Com Kandinsky e em transição para Palucca Professores Pedro Florêncio, Sérgio Mascarenhas, Alexandre Pieroni Calado

1 Março 2021, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

MARÇO                                           2ªFEIRA                            5ª AULA

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Segundo estudo de caso

Gret Palucca e a procura do abstraccionismo na dança. A pintura como inspiração entre Natureza e corpo.

Influência de artistas da Bauhaus no percurso desta coreógrafa. Evolução da sua arte e formação de uma escola de dança em Dresden. Ideologia e arte – República de Weimar, Nacional-Socialismo, República Democrática Alemã, República Federal da Alemanha.

 

1.Tal como previsto fizemos a ponte entre Kandinsky e Palucca (1902-1993) através do pequeno ensaio escrito pelo pintor e intitulado Curvas de Dança (1926) e as fotografias de Charlotte Rudolph.

Interessou-nos em Curvas de Dança o processo de sequenciação das artes que se constituem como presença conjunta – a captação através de imagem visual da dança de Palucca por Charlotte Rudolph, o aproveitamento dessas fotografias para a fixação do desenho de movimento por Kandinsky (o diagrama) e finalmente a prosa kandinskyana para concluir o processo de seriação. Aqui não se trata de síntese das artes, mas de um processo montado para servir o objectivo de defesa de uma nova disciplina: a ciência da arte.  Destaca-se neste contexto a função a desempenhar, segundo Kandinsky, pela «fotografia em câmara lenta» e pelo recurso ao cinema. Não tendo o curto ensaio como expoente a utilização de disparos super-rápidos e a baixa velocidade nem o uso da câmara, podemos inferir que é na técnica que o artista encontra uma resposta para invocar a «ciência da arte», não só como metodologia, mas também como prática exaustiva em pesquisas que examinam os elementos da investigação de forma a destacar a «pulsação interior» sobre a exterioridade do processo.

Em Curvas de Dança Kandinsky não usa uma linguagem descritiva, como Palucca o faz na sua notação Abstracções na Dança (1923), porque o seu pequeno ensaio pode ser encarado como uma espécie de programa artístico. Ele visa homenagear as qualidades físicas e invulgares da bailarina, ao mesmo tempo que faz desta experiência agregada um esboço de estudo para introduzir a aplicação de uma metodologia da ciência à arte. A materialização deste exercício é por isso assumida no desenho abstracto e linear com que culminam Curvas de Dança. Este título faz-nos olhar para os desenhos kandinskyanos como esboços de circunstância que viriam a ter sequência na sua obra Ponto, Linha, Plano (1926), onde aparece já a explicação que introduz um discurso para-científico sobre o plano da arte, neste caso sobre a dança. Passo a citar:

«No ballet clássico falava-se já em “pontas” – terminologia proveniente, sem dúvida, da palavra “ponto”. Os pequenos passos na ponta dos pés desenham pontos no solo. O ponto surge também nos saltos do bailarino; indicam-no a cabeça ao elevar-se no ar e os pés ao tocarem o chão. Os saltos na dança moderna podem ser opostos, em certos casos, aos saltos clássicos verticais porque o salto “moderno” desenha, por vezes, um plano com cinco pontas – a cabeça, duas mãos, duas pontas dos pés e dez dedos que desenham outras dez pontas mais pequenas (como o exemplo da bailarina Palucca, fig. 9). As paragens rígidas e breves constituem, também, pontos, acentos activos e passivos que correspondem à significação musical do ponto.» (Kandinsky, 1989: 49) A exposição de natureza científica e técnica segue depois em torno da música, das artes gráficas, valorizando no conjunto a representação do ponto como um elemento essencial de notação em dança.

 

 

 

Livro nº 9 de Kandinsky, Ponto Linha Plano, Bauhaus, 1926 (p. 51 da edição portuguesa recomendada)

O diagrama acima apresentado pode ajudar-nos a reflectir sobre outros elementos anteriormente descritos no ensaio Sobre a Questão da Forma e que indiciavam modos de libertação de uma letra, um travessão e um fósforo queimado. Nesses casos a proposta visava circulação e mobilidade dos constituintes da exemplificação criando para os mesmos circunstâncias «inabituais». E essa dinâmica era recriada através do discurso e não do desenho, insistindo o artista na equivalência entre forma real e abstracta decorrente da disposição interior. (Kandinsky, 1998: 27)

É justamente desta «necessidade interior» que Kandinsky parte para caracterizar a dança de Palucca, mas é também da necessidade de afirmar o seu novo interesse pela dança moderna e pela ciência da arte que justificam a criação de diagramas não só em relação à dança, mas a tudo o que o rodeia. Em Ponto Linha e Plano, a obra teórico-prática que resulta do trabalho directo com os alunos na Bauhaus, verifica-se que a relação entre a finalidade prática das coisas e as suas vibrações, neste caso, da criação artística em dança que se projecta entre movimento e repouso, vai ao encontro de uma sequencialidade entre os desenhos de Curvas de Dança (sem cabeça nem outros pormenores) e a passagem à fig. nº 9) em que se modela a curva no círculo e os pontos se multiplicam na sua função.

 

A imagem original de Charlotte Rudolph (1922-23) apresentava um contexto que Kandinsky não escolheu. Palucca era uma artista do ar livre, como pudemos comprovar, e foi-o até ao fim da vida.

Os solos desta fase eram estupendos e empolgavam os espectadores. A sua forte personalidade dá treino a um corpo sempre em busca de novas energias, de elevada rapidez acrobática. Pena foi que Kandinsky não tivesse fixado no seu desenho os olhos da Palucca enquanto pontos. Deles emanava o espanto, o desconcerto, o movimento infantil cheio de segredos, entre o grotesco e a palhaçada. A leitura dos olhos é extensível a outras imagens da artista.

 

 

2. Foi então que a ideia de salto passou a construir as suas coreografias a solo, o que não significava que a artista não integrasse a dança clássica em muitas das suas composições como viria a acontecer entre 1925 e 1940. Claramente por razões estéticas (ver imagens em pdf da autoria de Charlotte Rudolf), Palucca dança autores barrocos, clássicos e românticos, como Gluck, Mozart, Beethoven, entre outros, mas também modernos. É deste período a Serenade de Albéniz, que vimos em versão original, e de que a bailarina irá apresentar o respectivo solo nos Jogos Olímpicos, de 1936, em Berlim, e perante o Führer.

Apercebemo-nos de que o seu repertório sempre escolhido por razões estéticas e intuitivas, a partir de 1933, vai eliminando compositores vanguardistas e de música experimental para acompanhar as suas coreografias, por razões estratégicas.

 

 

Relembramos o ódio figadal de Hitler e seus mais directos colaboradores, como Goebbels, aos modernismos artísticos. Houve várias acções sucessivas que foram decisivas para o desaparecimento sistemático de obras e autores inspirados pelas vanguardas e que tomou o nome de Arte Degenerada. Literatura, artes plásticas, arquitectura, música, teatro e dança sofrem um drástico golpe a favor da Arte Arianizada que celebrava a raça “pura”, as sagas e heróis medievais que invocavam a antiga Germânia, os autores clássicos adaptados ideologicamente como Goethe e Schiller, a idealização da estatuária grega antiga a par de uma arte popular que vinculava o cidadão comum a estes princípios e valores, mas também as classes diferenciadas que passaram a apreciar a arte pelo sangue, apoiada na consanguinidade e na descendência, e pelo solo, através da valorização do torrão onde se nascia. (Blut und Boden)

Os artistas exilam-se, morrem em campos de extermínio. Mas Palucca não. A estética nacional-socialista elege a arte clássica, a arte medieval como referência. Manda esculpir gigantescas figuras humanas, musculadas, de pés bem assentes na terra e à medida de uma nova nação. Arno Breker e Josef Thorak assumem a evidência de serem pintores do regime.

Sobre Palucca deveria recair um outro veredicto: ela era judia e fora denunciada como comunista. Olhada sob outro prisma: A fé judaica vinha-lhe do lado materno ainda que com banimento por parte do avô. Para os nacional-socialistas a investigação familiar sobre a fé de cada um podia ir até ao 5º grau de descendência. Às vezes inventavam-se dados inexistentes.

Deixando para trás muita informação, mas tomando outra como importante, é na crença de que o ser humano se transforma através do movimento e de que a dança pode contribuir para a reforma da sociedade que tanto Mary Wigman como Gret Palucca informam os seus colegas e alunos de que ambas se tinham inscrito, a 11 de Julho de 1933, na Associação Nacional-socialista de Professores e na Liga Alemã de Combate. Ao mesmo tempo que as duas artistas tomavam esta decisão, Palucca ajudava uma sua colega da Escola de Dança, que era judia, a fugir para a Palestina. Trocara, entretanto, o seu agente artístico judeu com quem trabalhava há anos por um agente ariano. (Beyer, 2009: 157-158) Os saltos e as piruetas de Palucca não interessavam a Hitler, mas ele soube esperar pela ocasião certa para a designar como «a mais alemã das dançarinas.»

Palucca é encarregue de escrever umas palavras a propósito do programa dedicado à dança para os Jogos Olímpicos de 1936:

«Como vivemos e experienciamos as coisas de maneira diferente daqueles que nos precederam e daqueles que vivem connosco, devemos também moldá-las de maneira diferente. Pessoas e tempo criam um terreno comum, e nós amamo-los porque eles nos unem. Mas no nosso povo e no nosso tempo, ouvimos a voz de nosso próprio sangue enquanto trabalhamos. Portanto, todos ficam sozinhos e aguardam o eco. Pela primeira vez na história, bailarinos de todo o mundo encontram-se no Festival Internacional de Dança na Alemanha. Cada um de nós vem como representante de seu povo e como representante de uma arte comum. Compreender-nos-emos melhor, quanto mais claramente formos o que somos por natureza. Disseram de mim que eu era a bailarina mais alemã, não sei bem. Se assim for, então estou feliz e com alegria sincera saúdo todos os bailarinos cujo país reivindica o mesmo.» (Stabel, 2019: 76-77)                                                                                                                                                                                                                                           

 

Obras de consulta em alemão usadas em corpo de texto

BEYER, Susanne, 2009. Palucca – Die Biografie, Berlin: AvivA, pp. 157-158.

STABEL, Ralf, 2019. PALUCCA – Ihr Leben, Ihr Tanz, Leipzig: Henschel Verlag, pp. 76-77.

Leituras recomendadas

KANDINSKY, Wassily, Curvas de dança, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 52.

 

KANDINSKY, WASSILY 1989. Ponto Linha Plano, Lisboa: Edições 70, pp. 50-51.

 

MENDES, Anabela (selecção e tradução), Pequeno dossier de textos sobre dança de e com Gret Palucca. Dactiloscrito, Agosto de 2020. Estes materiais serão distribuídos aos alunos.

 

 Lee Edgar Tyler, Kandinsky and Dance Photographs: Applying a comparatist methodology. In:

http://periodicos.unb.br/index.php/dramaturgias/issue/view/1638/365 pp. 131-136.

Irina Sirotkina, Kandinsky and the New Dance, In: http://periodicos.unb.br/index.php/dramaturgias/issue/view/1638/365 pp. 137-141.