bem visíveis ‘raios de formosura’ da doutrina de Platão» fonte para as redondilhas de Sôbolos Rios foram escritas: «…E vi que todos os danos/Se causavam das mudanças”.

     Mudando de registo para um olhar sobre a pintura mural da aristocracia alentejana (que é riquíssima !), os estudos mais recentes sobre o ciclo de frescos maneiristas do Paço Ducal de Vila Viçosa e do Palácio dos Condes de Basto em Évora, e da obra de cavalete do pintor régio Francisco Venegas para várias igrejas da capital, vêm atestar de modo convincente uma faceta para-erótica, até há pouco insuspeitada, que caracteriza (e revaloriza) a nossa produção pictórica da segunda metade do século XVI e alvores do século XVII. Sob inspiração dos modelos maneiristas italianos, e com abertura a sugestões neo-platónicas de raiz ovidiana e à emblemática histórico-mitológica, a nossa pintura a fresco e a têmpera mostrou-se em condigno alinhamento com o mesmo gosto requintado e sensual que, à época, tanto peso assumia na decoração de salões da realeza, de câmaras e gallerietas nobres, ou de capelas e oratórios privativos, onde o capricho da Bella Maniera e a sedução pelo erotismo – apesar de se viver já um contexto de Contra-Reforma católica, com as suas redes de controlo e as suas visões ultra-moralizantes – acabam por se impor em ciclos artísticos de eleitos. As obras de pintores como Campelo e Francisco de Holanda, Francisco de Campos e Giraldo Fernandes de Prado, Tomás Luís e André Peres, e de iluminadores como António Fernandes e Jerónimo Corte-Real, atestam que o mercado português destes ano se não alheou das ardências carnais e das seduções para-eróticas em temas históricos e alegóricos, ambiguamente concebidos entre o religioso e o profano, que revelam, no fim de contas, um olhar atentíssimo para os mesmos percursos artísticos dimanados dos centros italianos do Maneirismo. Será importante cotejar os ciclos de pintura referenciados com a riqueza da literatura coeva, de Camões a António Ferreira e mesmo a Jorge Ferreira de Vasconcelos, na busca de tópicos, encantações e interesses que, no fim de contas, se revelam coincidentes.

     Conclui-se que, à margem de uma arte ‘oficial’, nunca deixou de se desenvolver uma outra, profana, caprichosa, alegórica e sensual, que toca todos os ramos da criação e chega a atingir altos padrões de qualidade. Os grottesche de Perino del Vaga e Giovanni da Udine e as grisalhas de Polidoro da Caravaggio tiveram ecos nas decorações de paços reais (Sintra, Xabregas) envolvendo pintores como Gaspar Dias, e a sedução erótica dos frescos da Sala Oval do Paço dos Condes de Basto em Évora, obra do neerlandês Francisco de Campos (1578), atesta essa maneira caprichosa e intimista que seduzia sectores de literati, inspirados nas Metamorfoses de Ovídio. Temas como o Mito de Danae, a História de Diana, a Saga de Perseu, as aventuras de Eneias e Ulisses, os feitos de Hércules, a imagem de Eva / Nova Eva, contam-se entre as temáticas que continuavam a seduzir os públicos (frescos, painéis, tapeçarias, iluminuras, gravuras de livros) e mostram a abertura inflamada a um pathos sensual, arrebatador e neo-antigo, que valoriza por certo a arte portuguesa do Pós-Renascimento.


A Contra-Maniera e o Concílio de Trento.

3 Dezembro 2020, 09:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O Concílio de Trento (1545-1563) e a sua influência religiosa, cultural e artística. O papel mecenático dos Arcebispos D. Teotónio de Bragança (Évora) e D. Frei Bartolomeu dos Mártires (Braga). 

As novas orientações conciliares. As obras de Nicolau de Frias e Pero Vaz Pereira.  A caligrafia (Giraldo Fernandes de Prado), a iluminura portuguesa (Estêvão Gonçalves Neto) e as outras artes do desenho. O ensino das artes (a Irmandade de São Lucas).

Arquitecturas salvíficas: conceitos de decorumestilo chão, gosto desornamentado. A Monarquia Dual filipina e as linhas vernaculares da construção portuguesa (e ultramarina) pós-1580 e pós-tridentina.

Censura e iconoclasma no campo das artes: o escândalo de Soror Maria da Visitação e o pintor régio Fernão Gomes. Casos de artistas reprimidos e de obras de arte destruídas, enterradas ou modificadas por ordem dos censores do Santo Ofício.


A Contra-Maniera e o Concílio de Trento.

3 Dezembro 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O Concílio de Trento (1545-1563) e a sua influência religiosa, cultural e artística. O papel mecenático dos Arcebispos D. Teotónio de Bragança (Évora) e D. Frei Bartolomeu dos Mártires (Braga). 

As novas orientações conciliares. As obras de Nicolau de Frias e Pero Vaz Pereira.  A caligrafia (Giraldo Fernandes de Prado), a iluminura portuguesa (Estêvão Gonçalves Neto) e as outras artes do desenho. O ensino das artes (a Irmandade de São Lucas).

Arquitecturas salvíficas: conceitos de decorumestilo chão, gosto desornamentado. A Monarquia Dual filipina e as linhas vernaculares da construção portuguesa (e ultramarina) pós-1580 e pós-tridentina.

Censura e iconoclasma no campo das artes: o escândalo de Soror Maria da Visitação e o pintor régio Fernão Gomes. Casos de artistas reprimidos e de obras de arte destruídas, enterradas ou modificadas por ordem dos censores do Santo Ofício.