"O Mundo das Nuvens" de Gavin Pretor-Pinney," O Jogo das Nuvens" de Goethe/Barrento, Nuvens literárias em Dino Bozzatti

7 Março 2017, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

1º Módulo: Nuvens

 

Consciencializámo-nos de que o Mundo das Nuvens e O Jogo das Nuvens, apesar de terem como assunto as nuvens, são livros muito diferentes. M (Mundo das Nuvens) revela-nos a presença de um autor entusiasmado pela matéria de investigação escolhida e que consegue manifestamente encontrar um tom próprio para a sua escrita. Ele tem o claro propósito de cativar os seus leitores de muitas e diversas formações e distintos interesses através do que escreve e investiga. J (O Jogo das Nuvens) é uma pequena obra compilada, portanto uma selecção de textos da responsabilidade de outrem, que se apresenta ao leitor para revelar a presença do assunto nuvens tratado sob diferentes perspectivas e por um só autor. Poder-nos-íamos interrogar se Goethe escreveu maioritariamente para si ou se pressupunha a existência de outros leitores que não aqueles com que se correspondeu (Luke Howard, Frau von Stein).

J e M apoiam-se para a estruturação de conteúdos numa taxonomia sobre nuvens, a de Luke Howard, que terá sobrevivido desde o séc. XIX até aos nossos dias por proposta científica comprovada e aceite, mas também pela língua escolhida – o latim – ainda hoje a língua-franca da ciência.

Gavin Pretor-Pinney faz dessa taxonomia a espinha dorsal do seu livro, criando capítulos destinados a trabalhar as nuvens em função da sua altitude, formato, variedade e aspecto.

O avanço da investigação em ciência das nuvens hoje em dia extravasa a taxonomia utilizada, sendo o último capítulo reservado a novas formações directamente dependentes da acção humana (contrails, 274-305), enquanto outras, por não terem sido observadas nos céus ingleses por Howard e outros, por não terem sido vistas nos céus alemães por Goethe e outros, por não fazerem parte de um conjunto de fenómenos então conhecidos e que são característicos da observação e estudo dos céus do mundo a partir de oitocentos, só ganharam lugar numa tabela alargada mais recente, a partir da altura em que a troca de conhecimentos sobre a Glória da Manhã (306-331) e a sua manifestação regular nos céus da Austrália, em especial, junto à localidade de Burketown se tornou uma evidência.

Esta nuvem não tem comparação com nenhuma outra pela sua grandiosidade e já tem sido avistada noutras partes do mundo, embora sem a regularidade com que aparece nos céus da Austrália. Afirma Pretor-Pinney que ela é conhecida dos povos aborígenes (317-319), o que nos faz crer que se manifesta desde sempre como as outras nuvens.

Goethe apenas desconhecia a Glória da Manhã. Com todas as outras nuvens mantinha familiaridade. No tempo de Goethe não havia ainda contrails como tal identificadas.

De que se ocupa então J? Estamos perante um conjunto de materiais que testemunham duas coisas: 1. A dimensão empírica do trabalho do autor alemão com as nuvens, o que faz dele um cientista nesta área do conhecimento com contributo para a História da Meteorologia, partilhando com Luke Howard princípios e resultados da sua investigação; 2. O carácter simbólico que o mesmo assunto nele desencadeia e que o faz defender que as nuvens têm para além da sua condição fenoménica de elementos da natureza em constante mutabilidade uma função de activarem no ser humano uma condição «metafórica, imagética e analógica» (11) que faz corresponder esta tripla propensão ao facto de que as nuvens para Goethe são «seres vivos» que integram o movimento constante e regular da Terra e do Universo. E é assim que a ideia de polaridade e de potenciação que enformam todo o pensamento científico e literário-artístico da fase de maturidade do autor se revelam como energia congregadora para o comportamento de nuvens.

Como consequência desta tomada de posição abeiramo-nos então da ideia de pensamento holístico, caro a Goethe e presente em J, considerando que as formas e movimento das nuvens nos permitem ter da natureza e do universo uma perspectiva integrada e reparadora do que somos, de como nos articulamos como partes de um todo e de como ao mesmo tempo adquirimos o sentido de metamorfose de que as próprias nuvens são exemplo.

Apontámos a título de ilustração a configuração da Mónada (Leibniz) como uma representação que contém ao mesmo tempo o todo e as partes, sendo que cada parte reúne em si a essência de tudo o que existe.

Referimos a propósito do princípio da homeostase, um modo regulador do equilíbrio interno dos seres vivos (para Goethe as nuvens são «seres vivos») e destes com o meio exterior, um outro princípio que Goethe desenvolve a partir da ideia de «planta primordial» e que pode, de certo modo, criar conexão entre o conhecimento das nuvens e o conhecimento das plantas.

Na sua obra Viagem a Itália, na entrada de diário de Terça-feira, 17 de Abril de 1787, e estando em Palermo, Goethe escreve: «Muitas das plantas que eu só costumava ver em selhas e vasos, e a maior parte do ano apenas em estufas envidraçadas, estão aqui todas ao ar livre, bonitas e viçosas, e ao desempenharem assim o seu papel natural tudo nelas se nos torna mais óbvio. À vista de tantas formas novas e renovadas veio-me ao espírito a minha velha fantasia da planta primordial (Urpflanze), e pensei se não poderia encontrá-la entre toda esta variedade. Porque tem de existir uma tal planta! Se assim não fosse, como iria eu reconhecer que esta ou aquela formação é uma planta, se elas não se configurassem todas a partir de um modelo único?

Goethe não considera que no caso das nuvens exista uma «nuvem primordial», uma formação arquetípica, no entanto, não descura a ideia de uma complementaridade entre opostos: mundo inferior, mundo superior, a condição antropomórfica e biológica das nuvens, a possibilidade de estas poderem ser interpretadas por analogia.

Os textos seleccionados por João Barrento para O Jogo das Nuvens oferecem uma relativamente ampla possibilidade de leituras, de entre as quais destacaria a observação in situ e as considerações filosóficas sobre a relação entre a forma e o informe. Para Goethe as nuvens fazem parte da coerência da natureza.

 Dedicámos ainda um curto espaço de tempo à interpretação do conto As Tentações de Santo António de Dino Buzzatti explorando a relação que o protagonista do conto, Dom António, tem com as nuvens. De um ponto de vista da construção da narrativa as nuvens deste conto, que afectuosamente considerámos nuvens literárias, dividem o protagonismo com o sacerdote e professor, na sua demanda por uma resposta (talvez uma auto-resposta) sobre a natureza do pecado, a que crianças com pouco mais de uma mão cheia de anos de vida deveriam responder.

 Voltaremos a O Jogo das Nuvens e ao conto em apreço.

 Leituras recomendadas:

GOETHE, Johann Wolfgang von 2003, O Jogo das Nuvens, selecção, tradução, prefácio e notas de João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim.

PRETOR-PINNEY, Gavin 2007, O Mundo das Nuvens – História, Ciência e Cultura das Nuvens, tradução de Sofia Serra, Cruz Quebrada: estrelapolar.

 

Leitura Complementar:

BUZZATTI, Dino 1994, As Tentações de Santo António in: A Queda da Baliverna, Lisboa: Cavalo de Ferro (esgotado), pp. 197-203.

GOETHE, Johann Wolfgang von 1992, Viagem a Itália, Tradução, Prefácio e Notas de João Barrento, Lisboa: Círculo de Leitores / Relógio D’Água (excertos).