Herzog literário. Herzog cineasta
16 Maio 2017, 16:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
3º Módulo: O frio dos frios, oceanos, Antárctida
O absurdo e o grotesco de algum discurso diarístico de Werner Herzog, causado pelo desgaste da caminhada, mas igualmente pelo seu estado anímico, chamaram a nossa atenção. Fizemos por isso leitura de dois poemas, um de Jakob van Hoddis, O fim do mundo (Weltende), de 1911, e o outro, O crepúsculo (Die Dämmerung), de 1913, de Alfred Lichtenstein, que são representativos do Expressionismo literário Alemão, corrente estética familiar a Herzog, a partir da cinematografia alemã expressionista (Murnau, Pabst, Lang, Wiene) e do seu trabalho com Lotte Eisner. Ele próprio filma sob esse horizonte estético algumas das suas obras, por exemplo, Nosferatu – O fantasma da Noite (1979) inspirado em obra homónima de F. W. Murnau, Nosferatu, Uma sinfonia do horror (1922).
Aqui deixamos a tradução dos dois poemas, feita por João Barrento, que lemos e comentámos em aula, para que seja possível uma apreciação mais demorada das duas pequenas obras em paralelo com momentos textuais do diário Caminhar no Gelo, em que a banalidade da realidade quotidiana que Herzog experimenta e adquire uma dimensão absurda e inquietante.
Jakob van Hoddis, O fim do Mundo
Voa o chapéu ao bicocéfalo burguês,
Os ares enchem-se de gritos e rumores.
Desintegrando-se caem telhadores,
E – segundo as notícias – sobem as marés.
Chegou a tempestade, saltam mares ululantes
Para terra: esmagar diques é sua intenção.
Em quase toda a parte grassa constipação
Os comboios precipitam-se das pontes.
Alfred Lichtenstein, O crepúsculo
Um rapaz gordo brinca com um lago.
O vento ficou preso em arvoredo.
O céu, de ar tresnoitado e de tom vago,
Parece que tirou pintura, a medo.
Dois coxos tortos, dobrados, de muleta,
Arrastam-se pelo campo em cavaqueio.
Enlouquece talvez louro poeta,
Um cavalinho tropeça num seio.
O gordo está colado ao guardavento.
Um jovem vai ao bordel em visita.
Calça as botas um palhaço cinzento.
Cães praguejam, carro de bébé grita.
Iniciámos a seguir o visionamento do filme de Werner Herzog Encounters at the End of the World (2007) (Encontros no fim do mundo) como experiência de articulação entre ciência, arte, humanidade e natureza. (os primeiros 30 mins.)
Antes de o DVD ter tido início, ou melhor, logo nos primeiros minutos do decurso do filme, tomámos consciência, pela boca do próprio realizador, de que este filme não seria do mesmo género de A marcha dos Pinguins, filme de 2006, realizado por Luc Jacquet.
Esta chamada de atenção, considerada pertinente, dados os interesses de Herzog por um lugar tão inóspito como é o continente antárctico, veio em nosso auxílio para que atentássemos em realidades que à partida não esperaríamos encontrar num lugar puro.
Trata-se de um continente que não pertence a ninguém e cujo estatuto especial foi confirmado no dia 1 de Dezembro de 1959 através do Tratado da Antárctida. Esta legislação internacional tem a função de proteger este território da ganância e vontade de exploração económica (a caça à baleia foi durante séculos uma autêntica devastação; as riquezas do subsolo antárctico, incluindo o petróleo, são uma tentação incontornável) e política de qualquer país alojado num dos restantes continentes.
Na Antárctida está apenas autorizada a investigação científica, a cooperação internacional no respeito por esse tratado e a manutenção de um relacionamento pacífico entre as equipas de investigadores dos países acreditados ao abrigo do referido tratado.
A condição pacífica do continente, onde ninguém o habita em permanência, afasta a possibilidade dele vir a ser militarizado, de nele se realizarem toda e qualquer acção nuclear, incluindo o depósito de resíduos desse tipo.
Talvez possamos melhor compreender agora o que motivou Herzog a deslocar-se à Antárctida, por algumas semanas, acompanhado apenas pelo seu director de fotografia, Peter Zeitlinger.
O que nos é dado ver, para além da produção de ciência, são os relatos de cientistas sobre o que investigam e o que esperam alcançar durante os cinco meses (Verão antárctico) em que a luz solar é contínua. Seguimos outras conversas não científicas de pessoas que vivem ali depois de «terem saltado do mapa do mundo.»
Confunde-se a arte de filmar com a própria natureza do lugar. Esplêndidas paisagens da superfície da Terra aos enigmáticos fundos oceânicos são abraçados por escolha musical que nunca nos deixa insensíveis. Mesmo à distância de milhares de quilómetros, o filme realizado por Herzog atrai a nossa sensibilidade de observadores para uma beleza e poeticidade inexplicáveis, poa um lugar onde o frio pode ir até -85º, e onde se morreu e morre se não forem respeitados os códigos de uma Natureza implacável.
Leituras recomendadas:
BARRENTO, João 1989, A Poesia do Expressionismo Alemão, Lisboa: Editorial Presença, p. 75 e 78.
HERZOG, Werner, 2011, Caminhar no Gelo, tradução de Isabel Castro Silva, prefácio de Pedro Mexia, Lisboa: Tinta-da-China.
DVD em visionamento:
HERZOG, Werner, 2007/2009, Encounters At the End of the World, documentário, 97 min., em inglês com opção de legendas em português + making of em inglês