Do Grutesco ao Brutesco

13 Outubro 2021, 12:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Grotesco: género arqueológico, oriundo das grotte romanas, os palazzi de Tibério e Nero, e muito popular durante o renasci,mento, no mfim do século XI e primeira metade do século XVI. Segundo Benvenuto Cellini o nome vem da gruta do Monte Esquilino, em Roma, restos subterrâneos da Casa de Ouro de Nero postos a descoberto em 1480 e muito visitados pelos artistas do Renascimento como Pinturicchio, Rafael, Giovanni da Udine, Filippino Lippi, Pinturicchio, Sodoma, Aspertini, Ferrari Gaudenzio e o portuguêrs Francisco de Holanda. No século XVI, o uso desta decoração era fonte de desprezo para teóricos como Vasari, que os descreveu "ridículas pinturas licenciosas“. Na verdade, o grotesco, que se caracteriza pela negação do espaço, seres híbridos e monstruosos, temas libertinos, de figuras fantásticas, assumem a imagem do all’antico. Depois da descoberta das decorações da casa de Nero (1480), sob o pretexto de imitatio antiquitatis, foram muito seguidos. Pintores famosos usam-nos, gravadores abrem estampas. Giovanni da Udine, ao contrário do Morto da Feltre (que ganhou o título, de acordo com Vasari, por ter passado mais tempo abaixo da terra copiar grotesco), deu vitalidade a este género de monstruosidades e do fantástico pagão. Com a Contra-Reforma e o fim do Maneirismo, o grotesco tende a desaparecer, limitado ao arabesco e à chinoiserie – menos em Portugal. O grotesco passa então a significar algo estranho, assumindo a conotação de ridículo e caricatural…

Abunda na literatura artística dos sécs XVII-XVIII a referência a brutesco a óleo, a fresco, estuque e azulejo na decoração da arquitectura sacra e civil. Precise-se que o brutesco, usado na arte portuguesa de Seiscentos como género autónomo, não pode ser confundido com o grotesco clássico de raíz neroriana (de uso tão criticado pela Contra-Reforma): é outra coisa, mesmo que o termo pareça corruptela semântica da fórmula com que o Renascimento apelidou as decorações pagãs das grotte dos palazzi imperiais romanos... Esta linguagem inspira-se na tradição dos grottesche difundidos pela gravura de Agostino Veneziano, Zoan Andrea de Mântua, Nicoletto da Modena, com o capricho paganizado do grotesco clássico, dando uso à complexa folhagem acântica, meninos-anjos, frutos, aves, festões, cartelas, símbolos eucarísticos, no contexto de programas moralizantes aptos a deixar impressão viva e um testemunho catequizador dos seus temas mrianos e cristológicos. Por um século – do reinado de D. João IV ao do Magnífico – a modalidade contribui para uma obra de arte total na dimensão lusa do conceito belloriano de ubel composto. Disse o Engº Santos Simões que «as composições dos brutescos são sempre centradas por um motivo principal (as cartelas na maioria dos casos) e desenvolvem-se simetricamente segundo um eixo vertical; ligando-se ao motivo central por meio de ornatos lineares ou formais, todo o conjunto forma uma unidade, sem soluções de continuidade». É a integração do brutesco azulejado ou pintado na superfície arquitectónica, com largueza cenográfica nunca atingido pelo uso pontual dos grotescos, com perfeito sentido de equilíbrio desta inédita recriação da tapetagem pictórica, que explica a perenidade de um gosto com estas características, que perdura até data avançada do século XVIII, quando outras soluções internacionalizadas (o uso da «quadratura») estavam instaladas nos gostos da clientela.   

Depois de, com a Contra-Reforma, o Grutesco ser paulatinamente desrecomendado (ou proibido), o Brutesco compacto, inspirado na tradição dos grottesche da Antiguidade clássica, que o Renascimento redignificou, embora com linguagem comedida e contra-reformista, nasce como género autónomo com o século XVII e adquire foros de repertório nacional como linguagem apelativa de um Barroco de totalidades que une a pintura a óleo e fresco, o azulejo, a talha dourada, o marmoreado e o embutido).