O Proto-Renascimento: os Painéis de S. Vicente

30 Setembro 2021, 12:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

OS PAINÉIS DE SÃO VICENTE DA SÉ DE LISBOA (c. 1460-1470)

Um breve status quaestionis sobre a obra-prima da pintura portuguesa

 

 

1.    Estado da questão.    

     Em 1910, era revelado ao grande público no complexo de São Francisco da Cidade, sede da Academia Nacional de Belas-Artes, o resultado do processo de restauro dos chamados Painéis de São Vicente, conduzido por Luciano Freire, com apresentação púbica a obra em forma de dois trípticos. Também nesse ano, é dado à estampa o famoso livro do Dr. José de Figueiredo O pintor Nuno Gonçalves, considerado ainda hoje como uma das peças incontornáveis na magna questão suscitada pelas famosas tábuas quatrocentistas, onde avançava pela primeira vez com as teses vicentina gonçalvina.

     Passado século e meio sobre o providencial achado dos painéis num corredor do Mosteiro de São Vicente de Fora, em 1882, estão longe de estarem solucionados os problemas da identidade da obra, os quais continuam a abrir campo às paixões e às polémicas, a teses contrafactuais e mesmo a especulações. Sendo tantos os mistérios que nos Painéis permanecem insondáveis, à míngua de documentação de arquivo esclarecedora ou de dados sólidos de cotejo estilístico para a identificação de personagens, é natural que a altíssima qualidade artística da obra atraia proporcione esclarecimentos deste ou daquele aspecto da pintura e explica-se também que, à margem da ciência histórico-artística, ela continue a dar lugar a um elán irresistível que gera leituras sensacionalistas, a propostas absurdas e a pseudo-teses sem a mínima fundamentação.

     Mesmo assim, a História da Arte avançou -- e não foi pouco – no apuramento de novos saberes sobre os famosos Painéis. No decurso do último século, foram coroadas de sucesso as investigações a respeito do sentido da obra e das potencialidades desta formidável galeria de retratados da Dinastia de Avis reunidos num acto de adoração a um santo diácono duplicado ao centro.

     Sabemos já hoje -- por exemplo -- que se trata de um grandioso ex-voto gratulatório a São Vicente mártir, diácono-patrono da Cidade, do Reino e das Conquistas do Norte de África, através de um conjunto de painéis retabulares onde se reúnem a corte, os fidalgos, o Arcebispo e os cónegos do Cabido da Sé, frades de duas ou três ordens religiosas, gentes de ofícios e da administração pública, pescadores, mercadores, e um trabalhador braçal.

     Também sabemos que estes seis painéis -- e mais outros dois com martírios de São Vicente, hoje no MNAA, identificados em 1952 por Adriano de Gusmão -- integravam a decoração do antigo altar de São Vicente na capela-mor da Sé Catedral de Lisboa, altar esse que integrava o venerado túmulo com as relíquias do santo. Mais sabemos que esse altar era constituído por mais tábuas colocadas em fiadas sobrepostas, com cenas de milagres e martírios do santo (de que nos chegaram as duas referidas). Hoje, pode ser melhor esclarecida a vida desse famoso altar vicentino, conforme à vasta documentação reunida (cerca de 35 documentos), que mostra como no século XV, e também nos séculos XVI, XVII e XVIII, era alvo de grandíssima devoção de todos aqueles visitavam Lisboa.

     Sabemos, ainda, que as tábuas foram executadas cerca de 1460-1470, dadas as coincidências entre os referenciais históricos que a documentação permite fixar e as características do estilo, da técnica e dos elementos compositivos, que os exames laboratoriais das tábuas confirmaram.

     Sabemos, enfim, o nome do pintor que dirigiu a empreitada, que se chamava Nuno Gonçalves, artista muito elogiado por Francisco de Holanda e outras fontes antigas como uma das Águias da Arte da Pintura, e que exerceu a actividade de pintor régio de D. Afonso V desde 1450, mais se apurando que pintava em 1471 um retábulo para a Capela do Paço Real de Sintra, que teria sido agraciado por esses anos pelo Infante D. Pedro da Catalunha com um cavalo quando estaria em Barcelona, e que faleceu em Lisboa pouco antes de 1492.

     Não são poucas, assim, as bases de conhecimento do artista a quem se devem as tábuas do Museu Nacional de Arte Antiga... que aliás são oito e não seis, pois  a  descoberta do historiador de arte Adriano de Gusmão, em 1952, das duas outras tábuas do mesmo Nuno Gonçalves e pertencentes ao mesmo conjunto -- o excepcional São Vicente atado à coluna e o fragmento de São Vicente na cruz em aspa -- como painéis restantes do antigo retábulo do altar de São Vicente da Sé de Lisboa, veio dar a verdadeira identidade estilística que faltava para se compreenderem as seis tábuas da Veneração. E não só de identidade estilística se trata, mas também iconográfica, sendo óbvio que a figura martirizada de São Vicvente era (é) a mesma precisa personagem que, trajando a dalmática própria dos diáconos, se encontra, com seu nimbo luminoso de santidade, levitando no centro dos Painéis chamados do Infante e do Arcebispo, rodeado de personagens da sociedade portuguesa do século XV.

    

2.    Mistérios que persistem.

     Mas são muitas as questões que continuam sem resposta a respeito desta magna obra.

     Não sabemos – nem é previsível que o venhamos a saber antes de surgirem provas identitárias inquestionáveis -- quem são os sessenta representados.

     Não sabemos para quê a obra foi feita, ou seja, que evento político ou militar específico é tratado e com que objectivo veneratório ou gratulatório.

     Não sabemos quem a encomendou, se o Cabido, a Corte, o Senado da Câmara, a Confraria de São Vicente da Sé, se todas estas entidades em conjunto.

     Não sabemos como se dispunha exactamente a obra no seu altar na sua primitiva capela-mor da Sé, que foi destruída com o terramoto (ainda que os painéis não estivessem lá à data do megassismo, estando provada a sua oportuna transferência, em 1742, para o palácio do Patriarcado em Marvila).

     Não sabemos se os seis painéis da Veneração se organizavam, na sua origem, como um políptico (tal como, desde a proposta de José de Almada Negreiros sobre a geometria e a perspectiva dos ladrilhos, se expõem no M.N.A.A.), ou se se distribuíam por duas fiadas distintas do antigo retábulo, tal como Dagoberto Markl sugeriu em 1988, em fidelidade ao que diz o famoso «documento o Rio de Janeiro»)… A ser assim, os Painéis nem se dispunham em dois trípticos, nem num políptico como hoje se expõe: os quatro painéis ditos dos Frades, dos Pescadores, dos Cavaleiros e da Relíquia estavam no primeiro andar do retábulo, aos lados do cofre com as relíquias, e os dois painéis maiores estavam em baixo, em cada ilharga lateral do retábulo, tal como iz taxativamente o anónimo autor do documento do Rio de Janeiro…

     Enfim – problema igualmente insolúvel --, não sabemos onde se formou Nuno Gonçalves -- embora a referência do tratadista renascentista Francisco de Holanda, no tratado Da Pintura Antigua (1540-1548), quando dele diz ser o único português que «merece memória» e que deve o saber aos «antiguos e italianos pintores» cuja «discrição» quis «imitar» --, leve a concluír que o pintor, como retratista exímio dotado de um naturalismo requintado e senhor de uma técnica aprimorada, com o seu cromatismo cálido, sensibilidade por camadas transparentes e personalizado desenho, conhecia o ambiente proto-renascentista mediterrânico, provençal e norte-italiano. De facto, quer nas obras toscanas e úmbrias, de Benozzo Gozzoli, de Mantegna, de Andrea del Castagno, de Gentile da Fabriano, quer na obras catalãs, como as de Jaume Huguet, e provençais, como as da «escola de Avignon», existem paralelos artísticos pronunciados com a obra e Gonçalves. Conhecendo-se bem as rotas diplomáticas e militares de D. Afonso V em terras do sul de França, e a suposta estadia do seu pintor em Barcelona (ainda por comprovare maneira absoluta), existem pistas que impõem atenta investigação sobre esta questão ainda insolúvel: como se pode entender a altíssima qualidade e maturidade estética da pintura e Nuno Gonçalves no contexto internacional do seu tempo, sobretudo num país como Portugal, ainda tão arreigado à tradição goticista no segundo terço do século XV... 

     Seis livros essenciais -- numa floresta de largas centenas de títulos entre livros, artigos, conferências e notas críticas saídos desde 1882 (a data do 'descobrimento' das tábuas num corredor do mosteiro de São Vicente de Fora) e que, no seu conjunto, justificam cada vez mais ser exaustivamente recenseadas numa base de dados de que carecemos (ou só parcialmente ‘coberta’) -- , merecem, a nosso ver, ser destacados na Questão dos Painéis, pois neles se reúnem as contribuições maiores para o conhecimento dos intrincados problemas colocados por esta insigne obra de arte do século XV.

1910 – JOSÉ DE FIGUEIREDO, O Pintor Nuno Gonçalves, Lisboa.

1957 – ADRIANO DE GUSMÃO, Nuno Gonçalves, ed. Europa-América, Lisboa.

1988 -- DAGOBERTO L. MARKL, O Retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e os novos documentos, ed. Caminho.

1994 – AAVV., Nuno Gonçalves – Novos Documentos, coord. de I. Vandevivere, J. Pessoa, D. Rodrigues, J. A Seabra Carvalho, D. L. Markl, ed. Instituto Português de Museus e Instituto José de Figueiredo, Lisboa.

2002 – FERNANDO ANTÓNIO BAPTISTA PEREIRA, Imagens e Histórias de Devoção. Espaço, Tempo e Narratividade na Pintura Portuguesa do Renascimento (1450-1550), Doutoramento, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

2006 – PEDRO FLOR, O Retrato na arte portuguesa (1450-1550), Doutoramento, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

     Aguardam-se agora os resultados a decorrer da última intervenção de conservação e restauro, em curso no próprio Museu Nacional de Arte Antiga, junto os Painéis, por uma equipa internacional.

    

3.    O altar vicentino da Sé e os documentos.

     O famosíssimo retábulo do ALTAR DAS RELÍQUIAS DE SÃO VICENTE tal como existiu na capela-mor da Sé Catedral de Lisboa, está bem referenciado entre os anos 60 do reinado de D. Afonso V e o fim do de D. Pedro II, altura em que foi apeado e substituído por outro barroco marmóreo.

     Acima do célebre túmulo das relíquias e da imagem de vulto do Santo distribuíam-se mais 13 ou 14 tábuas com cenas de martírios e milagres do Santo Padroeiro, tal como já diz D. Rodrigo da Cunha num texto de 1642; e, sob o túmulo, estavam as seis tábuas da Veneração ao Santo Diácono, Padroeiro da Cidade e do Reino (tal como diz o chamado «documento do Rio de Janeiro», de fim do século XVI (ou já de início do século XVII, como parece mais provável), que constitui importantíssima fonte para toda a magna questão. Descoberto por Artur da Mota Alves em 1936 na Biblioteca do Rio de Janeiro, mas de imediato desvalorizado e desapreciado, dada a alegada falta de idoneidade desse autor, e o facto de o testemunho ter certas referências consideradas incongruentes, só foi reabilitado como fonte credível por Dagoberto Markl, em 1973. Uma das «incongruências» decorre do facto de o anónimo memorialista atribuír os painéis a um pintor chamado Mota, que afira ser «famoso» naqueles tempos (os de D. Afonso V)… mas que estranho haveria nessa referência se Nuno Gonçalves se chamasse mesmo Nuno Gonçalves da Mota ? Não sabemos.

    Após 1690, data do apeamento do altar primevo e sua substituição por um novo altar barroco, de mármores embutidos, concebido (provou-o Ayres de Carvalho) pelo célebre arquitecto João Antunes, os quadros do antigo retábulo afonsino foram resguardados no Cabido (uma «junta de pintores» entretanto nomeada pela corte procedeu a vários «retoques» e uniu os painéis volantes), sendo de lamentar que o «relatório» elaborado por essa junta não chegasse até aos nossos dias… Em 1742 seguiram para a Quinta do Patriarcado em Marvila, e deixam de estar patentes ao público (conhecendo-se doumenação vária sobre essa sua presença no palácio, publicada por Nuno Saldanha e Clemente Baeta), só reaparecendo ocasionalmente, seis delas, em 1882, meio esquecidas num corredor de São Vicente de Fora.

     O saudoso historiador de arte Dagoberto Markl reuniu no seu importantíssimo livro de 1988 um conjunto de 29 documentos essenciais para o historial do altar vicentino da Sé, um deles o desaproveitado «documento do Rio de Janeiro», um testemunho anónimo de final do século XVI de alguém que conheceu os Painéis de visu, texto esse que reabilitou, tornando-o fonte creível e que, depois de 'lida' em conjunto com as demais, como se impunha, veio alargar conhecimentos sobre o altar vicentino. Mais recentemente, Clemente Baeta deu a conhecer outro testemunho valioso da época de D. João III, as referências o fidalgo Francisco Pereira Pestana aos painéis no seu altar cateralíceo, onde tal fidalgo recomenda muito ao monarca que vá ver aquelas célebres pinturas onde se representam as figuras gradas da corte portuguesa à data das conquistas afonsinas no Maghreb.

     Apareceram também, entretanto, outras breves referências ao altar e seu retábulo, como seja uma descrição do agostiniano Frei Bento Morganti, e uma outra alusão às tábuas, coeva da Joyeuse Entrée de 1619 (quando, nos preparativos a visita régia de Filipe III, II de Portugal, à capital portuguesa, se fez um «desenho» do altar de São Vicente para mandar para Madrid, o que só se explica pelo facto de incluir retratos de figuras gradas da Dinastia de Avis e de a Sé estar prevista como um dos lugares de agenda de visitas da comitiva régia, como aliás sucedeu)...

 

4.    A obra-prima da retratística de grupo do século XV.

          Quando se admira o celebérrimo Políptico do Museu Nacional de Arte Antiga, o problema que verdadeiramente se nos coloca é o da altíssima qualidade plástica, unitária e personalizada, sem antecedentes na geração anterior e quase sem continuidade nivelada na pintura do tempo de D. João II. Na verdade, após 1480-1490, o panorama pictural português parece ter sido dominado por uma certa regressão estilística, bastando ver-se não só algumas pinturas de derivação gonçavina (Museus diocesanos de Évora e do Funchal), como a obra de Vicente Gil (Primeiro Mestre de Santa Clara) como testemunho claro essa involução, mesmo que apresentando certas reminiscências do Mestre dos Painéis da Veneração a nível do desenho e caracterização de figuras.

     Além das oito tábuas do altar de São Vicente, de Nuno Gonçalves só restam mais quatro tábuas (com figuras de santos, obra de oficina, destinada a outra empreitada), com características essencialmente devocionais mas ainda de grande qualidade artística, e as referidas peças epigonais (Museus de Arte Sacra da Sé de Évora e do Funchal). Discute-se, com propriedade, se os cartões das célebres Tapeçarias de Pastrana e um retrato da Princesa Santa Joana (Museu de Aveiro) de que apenas subsiste uma versão mais tardia, seriam também a sua responsabilidade.

     É ainda muito estranho o hiato da pintura nacional que corresponde à sequência Nuno Gonçalves, como se o seu desaparecimento deixasse um vazio sem solução à vista: dos fins do século XV, apenas avulta como obra acima da mediania o já citado Políptico de Santa Clara-a-Velha, pintado cerca de 1486 pela Oficina coimbrã de Vicente Gil, pintor ao serviço da Rainha D. Leonor e devedor de certos modelos gonçalvinos, ainda que num estágio de formulação estética e criadora que se manifesta, claramente, retardatário.

     A identidade do santo diácono, repetido no centro do friso de um acto de veneração, foi desde sempre uma das questões mais discutidas, após o livro de José de Figueiredo (1910), tendo a recusa em aceitar a tese vicentina sugerido imensas alternativas e probabilidades de destino da obra: assim, ao duplo Santo central chamaram, em diversas 'teses', Santo Eduardo, Infante Santo D. Fernando, Carlos da Catalunha, Infante D. Jaime, São Tiago, Santa Catarina, Santos Crispim e Crispiniano, São Tomás de Cantuária, São Jorge, Santo André, etc etc. A polémica atinge o auge em ano como 1925-1926, com troca de ataques na imprensa, a falsificação de um documento de arquivo (por João Pita Morgado), e o suicídio de um historiador injustamente acusado de fraude (Henrique Loureiro)… Uma das teses mais delirantes coube a José de Bragança (1961), para quem o autor dos Painéis era… Vasco Fernandes, o Grão Vasco da fama, pintor viseense activo na primeira metade do século XVI ! Mais recente, partindo de interpretações erróneas de bases científicas e laboratoriais decorrentes da dendocronologia as tábuas de suporte, acrescidas de uma leitura delirante de uma pseudo-inscrição afinal inexistente, surgiu uma tese (Jorge Filipe de Almeida) que foi alvo de efémera mediatização e onde se defendia uma cronologia de 1445 (!) para a execução dos Painéis !

     O rol de «teses» que se multiplicaram na bibliografia, portuguesa e não só, maioritariamente infundadas, é extensíssimo. Algumas delas merecem atenção crítica já que, partindo embora de interpretações infundadas, contribuíram para esclarecimentos vitais: veja-se Henrique Loureiro (1925) no caso da identificação do Arvebispo, e de Teresa Schedel Castel-Branco (1994) no caso da identificação da figura que apresenta a relíquia como um Vereaor do Município. Mas o Santo uplamente repetido ao centro as duas tábuas maiores é sem dúvida, simplesmente, São Vicente (já o afirmavam com segurança George Kaftal, Charles Sterling e Hellmut Wohl) e essa é uma das constatações a afirmar com toda a segurança; bastava o uso da dalmática (que à época só pode ser usada pelos três diáconos São Vicente, Santo Estêvão e São Lourenço), para restringir as hipóteses sugeridas por tantos autores que, depois do livro de José de Figueiredo de 1910, vieram questionar e refutar a tese do Mártir São Vicente.

     Destes autores anti-vicentistas, só poucos merecem ser referenciados, como sucede também com o livro de José Saraiva (1925), dada a qualidade argumentativa na crítica à construção metodológica de José de Figueiredo (a presença de uma vara e não e uma palma no Santo do Painel do Arcebispo persiste por resolver e moo cabal), ainda que a sua tese não tenha sustentação mínima na parte «construtiva» da tese alternativa. Dado que a «tese fernandina» tem justificado cíclicas retomas na polémica dos Painéis, mas a verdade é que o duplo santo não pode ser o Infante Santo, bastando ver-se a iconografia distinta de representação desse infeliz príncipe no tríptico da capela do Infante D. Henrique na Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha (c. 1460, hoje no MNAA), na iluminura da Biblioteca do Vaticano, na escultura do portal axial dos Jerónimos (de Nicolau Chanterene, 1517-18), na gravura da Anacephalaeoses do Padre António Vasconcelos (Antuérpia, 1621) ou em gravura da Clypeus Castitatis (1653) e do Acta Sanctorum de Daniel Papebroeck (do fim do século XVII). A monarquia portuguesa queria preservar por razões propagandísticas a imagem do príncipe cativo e foi essa que serviu à falhada pretensão de canonização do Infante Santo.

 

5.    Conclusões assentes.

     Em suma: temos para os Painéis de São Vicente um status quaestionis com cento e trinta anos de historial, a partir da redescoberta em 1882, e não esquecendo as muitas e prementes matérias que permanecem sem resposta credível, permite apurar quatro questões (todas elas muito relevantes) que já podem ter hoje uma cabal resposta:

     Quem foi a oficina responsável ?

     -- Nuno Gonçalves, o pintor régio de D. Afonso V, bem documentado nas chancelarias, e devidamente elogiado na Pintura Antigua de Francisco de Holanda como o autor do famoso retábulo vicentino da Sé. Tal como a memória da obra foi curta (apeada e escondida durante séculos), também a memória do pintor foi desaparecendo, confundida com a dos inexistentes Mota (doc. Rio de Janeiro) e Brás Pereira (doc. Fr. Inácio da Boa Morte).

     Quando se fez ?

     -- Todas as caracterísricas de técnica de execução, de preparação, de estilo de produção, de madeiras, de iconografia de vestuário, acessórios, armas, etc, apontam para uma cronologia cerca 1460-70.

     Para onde se destinou a obra ?

     -- Cerca de trinta e cinco documentos desde meado do século XV permitem acompanhar as vicissitudes do altar vicentino da Sé, até às reformas barrocas sofridas, alterações e repintes quinto-joaninos, e transferência para o paço de Marvila, em boa hora, no ano de 1742, assim escapando do terramoto.

     Qual o santo duplamente venerado ao centro do políptico ?

     -- Apenas e só São Vicente, protodiácono e mártir, padroeiro da Cidade de Lisboa, do Reino de Portugal e das Conquistas no Norte de África. A identificação por Adriano de Gusmão de duas tábuas das fiadas superiores (com a mesma personagem, despida, em fases de martírio) veio atestar a identidade, e permitir reconstituir o programa iconográfico do conjunto catedralíceo que se montou junto ao túmulo das relíquias, retirando, assim, quaisquer dúvidas sobre a identificação do Santo duplamente representado na Veneração.