Construir o palco com Kandinsky Professores .Alexandre Pieroni Calado, Pedro Florêncio, Sérgio Mascarenhas

22 Fevereiro 2021, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

FEVEREIRO                            2ªFEIRA                                   4ª AULA

 

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Nota prévia

Como acordado na primeira aula, no final de cada núcleo programático, os alunos escreverão um pequeno documento (até dois A4) sobre a sua experiência com essa unidade. Pretende-se que esse escrito tenha um cunho reflexivo, que registe uma aprendizagem integrada e justificada, que enuncie o prazer/desprazer provocado pela experiência. Será de considerar que não se recorra ao modelo de relatório. Em escrita livre os resultados poderão ser optimizados.

 

Observação e acompanhamento de reconstituição da Composição para Palco Quadros de uma Exposição de Wassily Kandinsky para música de Modest Mussorgsky.

Leituras recomendadas para a aula de dia 1 de Março

KANDINSKY, Wassily, Curvas de dança, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 52.

MENDES, Anabela (selecção e tradução), Pequeno dossier de textos sobre dança de e com Gret Palucca. Dactiloscrito, Agosto de 2020. Estes materiais serão distribuídos aos alunos.

 

Informação recolhida a propósito de Viktor Hartmann

https://www.jaxsymphony.org/about-pictures-at-an-exhibition/

http://www.stmoroky.com/reviews/gallery/pictures/hartmann.htm

http://www.russisches-musikarchiv.de/bilder.htm

https://abstractedreality.com/pictures-exhibition-symbiosis-art-music/

http://jeannettefang.com/on-the-artwork-that-inspired-mussorgskys-pictures-at-an-exhibition-part-2/

 

Wassily Kandinsky e o processo de concepção particular da

sua última Composição para Palco,

Quadros de uma Exposição, 1928 (a partir da obra musical homónima de Modest Mussorgsky, 1871)

 

Enquadramento

A partir de uma iniciativa do novo director do Friedrich-Theater de Dessau, Georg Hartmann, Kandinsky é convidado a criar, em 1928, uma cenografia e figurinos para uma encenação muito especial e singular, cuja estreia ocorreu a 4 de Abril desse ano. Kandinsky assume a realização do espectáculo, socorrendo-se da colaboração de Felix Klee, filho de Paul Klee, e dos alunos das oficinas de Teatro e de Têxteis da Bauhaus.

O projecto a que Kandinsky se dedicou propunha-se acompanhar, através de meios plásticos e de iluminação, uma das obras musicais mais populares do seu compatriota Modest Mussorgsky (1839-1881) que, em 1874, criara uma sequência de dez pequenas cenas para piano, dedicadas postumamente ao seu amigo e pintor Viktor Hartmann (1834-1873).

Com vista à realização deste primeiro e único trabalho específico para cena e, contrariamente aos princípios teóricos sobre a síntese cénica abstracta enunciados em escritos anteriores, Kandinsky tinha de «compor» a partir de uma partitura préexistente que, reportando-se a um acontecimento – a visita a uma exposição – evitasse, segundo ele, os escolhos de uma mera composição programática, conseguindo antes encontrar „uma forma musical pura“[1] para as vivências suscitadas pela partitura de Mussorgsky.

A montagem em 16 quadros concebida por Kandinsky operava como uma série de acontecimentos plásticos cénicos, criados através da ajuda de formas geométricas, cores, linhas e efeitos de luz, que no seu conjunto produziam movimento e integravam com um carácter meramente acessório a figura do „acteur“ (quadro do mercado de Limoges), sob a forma de uma marioneta humana ou, noutras situações, como figuração do teatro de sombras.

Em cena, os 16 quadros constroem-se e desconstroem-se diante dos espectadores através da iluminação e escurecimento sucessivos das diferentes partes da Composição.  De acordo com testemunhas oculares este espectáculo foi apresentado com uma extraordinária diversidade de meios, o que levou a que elementos mais atentos do público chegaram mesmo a referir a presença de pequenas intervenções pedidas de empréstimo a Oskar Schlemmer ou a Ludwig Hirschfeld-Mack, colegas de Kandinsky na Bauhaus.

Estrutura-base da Composição para Palco

O problema de Kandinsky não estava, porém, em conceber uma interacção de elementos originais, mas em fornecer um contraponto visual à composição de Mussorgsky, que não fosse uma ilustração („pintura sob programa“), nem um mero sublinhar da partitura, mas antes uma „sonoridade abstracta“ com capacidade para estabelecer interligações e ao mesmo tempo interagir de modo autónomo na criação, articulando-se com precisão no movimento musical.  Para alcançar este objectivo, o artista cénico propunha-se empregar e trabalhar:

„1) as formas em si, elas mesmas, portadoras de autonomia,

2)    as cores sobre as formas, às quais

3)    se juntaria a cor de aclaramento (Beleuchtungsfarbe), para criar pintura com profundidade,

4)    o jogo autónomo da luz colorida e

5)     a construção articulada com a música de cada quadro e, se necessário, a sua desconstrução.“[2]

Fonte informativa: Jessica Boissel (Hrsg.), Wassily Kandinsky – Üver das Theater, Du Théâtre, O Teatpe, Köln, Dumont, 1998, p. 291.

 

Amada encomenda

Interessou-nos o visionamento deste último trabalho composicional cénico de Kandinsky e o primeiro e único que alcançou o estatuto de obra encenada em toda a sua vida de artista - Quadros de uma Exposição realizado no âmbito da sua leccionação e experiência de vida na Bauhaus de Dessau.

A apresentação desta Composição para Palco surge sob a forma de encomenda, como já sabemos, o que agradou a Kandinsky como possibilidade de criar um «ballet em grande escala com efeitos multimédia» (Kandinsky, 1994: 749) Na verdade, o objectivo da multimedialidade nunca foi alcançado em pleno, ainda que, a título de exemplo, possamos recuperar o visionamento em reconstrução de A cabana de Baba Yaga seguida de Com os Mortos em Língua Morta, onde Kandinsky, com meios pobres, ensaia a apresentação de pequenas linhas e pontos coloridos  iluminados por simples lanternas de bolso apontadas em diversas direcções, e ao ritmo da partitura de Mussorgsky.  Ou o uso do efeito do caleidoscópio no quadro Tulherias. Tal faz-nos lembrar imagens visuais dos princípios da computorização e da animação em cinema. Em boa verdade, o pintor russo apenas conseguiu pôr em palco a obra musical de Mussorgsky, com título homónimo, no Friedrich Theater de Dessau.

O entusiasmo de Kandinsky ao querer corresponder à dita encomenda de Georg von Hartmann, seu conterrâneo e amigo dos tempos de Munique, fê-lo não só concentrar-se na elaboração dos cenários e figurinos, como o levou a criar uma minuciosa partitura de movimento visual e espacial integrada na arquitectura de palco, ajustada, compasso a compasso, às modulações, altura e ritmo do fraseado da obra de Mussorgsky. Foi assim possível tornar relevantes as correspondências entre música, artes plásticas e cénicas, sem que cada uma dessas artes perdesse o seu carácter independente.

Recordo as palavras de Kandinsky no seu ensaio Sobre a Síntese Abstracta para Palco (1923), em que o artista exprime sob uma perspectiva poética difusa, mas ao mesmo tempo circunscrita a um objecto de clara percepção – o íman – aquilo que considera ser a intencionalidade que atribui ao Teatro: magnetizar, atrair, gerar energias.

O íman escondido do teatro tem em si o poder de atrair todas as outras linguagens, todos os meios das artes que, em conjunto, oferecem a maior possibilidade da arte abstracta monumental.

         Palco:

         1. Espaço e dimensão – os meios da arquitectura

a base que permite a cada arte elevar a sua voz, para que surjam frases comuns,

         2. a cor é indissociável do objecto – os meios da pintura – na sua extensão espacial e temporal, muito em particular na forma da luz colorida a da luz3. as extensões espaciais individualizadas – os meios da escultura - com a possibilidade de estruturar positiva e negativamente o espaço,

         4. a sonoridade organizada – os meios da música – com as suas extensões temporais e espaciais,

         5. o movimento organizado – os meios da dança – movimentos temporais, espaciais, abstractos, não apenas individuais, mas do espaço, das formas abstractas, que estão sujeitas a leis próprias.

         6. Po fim, a última forma de arte que conhecemos, que ainda não descobriu as suas origens abstractas – a poesia – coloca à nossa disposição a palavra humana em toda a sua extensão temporal e espacial.

 

Coda

Kandinsky nunca viu os quadros de Viktor Hartmann expostos na Academia Imperial das Artes em São Petersburgo em 1874. A sua inspiração foi, como sabemos, Mussorgky e a música interior da sua arte pictórica que dançava dos quadros não vistos para o espaço cénico com o intuito de ser arte de síntese.

Kandinsky escrevia sobre si próprio, em 1928, no catálogo da Exposição de Outubro:

Não desejo que os meus trabalhos sejam compreendidos em termos de “princípios” (a ‘pintura abstracta’ é ou não justificada?).

Não desejo ser considerado

         um “simbolista”

         um “romanticista”

         um “construtivista”

Ficaria plenamente satisfeito se o espectador conseguisse v i v e n c i a r  a v i d a  i n t e r i o r das forças vivas de que me servi, as suas relações, que fosse capaz de caminhar de um quadro para a outro, e conseguisse descobrir em cada ocasião

          Um conteúdo pictórico diferente.
A questão da forma não é apenas interessante; ela é extremamente importante, mas não cobre a arte enquanto tal.
Quem se satisfaça com a questão da forma permanece na superfície.

Outubro de 1928.

(Lindsay/Vergo, 1994: 730)

 

Concluímos esta primeira unidade programática com um paradoxo. Pudemos comprovar o detalhe e o rigor com que foi concebida a Composição para Palco Quadros de uma Exposição. Talvez nos tenhamos até perdido na captação de todos os dados apresentados por Kandinsky para essa obra. E isso pode fazer-nos cair em erro, se imaginarmos quanto esforço intelectual esteve ao serviço desse minucioso guião. Quem sabe se não nos teremos de libertar do seu próprio discurso, ao querermos encontrar resposta em tudo o que passámos a ler e também a observar. Como o próprio afirma: «O que importa não é o cálculo, mas sim a intuição.» (Kandinsky, EA, 1991: 123.)

 

Leituras recomendadas:

KANDINSKY, Wassily 1991, Do Espiritual na Arte, Prefácio e nota bibliográfica de António Rodrigues, Tradução de Maria Helena de Freitas, Lisboa: Publicações Dom Quixote.

 

KANDINSKY, Wassily 1998, Sobre a Questão da Forma, Da Compreensão da Arte, A Pintura como Arte Pura, Conferência de Colónia in: Gramática da Criação, Lisboa: Edições 70. Apenas o primeiro ensaio é fundamental. Os restantes serão escolha de leitura dos alunos.

Wassily Kandinsky, Statement in the Catalogue of the October Exhibition, Galerie F. Möller Oktober-Ausstellung (Berlin), 1928 in: Kenneth C. Lindsay and Peter Vergo (Ed.), 1994, Kandinsky – Complete Writings on Art, New York, Paris: Da Capo Press, p. 730.

KANDINSKY 1994. Complete Writings on Art, edited by Kenneth C. Lindsay and Peter Vergo, Paris, New York: Da Capo Press, 830, 831, 832, 833, 840, 841. (Sobre abstracto e concreto)

 

Link:

http://periodicos.unb.br/index.php/dramaturgias/issue/view/1638/365

DVD visionado

Bühne und Tanz | Stage and Dance – Wassily Kandinsky, Edition Bauhaus, 36 min. línguas alemã e inglesa, 2014.

 

Leituras recomendadas para o segundo estudo de caso

KANDINSKY, Wassily, Curvas de dança, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 52.

MENDES, Anabela (selecção e tradução), Pequeno dossier de textos sobre dança de e com Gret Palucca. Dactiloscrito, Agosto de 2020. Estes materiais foram enviados aos alunos e aos professores.


[1] Wassily Kandinsky, in: Das Kunstblatt, XIV, 1930, S. 246.

[2] Ibid.