O conceito de Liberalidade e o Renascimento em Portugal.

22 Setembro 2021, 12:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

´Pintores, luminadores, agora no cume estam’, escrevia Garcia de Resende na sua famosa Miscellanea, saída em 1554, juntamente com a Chronica de D. João III.  O poeta-escritor destacava, nesse poema, aquilo que era uma realidade: o ascenso social dos artistas portugueses e o estatuto de privilégio que muitos deles auferiam fruto de uma consciencialização que paulatinamente se impusera... 

A reivindicação de uma dimensão estatutária por parte dos nossos artistas do século XVI, à luz do que na Itália do Renascimento se entendia por liberalità, nobiltà e virtú, tem sido tema privilegiado da História da Arte.  Tais valores, gerados no seio do Humanismo cristão, contribuíram decisivamente para que pintores, escultores, arquitectos, ourives e outros praticantes do que então se designava por «ofícios mecânicos» saíssem da tutela corporativa de Bandeiras (como a de São Jorge) e adquirissem um novo estatuto social, com reforçada auto-estima e maior afirmação autoral.

Prova de que o ascenso social se não confinou à Lisboa renascentista prova-o Gaspar Vaz, pintor de Viseu com actividade coeva da de Nicolau Chanterene. Este pintor,  formado em Lisboa na oficina de Jorge Afonso (1515), mas sempre morador em Viseu (pelo menos de 1522 a 1569), teve actividade subsidiária junto a Vasco Fernandes e cargos como o de escudeiro de El-Rei e almotacé na Câmara de Viseu. A sua assinatura mostra a altivez de um artista liberal. Autor de algumas tábuas grãovasquinas no Mosteiro de São João de Tarouca), chegou a ter no seu tempo uma rua com o seu nome – Quelha de Gaspar Vaz – no centro histórico de Viseu.  O estudo das assinaturas de artistas da época manuelina-joanina, como Cristóvão de Figueiredo (act. 1515-1555), pintor do Cardeal-Infante D. Afonso, ou o pintor régio Gregório Lopes (c. 1480-1550), revela várias rubricas aparatosas de afirmação estatutária (no caso de Figueiredo, com o seu rosto de perfil). Também a nível regional, nos Padilhas (André e Francisco) de Viana do Castelo, algo idêntico se verifica…

Fundamental para estudar o universo pictórico de Vasco Fernandes,  pela sua plena adesão ao Renascimento de Itália, o Pentecostes de Santa Cruz de Coimbra é um dos melhores exemplares da pintura quinhentista portuguesa, ainda com magnífica moldura coeva. Pertencia a um dos altares do claustro do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e o pintor é elogiado pelo cronista crúzio, D. Francisco de Mendanha, como sendo um «novo Apeles»…A reivindicação de um estatuto de liberalidade é uma constante na literatura do Humanismo da época de D. João III, antes mesmo de um Francisco de Holanda regressar de Roma e escrever o tratado Da Pintura Antigua (1548). Para os bons artistas nacionais, que a exigência de qualidade da arte praticada tornava homens cultos, era absolutamente humilhante que, ainda em 1539, o Regimento dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa continuasse a considerar pintores, escultores e arquitectos como «oficiais mecânicos» sujeitos aos deveres gremiais e às obrigações das Bandeiras corporativas...

O tempo do Renascimento em Portugal (sécs XV-XVI), com suas extensões e perenidades, foi vivenciado à luz do humanismo e da globalização. Diz Ana Paula Avelar que «as várias as faces do Renascimento tocam novos olhares em torno do mundo natural, do exercício político, da arte da guerra, do papel da mercancia e dos seus agentes, das estratégias da sua escrita e representação do Outro. A reflexão sobre os usos do conceito de Renascimento lança vectores de problematização em torno de um período tão nuclear para a cultura portuguesa que impõe abordagem multidisciplinar».

João de Barros (1496-1570) , historiador, geógrafo, gramático, pedagogo, escritor, funcionário da corte de D. João III, escreveu em 1532 a sua obra Ropica Pnefna, onde define os ‘graus’ da arte da  Pintura e afirma que «a vista tem suas forças de potência visiva, cujo ofício é receber cores, figura e luz», sendo a Alma uma «távoa com pinturas» que nos acompanha ao longo da vida na sua «prisca beleza». Na famosa Crónica do Imperador Clarimundo, João de Barros volta a descrever o texto como uma espécie de «pintura metaphorica» das «origens, antiguidade e nobreza» do próprio Reino de Portugal: no Portugal joanino, as artes estavam no auge da consideração e entendiam-se como um verdadeiro processo de liberalidade