O Mestre da Lourinhã e a pintura de corte.

14 Outubro 2021, 12:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O CHAMADO MESTRE DA LOURINHÃ E AS ENCOMENDAS DE CORTE EM PORTUGAL NO DEALBAR DO SÉC. XVI


O ambiente artístico desenvolvido no reinado de D. Manuel I revela uma grande dinâmica e um decisivo esforço de ‘aggiornamento’ face aos modelos renascentistas europeus, tanto flamengos como italianos. É no campo da pintura retabular que a arte portuguesa mostra originalidade na busca de repertórios e modelos o mais possível  ‘centralizados’, através de um regime laboral com supervisão régia e um trabalho organizado em «parcerias» e «companhias». O papel de Jorge Afonso à frente da Oficina Régia e o do nórdico Francisco Henriques e seus colaboradores, não esgota o panorama das grandes encomendas de regime, em que se destaca também o enigmático pintor que a historiografia tem apelidado de Mestre da Lourinhã e que actua ao serviço de D. Maria, segunda mulher do Venturoso, dos frades ieronimitas, e da Ordem Militar de São Tiago de Espada. O restauro recente do retábulo da Sé do Funchal permite que a obra deste mestre possa ser apreciada, agora, segundo novos e refrescantes indicadores críticos.

No contexto da estabilidade nacional do início de Quinhentos, o papel do Venturoso em prol da Res publica, em fidelidade a princípios ieronimitas, e o seu  conceito de Pater Patriae que se prolonga pela fase manuelina-joanina, aliada ao conceito de Lisboa umbilicus mundi, e à apertada legislação do rei (Leitura Nova, Ordenações, Regimento dos oficiais, reforma dos forais e das áreas judiciais, justificação da moeda, reforma do sistema de pesos e medidas, modernização das Cortes, do sistema heráldico e Oficiais de Armas, fundação dos hospitais das Misericórdias e outras confrarias de assistência, etc). Desenvolve-se, sob signo do Renascimento (por via tanto flamenga como italiana)  uma cultura livresca e uma marca artística sui generis com impacto na arquitectura, no urbanismo e nos equipamentos decorativos. Também o papel da oração individual, esteio da doutrina hieronimita, vai adquirir um papel relevante no contexto da grande encomenda oficial, tanto na metrópole como nos espaços ultramarinos do Império, explicando as características, por exemplo, da grande pintura devocional de corte. Os conventos jerónimos são decorados à imagem dessa ideologia de poder centralizado por artistas como o Mestre da Lourinhã e Frei Carlos.       O panorama de crescimento do Reino português e dos territórios sob sua influência no reinado de D. Manuel I (1495-1521) mostra, a propósito do ambiente de trabalho artístico desenvolvido, uma dinâmica nunca antes atingida e um grande esforço de modernização sob tutela centralizada. Existiu uma dominante ideia imperial que amadurece depois de 1503, como diz o historiador Luís Filipe Reis Thomaz ao recordar o modo como, sob batuta da Ordem de Cristo e os valores de São Jerónimo, germinou o projecto de construção de um vasto império ultramarino e se desenhou mesmo a hipótese de conquista de Jerusalém como corolário de um destino messiânico de que Portugal se desejava catalizador (1990). Essa eufórica idade de ouro que se assume no reforço de um poder absoluto e centralizado, teve imensa repercussão no discurso da arquitectura e das artes decorativas manuelinas, abertas também a ressonâncias de um hibridismo colonial com que, paulatinamente, estas se souberam miscigenar.  

No campo da pintura de corte, que constitui um capítulo da arte portuguesa sob todos os pontos de vista brilhante, é notório o esforço de aggiornamento com modelos renascentistas europeus, tanto de origem flamenga como os de ressonância italiana, a par da definição de «estilemas» e «modos de fazer» que poderíamos considerar, de certa forma, como estilemas portugueses. Tratou-se de um tempo de prosperidade socio-económica e política, de grandioso desenvolvimento da construção, que incrementa a maior especialização dos pintores, em que se multiplicam as grandes encomendas na metrópole e mesmo para espaços ultramarinos (como Goa, Ormuz e Malaca), e em que vários são os artistas estrangeiros (Francisco Henriques e Frei Carlos) que demandam o país e se instalam em Lisboa, e também em Viseu, Coimbra e Évora (ou mesmo em Braga, Viana do Castelo e Tavira), com as suas oficinas, mercados fixos e espaços de actuação determinados. Esta grande pintura mostra sentido de originalidade na busca de soluções plásticas, repertórios e modelos, ainda que nas fontes artísticas seguidas dominem os modelos de Bruges e Antuérpia e as receitas iconográficas continuem a ser muitas vezes as das xilogravuras alemãs e flamengas.

A identificação da obra do Mestre da Lourinhã remonta a 1933, quando o historiador de arte Luís Reis-Santos encontrou em dependências da Misericórdia da Lourinhã as duas tábuas procedentes do mosteiro da Berlenga e as associou estilisticamente às do retábulo da Sé do Funchal, ao Pentecostes , à Profissão de Santa Paula e às do antigo retábulo de São Tiago de Palmela, expostas no Museu Nacional de Arte Antiga, e ainda ao São Jerónimo do Museu Soares dos Reis, considerando-os obra de um único e só mestre luso-flamengo de altíssima qualidade, que designou por Mestre da Lourinhã e do Funchal. O anónimo Mestre da Lourinhã actuou ao serviço de D. Maria, segunda mulher de D. Manuel, e da Ordem Militar de São Tiago, e deixou um rol de tábuas notabilíssimas, todas do mesmo estilo e da mesma ‘mão’, integradas em alguns dos ciclos retabulares referidos (Palmela, Funchal, Almeirim, Caldas). O restauro recente do retábulo da Sé do Funchal  (W.M.F.) permitiu, aliás, que a obra deste Mestre pudesse ser apreciada segundo novos e refrescantes indicadores críticos, explicando melhor esta ambiência laboral, sob todos os títulos notável, que foi a produção de pintura na corte lisboeta do tempo de D. Manuel I e no início do reinado de D. João III, em que o Mestre se destacou.

Quem foi o Mestre da Lourinhã ? Já se tentou identificar o anónimo artista com Álvaro Pires, um pintor e iluminador da corte de D. Manuel) que foi responsável por alguns frontispícios iluminados da Leitura Nova e que esteve envolvido naa decorações das festas de casamento de D. Manuel com sua terceira esposa D. Leonor em 1521. Trata-se de hipótese que tem, em seu reforço, o facto de existirem afinidades entre as referidas iluminuras, com paisagem roqueira e arvoredo estilizado, e os sfumatos dos fundos nas tábuas do Mestre da Lourinhã.