Ser feliz no frio
4 Maio 2017, 16:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
3º Módulo: O frio dos frios, oceanos, Antárctida
Exercício de transição entre o espaço vivencial e artístico proposto pela nossa convidada Maria Carneiro, inspirado no frio árctico e na adaptação à vida quotidiana de habitantes dessa região polar e circundante.
Desta vez não nos inspirámos no espaço urbano nem no aconchego das casas com arquitectura concebida para fazer face a temperaturas baixas e a grandes tempestades de vento e neve. Não apreciámos o design nórdico de mobiliário, inspirado em linhas direitas mas harmoniosa e que exibem uma certa austeridade visual. O conforto e a qualidade dos materiais são sempre o objectivo primeiro de quem os concebe. As noites nas janelas das casas dinamarquesas são vividas com luz baixa, à semelhança daquela que o sol projecta quando se descobre entre névoas e neblinas durante o dia. Não precisámos de usar aquela palavra dinamarquesa, cheia de afectividade e multiforme, que aprendemos há poucos dias – hygge – e que exprime vários modos de bem-estar e prazer. Não descalçámos os sapatos ou as botas em lugares públicos muito aquecidos. Não andámos de T-shirt ou roupa leve em nenhuma circunstância.
Deixámos para trás o espectáculo coralista e videoástico NEOARTIC e a sua complexa composição. Os nossos actores são homens simples que pescam, caçam, montam armadilhas como forma de sobrevivência.
O nosso exercício de transição ocorre também numa outra região de acesso ao oceano Árctico. Do norte da Dinamarca passámos para o norte da Rússia, onde três rios, entre os quais o Yenisei, que corre junto à aldeia de Bahkta, confluem em direcção às águas geladas do Árctico. Observámos como prioritariamente os homens desenvolvem actividades próprias para a subsistência de cerca de 300 habitantes que nessa pequena localidade habitam e à qual só se chega de barco ou helicóptero.
O acesso a este espaço natural longínquo proporciona-nos novo encontro com o cineasta Werner Herzog que, em 2010, visitou esse lugar inóspito para realizar o filme Happy People – A Year in the Taiga, a partir de material registado pelo realizador russo Dmitry Vasyokov.
O filme, um aparente documentário, ocupa-se da região e dos seus habitantes, dando destaque às actividades da pesca e da caça nas florestas da taiga siberiana num ciclo de quatro estações. Talvez nos tenhamos podido aproximar de um modo de ser e de existir quase pré-histórico, ainda que filmado no séc. XXI e matizado por ocorrências associadas à História da Rússia soviética desde a II Guerra Mundial e até à propaganda de um acto eleitoral regional que se insere numa realidade que causa estranheza aos aldeões. A publicitação desse acto eleitoral vem das águas do rio Yenisei como um número de circo. Sacos com farinha de cereais são deixados em Bahkta pelo candidato que se auto-promove.
O que nos dá a ver este filme? Homens e cães em processo de sobrevivência numa das mais frias regiões do planeta. Talvez sejamos capazes de contemplar como eles são felizes e livres. Vivem afastados do universo criado por regras, impostos, governos, leis, burocracia, telemóveis e outras tecnologias que ali não conhecem aplicação. Passam meses pernoitando em pequenas cabanas que eles próprios constroem, enquanto de dia enfrentam no exterior temperaturas negativas mas sabendo delas proteger-se.
Os dias passam-se sem uma rotina estabelecida, dando aso a um acordo tácito entre ser humano e natureza num processo de grande dignidade e respeito mútuo. Constroem-se pares de skis, escavam-se troncos de árvores para se fazerem canoas.
A ancestralidade expõe-se num rosto talhado a ruga e pele, finos olhos alveolares e mãos que desvelam bonecas negras dos seus panos brancos. Nelas reside o efeito da noite mágica. De dia dormem, à noite guardam os vivos dos seus temores e pavores.
A subtileza deste ritual associado ao pensamento sincrético dá as mãos à filigrana da textura dos troncos de árvore. Ali vivem eles para serem descarnados e moldados a um uso prático. Ali vivem eles na beleza da forma interior, de cuja natureza do desenho nos apossamos para nele descobrirmos valor estético.
Os homens, mas também as mulheres do filme, fazem apenas uso de competências aprendidas na passagem das gerações adequadas à sobrevivência, seguem as suas regras nunca impostas, os seus próprios valores e destinos. O processo que acompanhamos é de integração e de adaptação ao frio mas também às condições das outras estações do ano e à Natureza sublime. O filme não poderia, por isso, ser apenas um documentário.
Filme visionado:
HERZOG, Werner e VASYUKOV, Dmitry 2010, Happy People – A Year in the Taiga, 94 min., em russo com legendas em inglês.