Quando duas cartas nos movem

30 Março 2017, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Alexander von Humboldt - um naturalista em campo e o desafio perante experiências-limite – Discurso na primeira pessoa

 

Cartas de Alexander von Humboldt a Jean Baptiste Joseph Delambre (Lima, 25.11.1802) e a Wilhelm von Humboldt, seu irmão (Lima, 25.11.1802)

 

Propus aos alunos realizarmos em conjunto uma experiência de aula diferente. Os dois objectos de análise enunciados, as cartas, foram escritos em francês pelo seu autor, não havendo delas qualquer tradução em inglês, a língua estrangeira que os alunos conhecem melhor. Entre os alunos havia, porém, quem fosse capaz de ler em francês e entender o conteúdo das cartas. Essas voluntárias à força aceitaram preparar interpretação dos dois testemunhos.

Pela primeira vez estávamos a colaborar num exercício com risco. Os alunos que não sabiam francês entregavam-se nas mãos daqueles que conheciam essa língua. A Kena Kuhn, a Márcia Rosa e a Madalena Quintela foram as nossas “asas”, como se costuma dizer em calão jurídico dos juízes que acompanham um juíz-presidente, como júri colectivo.

Analisámos então duas cartas escritas no mesmo dia a dois destinatários distintos e sobre um mesmo acontecimento: a subida ao Chimborazo. Ocupei-me da tradução dos excertos comentados, não sem que as alunas implicadas tivessem a oportunidade de manifestar os resultados das suas leituras.

A primeira carta (nº 88), ao amigo Delambre, dá conta, tal como a segunda carta também (nº 89) de uma profusão de interesses que sempre inspiram A. v. Humboldt quando põe por escrito o seu pensamento.

Na carta nº 88 verificamos como é importante para o autor mencionar muitos dos seus colaboradores e amigos, também instituições com as quais A. v. Humboldt se relacionava do ponto de vista científico no continente europeu. A enunciação de vários nomes pretende salientar os laços que unem o cientista alemão ao seu passado recente, que ele nunca rejeita, apesar da distância que separa o autor e os nomeados. Esses nomes invocam ainda a legitimação de um percurso científico que A. v. Humboldt prossegue e persegue num outro cenário e com diferentes condições e diferentes protagonistas.

Paradoxalmente A. v. Humboldt refere a falta de tempo para a escrita (nº 88), embora cada uma das cartas nos apresente em muitas páginas um mundo de conhecimento e de interesses que nos confrontam com o estudo comparado do planeta Terra, dados de medições e tabelas, uso de linguagem científica referente a várias áreas de investigação.

É a subida ao vulcão Chimborazo, em 23.6.1802, que une de facto os dois documentos. E a nossa estupefacção tem lugar quando no meio das aflições da subida nos deparamos com dados concretos de comparação vulcanológica e geológica, bem como com informação sobre a reacção do corpo humano ao frio e à altitude apresentados em toesas (1 toesa = 1,82 m). O grau de congelamento da água causado pelas baixas temperaturas surge na escala então comum do termómetro de Réaumur (cujos pontos fixos são o ponto de congelamento da água (0°Ré) e o seu ponto de ebulição (80°Ré).  Assim, a unidade desta escala, o grau Réaumur, vale 4/5 de 1 grau Celsius e tem o mesmo zero que o grau Celsius. Informação wikipédica) Voltaremos a este assunto quando nos ocuparmos do frio.

É a explosão de conhecimentos e a sua organização à la Humboldt que nos surpreende em momentos de grande aflição e risco. A carta nº 89 revela que o destinatário é alguém com quem o naturalista mantém uma relação mais íntima: o irmão. Com ele, Alexander fala, por exemplo, de um interesse que é a razão de ser das investigações do irmão, a linguística, quando refere os diversos estudos que realizava na prática quotidiana, ao conversar com indígenas de várias tribos. (212).

Estas duas cartas oferecem uma perspectiva na 1ª pessoa do modo de ser e de existir de Humboldt, como homem do seu tempo, como cientista da Natureza, como antropólogo, como sociólogo, como democrata, como ser completo no contexto planetário e universal.

Para Alexander von Humboldt não existem limites a uma trajectória de vida dedicada aos outros e ao mundo, não de uma forma sacrificial mas com plena alegria e empenho. A sua determinação em criar ligação entre tudo o que existe, visível e invisível tornou-se no seu programa de vida.

Andrea Wulf abre o seu livro com uma citação de Johann Wolfgang von Goethe que reza assim:

«Cerra os olhos, espeta as orelhas e, do mais suave som ao mais selvático barulho, do mais simples tom à mais elevada harmonia, do grito mais violento e apaixonado às mais gentis palavras da doce razão, é a Natureza que fala, revelando o seu ser, o seu poder, a sua vida e a sua afinidade, para que uma pessoa cega, a quem é negado o mundo infinitamente visível, possa captar a infinita vitalidade daquilo que pode ser ouvido.»

 

Leituras recomendadas:

HUMBOLDT, Alexander von 2007, Pinturas da Natureza – Uma Antologia, selecção, apresentação e tradução de Gabriela Fragoso, posfácio de Hanno Beck, Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 21-132.

HUMBOLDT, Alexander von, 1993, Briefe aus Amerika 1799-1804, Ulrike Moheit (ed.), Berlin: Akademie Verlag, pp. 208-214. (para alunos com conhecimento de francês)

MENDES, Anabela | FRAGOSO, Gabriela (ed.) 2008, Garcia de Orta e Alexander von Humboldt – Errâncias, Investigações e Diálogo entre Culturas, Lisboa: Universidade Católica Editora, pp. 69-79.

WULF, Andrea 2016, A Invenção da Natureza – As Aventuras de Alexander von Humboldt, o herói esquecido da ciência, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores, pp. 112-122.

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexander_von_Humboldt

 

https://en.wikipedia.org/wiki/Alexander_von_Humboldt