O mito Grão Vasco e o início da historiografia da arte científica em Portugal.

13 Outubro 2020, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Início da concepção de Museu, de connoisseur (perito de arte), de intermediário (agente de compra-venda) e de parangona das artes. Critérios de aferição de méritos no século XIX e novas nomenclaturas para obras de arte (obra venusta, obra mestra, obra prima, obra peregrina) e para artistas (águia das artes, génio, grão, egrégio…). O início de uma História da Arte com metodologia científica: Joaquim de Vasconcelos, Vergílio Correia.

mito Grão Vasco constituiu o maior fenómeno de auto-legitimação patriótica da antiga arte portuguesa, gerando larga fortuna crítica e envolvendo imensas obras atribuídas ao seu estilo e presentes nas colecções nacionais e estrangeiras dos séculos XVIII e XIX. Se o Vasco Fernandes histórico não se pode confundir mais com essa nebulosa lenda, tendo readquirido, com a História da Arte, contornos de justa reabilitação, a lenda grão-vasquista continua a reflectir o que esteve na sua génese: o surdo desejo de internacionalização do património artístico nacional, que desde o século das Luzes ganhava expressão.

Partimos da definição de que, a partir do pós-Renascimento, existiu no mercado de arte um gosto em português, segundo o qual o recheio artístico das casas portuguesas se organiza. Entre os séculos XVI e XIX, domina um equilíbrio entre a presença de peças ítalo-flamengas e de origem nacional (colonial): o hibridismo, o exótico e o nacional português estão patentes de forma coerente, sem par no contexto europeu. Figuras como D. João de Castro, vice-rei da Índia, que reúne na quinta da Penha Verde(Sintra) tanto pintura renascentista com estelas hindus, ou D. Fernando de Castro, 1º conde de Basto, que reúne em Évora um acervo polivalente, disperso com a Restauração, assumem essa vertente ímpar do colecionismo luso. O accrochage de arte (colecção artística) impõe uma estratégia estruturada de gosto por parte do mentor e uma sequência de posse que explique o sentido da exibição de peças. Julius von Schlosser (1908) estudou a colecção do arquiduque Ferdinando II, príncipe do Tirol, em Ambras, Innsbruck, abrindo campo fecundo para a H. Arte: o estudo do coleccionismo. O livro, reeditado por Patricia Falguières, destaca as peculiaridades das câmaras de maravilhas da Idade Moderna, embrião do Museu contemporâneo. Em nome dessa singularidade, podem ser estudados os gabinetes de opulência dos mecenas de arte dos séculos XVI a XIX. Há que distinguir as situações que seguem uma mera ostentação de modo casuístico, daquelas em que é a especialização que agrupa com lógica de colecção.O estudo do gosto, como vertente de uma História da Arte de género, é imperativo desta disciplina, tal como os estudos recentes têm enfatizado. É essencial para perceber critérios de escolha, estruturas de colecção, valências autónomas na dimensão geográfica e cultural contextualizável.   A partir dos inventários, pleitos judiciais,  testamentos, catálogos de bens, processos de partilhas, fazenda de famílias nobres ou burguesas, conventos, irmandades, registos de compra, relatos de festividades, etc, é possível reconstituir acervos dispersos, definir opções estéticas e metodologias comparatistas no estudo das tipologias de gosto imperantes no mercado das artes, seja este nobre, sacro, militar ou civil. 

...      … «No fundo, Grão Vasco é apenas um mytho; porquanto, posto que tenhamos descoberto Vasco Fernandes pintor, e de merito, e visto as suas obras em Vizeu, e posto que um auctor contemporaneo o tenha julgado grande, não é todavia a elle que este sobrenome compete de direito, porque nenhum dos auctores que escreveram acerca de Grão Vasco e julgaram do seu merito (Guarienti, Cyrillo, Taborda) viu as obras dse Vasco. O que é attribuido a Grão Vasco , não se sabe porquê, é a eminente quantidade de quadros gothicos, pintados sobre madeira, que se acham espalhados em todo o Portugal, nenhum dos quaes, excepto os de Vizeu, é de Vasco Fernandes.  No fundo, eis o que isto he: há um verdadeiro Vasco Fernandes que Pereira com razão julgou um grande pintor e Fr. Agostinho chamou insigne, mas há outro Grão Vasco mytho, de que ninguem tem conhecido, nem a vida nem as obras»  (Conde Athanazius Raczynski, Dictionnaire…, 1847)

... Só no início do século XX começa a desvanecer-se o mito Grão Vasco, que levara a atribuír a uma nebulosa identidade toda a boa pintura antiga em tábua que aparecia em igrejas, museus e colecções do país. Pensou-se que Vasco seria um iluminador de D. Afonso V, outros um viseense nascido em 1552 (!), e Raczynski defendeu que era uma mitificação criada para legitimar uma «escola de pintura portuguesa». Ora os documentos revelados por Maximiano d'Aragão (1900), Sousa Viterbo (1903) e Vergílio Correia (1924) clarificaram a questão – doravante, sabemos,  que houve mesmo um Vasco Fernandes pintor, activo em Viseu de 1501 a 1542…

Para explicar o fenómeno do mito Grão Vasco, é destacado justamente o peso reverencial com que os coleccionadores e entendidos de pintura antiga continuaram em sucessivas gerações a olhar a obra tutelar de Vasco na Sé de Viseu e demais igrejas na Beira Alta.

      Apurava-se com clareza que o genial pintor renascentista criou um gosto que, passados decénios sobre a sua morte, persistia fidelizada a estilemas muito apreciados. Como diz Dalila Rodrigues , «Vasco Fernandes marcou em profundidade todos os pintores que trabalharam com ele (e não é por acaso que toda a produção da oficina de Viseu é tão facilmente caracterizável face à sua coetânea)», criando uma sequência «com maior ou menor grau de dependência relativamente à sua linguagem personalizada, sob a forma de assimilação, recriação e imitação». Tal explica o extraordinário mito que, à medida que a verdadeira identidade se apaga, cresce nos séculos XVII a XIX...