Introdução ao estudo de Francisco de Holanda

12 Novembro 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Francisco de Holanda é o nome maior da Teoria das Artes em Portugal e um dos maiores tratadistas de arte na Europa do chamado «largo tempo do Renascimento». Arquitecto com obra restrita, pintor com apenas dois quadros e algumas miniaturas, escritor cuja obra quedou irremediavelmente manuscrita até tempos recentes, é sobretudo como arqueólogo, epigrafista e autor de tratados de arte (escritos em português e não em latim) que se destaca a nível internacional. Foi homem de sólida cultura neoplatónica e com profundo estudo das «antigualhas». Para ele, a arte é uma PRISCA PICTURA (conceito derivado da prisca teologia de Marsílio Ficino), isto é, uma arte com dom divino. O verdadeiro pintor, ou seja, o génio dotado de dom divino inato, cria uma segunda natureza, um novo mundo do homem, arrebatado pelo furor divinus de que fala Platão em Fedro e Cristóforo Landino no Proémio da Divina Comédia de Dante para justificar o talento do poeta. Ao contemplar as Ideias da esfera divina, o artista torna-se um demiurgo, um filósofo, um teólogo, senão mesmo do profeta. É este o modelo de FH, leitor de Hermes Trismegisto, Plínio e outros autores.

Foi amigo do Infante D. Luís, D. Miguel da Silva, D. Pedro Mascarenhas, o Prior do Crato, Luís de Camões, Frei Heitor Pinto, Pedro Nunes, entre outros, ou Blosio Palladio, Lattanzio Tolomei, Michelangelo, Vittoria Colonna, e ainda Benito Arias Montano e o humanismo irenista, e o melhor da cultura italianizante do seu tempo. Era frequentador do Cortile di Belvedere, em Roma, de outros espaços de literati. Enquanto tratadista, arqueólogo e epigrafista, FH marca o seu tempo de forma profundamente inovadora, abrindo caminho à ‘liberalidade’ nas artes, conceito que vai conduzir a um novo estatuto social dos artistas, até então genericamente vistos como «oficiais mecânicos» e não como verdadeiros criadores entre as Artes Liberais..

Ir a Roma era o objectivo de todo e qualquer artista de mérito na Europa quinhentista, fosse pintor, arquitecto, ourives ou escultor. E era também objectivo e prática de uma clientela ilustre e próspera que amava as artes e investia nos artistas. Nos anos 1530-1540, a viagem de aprendizado artístico a Roma era o sonho de qualquer pintor que se prezasse. A oportunidade de admirar as antigualhas, os monumentos clássicos, a novidade absoluta dos grottesche, as obras de Rafael e Michelangelo e as inovações da Bella Maniera constituíam todo um programa de formação que precisava de mecenato e condições económicas adequadas. Francisco de Holanda teve oportunidade de o fazer, ao integrar na embaixada de D. Pedro Mascarenhas, e vai a Roma em 1538, e daí a Loreto, Ancona, e também a Veneza e Nápoles, passando por Bolonha, Parma, Milão, Lyon, Avignon, Nîmes, Narbonne, Bayonne (viagem muito bem estudada pela grande historiadora de arte Sylvie Deswarte), chegando por fim a Lisboa no verão de 1540.

Mas ele não foi o único a ir a Roma. Nas viagens a Roma, também os pintores Campelo, João Baptista, António Leitão e Gaspar Dias se integram. Lá iam ver as ruínas romanas, as «facciate dipinte» por Polidoro da Caravaggio e Maturino Fiorentino, a epigrafia e a arqueologia, a pinacoteca papal, etc. Campelo, por exemplo, foi a Roma com apoio do Cardeal Giovanni Ricci da Montepulciano, que fora delegado papal em Lisboa nos anos 40, e lá trabalha para esse mecenas, com importante obra, como os frescos do Appartamenti Montepulciani no Vaticano (1553). João Baptista foi mandado pela própria Rainha D. Catarina e prometia muito, a crer nas cartas que desde Lisboa lhe enviam, mas morre na Catalunha em 1567, quando regressava. De João Baptista resta obra muito promissora em Dosrius (Barcelona).De António Leitão, de quem temos vasta obra (Lamego, Foz Côa, Melo, Escarigo, Miranda do Douro), s abemos que foi protegido da Infanta D. Maria. São figuras que estão ainda por estudar mas que deixaram marca no seu tempo.

A Europa de Quinhentos, neste «final do tempo do Renascimento», é um período trágico da História, aliás com paralelos com a época em que vivemos. O tempo era de instabilidade global, as guerras de religião entre católicos e protestantes, a ameaça dos turcos (apenas debelada com a batalha de Lepanto, 1571), a carestia de vida, tudo fazia emergir um estado de nostalgia e um culto pelo «antigo» greco-romano. Por tal facto, o tema das ruínas (tal como o tema da melancolia) é tão benquisto no campo das artes, da literatura, do teatro, etc. A historiadora de arte Nicole Dacos destacou justamente esse fascínio no livro Roma quanta fuit. Tre pittori fiamminghi  nella Domus Aurea, Roma (Donzelli, 1995; trad. Roma quanta fuit o la invención del paisaje de ruinas, trad. Juan Díaz de Atauri, Acantilado, 2014). É a época em que a Arqueologia nasce na Europa (ver o ex. do Infante D. Luís, um dos protectores de FH, ou o caso de Resende em Évora). A quem visitava Roma, o Guia de Francesco Albertini Opusculum de mirabilibus novae et veteris Romae (1510) era fundamental. As RUÍNAS emergem pois como testemunho grandiloquente com carga de utopia que convida à reflexão e estimula o clima de merencoria. Por esse facto, muitas pinturas deste período (1530– 70) incluem ruínas romanas nos fundos arquitectónicos.

A descoberta das ruínas da Domus Aurea e de outros palazzi romanos da época de Augusto, de Tibério e de Nero, com estranhas pinturas decorativas com temas profanos, eróticos, fantásticos, com armas e troféus, foi uma novidade que agitou os meios artísticos. Por volta de 1500, toda a gente que chegava a Roma ia admirar e copiar tais frescos, a que na gíria de então camaram «grotescos». Rafael utilizou-os nas célebres ‘logge’ do Vaticano. Também Francisco de Holanda, nos seus passeios em Roma, admirou a ‘domus aurea’ (copiando mesmo um pormenor) e as «facciate dipinte» por Polidoro e Maturino, cheias e grotescos. Holanda descobriu Roma, também, vendo colecções de antiguidades e consultando o Guia da Roma Antiga e Moderna de Francesco Albertini.

 

FH, filho do iluminador António e Holanda, é um artista formado em Évora nos cânones humanísticos e nos estilemas do Renascimento, mas que ao chegar a Roma descobre uma nova e fascinante estética, a Bella Maniera, o chamado Maneirismo, arte que tende a superar a ‘cris da Renascença’. É esta estética, de que Michelangelo é no momento da viagem o verdadeiro mentor, que vai marcar a actividade de FH, quer como pintor (ver a tábua ‘A Virgem de Belém’), quer como teórico das artes. A ideia neoplatónica é, naturalmente, filha desse seu encontro com um panorama artístico em radical viragem. Foram os amigos de D. Miguel da Silva, Blosio Palladio e Lattanzio Tolomei, a abrir-lhe portas como as do Cortile di Belvedere e o cenáculo de Vittoria Colonna a San Silvestro al Quirinale, lugar de um dos famosos Dialógos com Michelangelo Buonarroti. Nasce deste convívio a consciência de um estatuto de liberalidade artística para pintores, escultores, arquitectos e outros artistas. Tal é devido à sua definição da essência criadora das artes (vejam-se os estudos de Sylvie Deswarte). Ao retornar à pátria, H define a fonte da Pintura no disegno ou debuxo, raiz de todas as sciencias -- e o primado da idea de raiz neo-platónica no acto criativo, fruto da scintilla divina, como afirmara Alberti. Holanda abriu campo para que se sucedessem reivindicações estatutárias por parte dos pintores do tempo, com efeitos muito significativo no mercado das artes e na conduta criadora dos artistas.

A crítica à arte flamenga tem a ver com o esgotamento de fórmulas que ele notava na pintura que em Portugal se fazia quando vai para Roma. Devia ter em mente obras de Gregório Lopes, talvez Diogo de Contreiras, etc, muito marcadas pelo gosto de Antuérpia. Ao voltar de Roma, Holanda defende a Bella Maniera, a estética do ‘despejo’, a ‘terribilità’ miguelangesca, e é essa estética que admiramos na sua pintura ‘Descida ao Limbo’, reverso da Virgem de Belém. As teses anti-pintura flamenga estão bem explícitas no Diálogo de Roma com o próprio Michelangelo. Mas o gosto do mercado português pelo flamenguismo estava muito arreigado, o que explica que as ideias e gostos de FH apenas tenham influído em ambientes restritos de «romanistas», como Campelo ou Diogo Teixeira na pintura, e Miguel de Arruda e Diogo de Torralva na arquitectura.

A novidade maior da obra intelectual de FH é que ela é pioneira em absoluto no contexto da teoria das artes da Europa, pois já defende a IDEIA neoplatónica como fonte das artes – a PRISCA PICTURA – muito antes de Federico Zuccaro ter exposto a mesma teoria. O que torna a obra de FH surpreendente, complexa, multifacetada, original em extremo. No álbum As Imagens das Idades do Mundo,expõe a filosofia de Platão, a Creação do Mundo segundo a Bíblia e a doutrina da Trindade segundo São João recorrendo apenas a formas geométricas: ver a obra-prima sem precedentes que é a Creação do Mundo - FIAT LUX. Sylvie Deswarte explica-o muito bem no livro Ideias e Imagens em Portugal na Época dos Descobrimentos (DIFEL, 1991).

A obra de FH demonstra originalidade conceptual e discursiva. O Tratado Da Pintura Antiga, em especial a Primeira Parte, é novidade absoluta no contexto de toda a Tratadística de Arte do Renascimento e do Maneirismo. Sylvie Desarte demonstrou de modo concludente que se trata do primeiro texto de estética neoplatónica da era moderna, precursor dos tratados italianos do final de Quinhentos.

As ideias de liberalidade que Holanda defende, na esteira de Alberti e Leonardo, encontraram eco em Portugalapós o retorno de Roma em 1540, o que explica a grande individualidade, auto-estima e autonomia estatutária de homens como Gaspar Dias, a quem chamavam «genio admiravel», ou Diogo Teixeira, pintor de D. António, Prior do Crato. Quase adivinhamos que o convívio destes homens com FH na corte lisboeta estimulou esse seu desejo de emancipação.

É muito de lamentar que o tratado Da Pintura Antigua (1548) não refira mais nenhum artista português além de Nuno Gonçalves. O facto de apenas destacar o mestre pintor dos Painéis põe em relevo o respeito que tinha pelos «antigos e italianos pintores». Sem dúvida que é o primeiro inquérito à arte do Retrato, vista como a mais eloquente das modalidades artísticas, em toda a cultura ocidental, destacando o que existe de mais singular na retratística renascentista e maneirista à luz de uma série de binómios com que o artista se confronta (ou auto-contronta, no caso de auto-retratos): verdade/ficção, presença/ausência, tempo/trans-memória, força/vulnerabilidade, corporalidade/invisibilidade.

 Com a censura que advém com a Inquisição e o Concílio de Trento, o artista teve de adaptar-se e refrear os seus ideários. É importante esclarecer as relações de Holanda com a Inquisição e seus reflexos na elaboração e correções introduzidas nos seus tratados tardios (1571). Assim se percebe a nova datação do processo criativo do De Aetatibus Mundi Imagines com leitura iconográfica exaustiva de todos os seus fólios e correspondente interpretação iconológica