Continuamos inacabados Professores Alexandre Pieroni Calado, Pedro Florêncio, Sérgio Mascarenhas
22 Março 2021, 14:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
MARÇO 2ªFEIRA 8ª AULA
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Devo assinalar um erro acontecido na interpretação de material contemporâneo trabalhado pelo coreógrafo Gerhard Bohner (1936-1992) a partir de curtas cenas de Oskar Schlemmer e reunidas sob a designação de Homem e Máscara. Vimos na passada aula esta compilação reconstituída, mas, dessa vez, pela coreógrafa Margarete Hasting e datada de 1969.
Para a aula de hoje eu tinha pensado em que pudéssemos ter acesso aos exercícios sob forma original, a preto e branco, e que no meu pensar provinham de arquivo. Porque me equivoquei? Porque para cada cena o filme mostrava imagem em letra gótica que anunciava a respectiva cena, o lugar onde ela fora apresentada e a respectiva data. Criei uma percepção de uma montagem que, sem sequer ter em conta a titulação de autoria, contribuiu para um filme próprio e não aquele exibido em DVD.
Este tipo de experiência pode acontecer a qualquer um de nós, se bem que as suas desconstrução e reparação possam levar mais ou menos tempo e dependam da acumulação de dados e informação que, entretanto, foram sendo trabalhados. Toda a minha interpretação baseava-se no tempo histórico e naquilo que a reconstituição de Hastings programara segundo os escritos e esquissos de Oskar Schlemmer. Até a partitura executada pelo No Set Ensemble me pareceu possível ter sido criada para as cenas de Schlemmer. É na mente de observador-intéprete que um processo de consciência «(…) ganha fidelidade podendo dar origem a uma grande variedade de perspectivas», diz Damásio em O Livro da Consciência (p. 167). A perspectiva que abracei sem questionamento derivava da memória emocional com que acedi a arquivos sobre a e da República de Weimar e sobre o e do nacional-socialismo, e de onde as imagens com legendas das coreografias de Bohmer poderiam ter saído. Construi pensamento a partir da realidade das imagens contemporâneas na expectativa de ter alcançado ou de vir a alcançar o que nunca antes vira: trabalho de Schlemmer filmado. As imagens visuais não eram nem serão nunca a mesma coisa.
Sabemos então que ver hoje Schlemmer e as suas coreografias como representação de época é quase tão ilusório como esperar ver Gret Palucca na sua dança acrobática ou na modulação de desenho coreográfico subtil. O mesmo poderemos referir a propósito de Kandinsky e das várias réplicas de Quadros de uma Exposição que DVDs e a Internet põem à nossa disposição sem que a verdade das obras alguma vez se acerque de nós.
Nestes três módulos estivemos a trabalhar sob o signo da repetição que não conhece o original, ou melhor, dá apenas a conhecer alguns caminhos arquivísticos em direcção a esse original. Terão sido suficientes os nossos esforços? Teremos nós compreendido que o tempo da Bauhaus, apesar de todos os meios ao nosso dispor e de todas as propostas de a reanimar, é um tempo e foi um tempo em diferentes espaços que se ajustava a uma época em mudança, embora bem distante da nossa contemporaneidade?
Se perguntarem se nessa época o cinema não estava já em grande actividade, eu direi que sim. E há registos de filmes da Bauhaus de cineastas experimentais como Werner Graeff, Kurt Schwerdtfeger, Kurt Kranz, Hans Richter, entre outros. O Professor Pedro Florêncio conhece bem alguns destes trajectos. No entanto, as oficinas de teatro e de dança, sendo importantes no contexto geral da Bauhaus não terão convocado o registo cinematográfico para os seus trabalhos. Ou, uma outra possibilidade, o caos da II Guerra Mundial deixou arruinada muita arte.
Sem dúvida são importantes todas as bibliotecas e todos os arquivos, todos os testemunhos pessoais que ainda foi possível recolher e que, a nível mundial, contribuíram para que as celebrações dos 100 anos da Bauhaus em 2019, a consagrassem num vasto horizonte de memória de diferentes culturas abraçadas. Internacionalidade do projecto assim o determinou.
Algures no sumário anterior terei escrito isto: O artista [Schlemmer] revela-se, na minha perspectiva, um ser paradoxal, que se revê na figura do inacabamento e, ao mesmo tempo, é um exigente formalista no enquadramento do ser humano no espaço.
Poderemos considerar a figura do inacabamento de um ponto de vista estritamente operativo e prático. Ela relaciona-se com as circunstâncias de financiamento de que Oskar Schlemmer dependia para realizar as suas coreografias e figurinos. Não havendo dinheiro os trabalhos paravam e ficavam no aguardo de melhores dias. As pequenas cenas de Man and Mask são disso exemplo, apesar de todas terem sido apresentadas em 1929 na Bauhaus.
Já de um ponto de vista de construção artística podemos recordar o prolongado aprimoramento realizado com o Ballet Triádico, sua única obra de mais comum conhecimento e também exibida na Bauhaus, iniciada em 1912 e alvo de várias versões até ao ano de 1929.
A ideia de inacabamento, porém, pode ser vista de um outro ângulo. Se considerarmos a personalidade inquieta do artista, a multiplicidade dos seus interesses e diferentes formações, e o facto de se debater sempre entre pelo menos dois pontos de vista contrários de cada vez. Tal diz respeito a categorias como apolíneo e dionisíaco, dimensão real e domínio metafísico, recurso a influências populares, como o folclore russo ou a commedia dell’arte, reconversão do ballet clássico em contraponto com a criação de desfiguração das formas humanas, também porque foi sua escolha ao mesmo tempo aproximar-se de eleitos autores germânicos do primeiro e segundo Romantismo, respectivamente - Heinrich von Kleist ou E.T.A. Hofmann. O primeiro ditava em Sobre o Teatro de Marionetas (1799+/-) o primado da marioneta sobre o humano, em função desse objecto poder ser o símbolo de uma vida não perturbada pela reflexão. A marioneta apresenta-se com toda a graciosidade e dignidade que são afinal qualidades do movimento e que geram harmonia e simetria. O seu intrínseco comportamento enquanto ser-objecto “calmo, leve e gracioso” advém da capacidade de tornar identificável o centro de gravidade que põe essa força em movimento. O ensaio de Kleist é muito mais do que isto, mas Schlemmer é ainda mais vago sobre o que escreveu o seu conterrâneo. O que o distingue é, porém, a aplicação do princípio da marioneta no trabalho com os seus bailarinos.
Quanto a E.T.A. Hofmann, a influência é de uma natureza misteriosa e inspirada em tradições herméticas que invocam no autómato uma espécie de ser qualificado capaz de superar a criação divina, melhorando assim a natureza humana. Em Schlemmer são alguns dos figurinos artísticos que surpreendem neste registo, mas é na espectacularidade da dupla inscrição mecânico/orgânico que tudo se passa sem que seja visível a referencialidade de leituras e inspirações. A leveza, a calma e a graça dos bailarinos schlemmerianos arriscam seguir orientados os fundamentos do Mestre que reconheceu na figura da marioneta kleistiana o princípio poderoso da não consciência, ao mesmo tempo que orientava com rigor metodológico as suas criações para dança.
E o inacabamento?
O inacabamento vive de uma linha de continuidade dos trabalhos de Schlemmer que aspiram a desdobrar-se no que são, no que se acrescenta, no que se retira e substitui e de que nem o Ballet Triádico é excepção.
Termino com três citações diarísticas do nosso artista e que me parecem adequadas ao tópico do inacabamento.
One might ask if the dancers should not be real Puppets, moved by strings, or better still, self-propelled by means of a precision mechanism, almost free of human intervention, at most directed by remote control? Yes! It is only a question of time and money. The effect such an experiment would produce can be found described in Heinrich Kleist’s essay on the marionette. (Schlemmer, 1990: 197, entrada do diário de 5 de Julho de 1926)
I would place the human figure at the center of my investigations. “Man, the measure of all things” provides so many possibilities for variation and for relashionships to architecture and craftmanship that one would merely have to extract the essentials. Therefore: measurement, proportion, and Anatomy; tipicality and special features. The various guiding ideals of the different artistic styles. The dynamics of the body. Movement. Dance. Kinesthetic sense. Man in his relationship to the world about him.
(Schlemmer, 1990: 133, entrada do diário de início de Novembro de 1922)
Paint this renunciation! My last picture.
I am filled with doubts, and thus cannot reach the ear of God. I am too modern to paint pictures. The crisis in art has me in its grip. Perhaps I am not stable enough. I approach my work with great trepidation. Agonize more than I paint.
Theater! Music! My passion! But also: the scope of this particular field. Theoretical possibilities that suit my disposition, because this is natural to me. Free run for the imagination.
Here I can be new, abstract, everything. Here I can be traditional successfully. Here I need not stumble into the dilemma of painting, relapsing into na artistic genre in which I secretely no longer believe. Here my desires coincide with my temperament and with the contemporary mood. Here I am myself, and yet a new person. The only one in the field, without competion.
A late realization, but perhaps not too late. Sense of liberation!
(Schlemmer, 1990: 171, entrada do diário a 13 de Julho de 1925)
Leitura para citações
SCHLEMMER, Oskar, 1990, The letters and Diaries of Oskar Schlemmer, selected and edited by Tut Schlemmer, translated by Krishna Winston, Evanston, Illinois: Northwestern University Press.
Dança dos paus, esquisso. Representações entre 1926-29. Lápis e lápis de cor. 40,2x29,8 cm.
Resumo em apontamento
Tessitura de cena
Apresentação de algumas ideias centrais relacionadas com o trabalho artístico de Oskar Schlemmer na Bauhaus:
-- Importância e influência da arquitectura como arte do espaço e da construção da forma na concepção de palco e na construção coreográfica. Criação do conceito de “arquitectura em mudança”.
- Relação entre máquina e abstracção na procura de um novo e moderno ser humano.
- Concorrência produtiva entre elementos em palco (objectos, materiais, estruturas, maquinarias) e o ser humano, no sentido de estabelecer um melhor conhecimento entre o humano e a técnica. Sujeição de actores e bailarinos ao mecânico como procura de enquadramento de um corpo inabitual.
- Associação da geometria e da estereometria ao estudo do comportamento humano em dança.
- Poeticização do corpo humano através da dança, a partir de uma visão estética e crítica da realidade de época profundamente racionalizada.
- Criação do conceito de Figura artística como resultado da valorização de figurino e máscaras e como extensão e reconfiguração do próprio corpo humano. Questionação sobre novos corpos imaginados e sobre a sua revivência.
Visionamento de materiais a partir das pequenas obras originais de Oskar Schlemmer que nunca efectivamente vimos e revisitações contemporâneas das mesmas. Comentário inspirado por Oskar Schlemmer, um artista paradoxal, que se revê na figura do inacabamento e ao mesmo tempo é um exigente formalista no enquadramento da representação humana no espaço.
DVD visionado
Bühne und Tanz | Stage and Dance – Oskar Schlemmer, Edition Bauhaus, 27 min., Objecto fílmico reconstruído por Margarete Hasting (1969) e Gerhard Bohmer (1980). Língua alemã, língua inglesa na legendagem inicial de cada coreografia, 2014.
Oskar Schlemmer – Articulação entre «ser humano e espaço»
Estivemos assim mais atentos não apenas aos efeitos causados pela surpreendente concepção de figurinos, seu uso e enquadramento espacial, mas passámos a dedicar mais tempo ao movimento dos intérpretes e à sua interacção.
Em Ballet Tríádico (versão de 1969) foi-nos permitido salientar o modo como a concepção cenográfica se apresenta na qualidade de um espaço cúbico abstracto (apenas indiciado pela mudança de cor em cada ballet apresentado), e como apesar dessa característica inerente à espacialidade, conseguimos olhar para os bailarinos como construtores de movimento e em directa relação com esse lugar despojado ou onde pontuam estruturas cénicas de utilização variada. Olhámos então para os bailarinos reconhecendo neles a capacidade de transformarem o espaço abstracto em espaço organicamente biológico através dos seus corpos, experiência e acção.
É de Schlemmer a ideia de que como espectadores somos capazes de criar um imaginário mental (e fazemo-lo várias vezes), emocional, também espiritual, que constrói um espaço próprio com função mediadora entre o espaço cénico e o trabalho em cena dos bailarinos. Quer isto dizer que o tema schlemmeriano que articula «o homem e o espaço» existe.
No caso da revisitação de Margarete Hasting, constatámos uma fidelidade muito expressiva da coreografia, mas sem grande liberdade de criação relativamente à proposta de Oskar Schlemmer. Os bailarinos-figurinos vão preenchendo o espaço e dele se apropriando em solos e contracenas que utilizam o trabalho em pontas, o salto coreográfico, ou o pas de deux, embora também a pantomima, ou a dança popular.
A perspectiva schlemmeriana que tematiza preferencialmente a «relação do homem com o espaço» tem aqui uma proposta clara de síntese entre o espaço abstracto (a cena) e o espaço orgânico (o dos bailarinos), sendo que a articulação entre ambos resulta de uma construção que se propõe assimilar o espaço orgânico e emocional (bailarinos e espectadores) em busca de uma nova unidade entre «intelecto, corpo e alma». Neste contexto, o entendimento do duplo espaço adquire uma condição dinâmica que aproxima Schlemmer de alguns românticos, na medida em que para ele a relação do homem com o espaço pressupunha a ligação ao espaço cósmico.
A sua concepção da arte, mesmo inspirada por princípios de imaterialidade inerente à ideia de Cosmos, não abdicou nunca das características da modernidade artística do seu tempo. E é por isso que o palco era para ele uma espécie de laboratório onde as «figuras artísticas» desempenhavam uma tripla função: ocupavam progressivamente um espaço que lhes era em princípio estranho, interagiam com ele corporalmente e expressavam uma dimensão simbólica também contida nesse programa artístico.
Tivemos oportunidade de visualizar em imagem a relação geometricamente medida e desenhada através da qual o espaço circunscreve a figura humana criando com ela uma abrangência total. Seguindo a presença humana no centro do desenho, apercebemo-nos de um duplo movimento a realizar. Por um lado, o bailarino, na sua dimensão ínfima expande toda a sua actuação pelo espaço e em todas as direcções, permitindo-lhe essa característica fruir a distância a três dimensões e sem fronteiras. Por outro lado, porém, o bailarino tem a percepção de que o espaço geometricamente construído se torna numa limitação ao seu desempenho. Aparentemente perdendo a identidade artística, os bailarinos de Schlemmer ocupam-se de uma adaptação entre as duas leituras do espaço. A construção das partituras coreográficas torna salientes as movimentações de inspiração mecânica e repetitiva que obrigam a marcações de chão, também elas desenhadas geometricamente (Homem e Máscara). No caso desta coreografia, encontramos, porém, variações entre os elementos do trio em acção. Nessas variações é expressa a vertente de crítica social que é também apresentada pelos exercícios vocais. Apercebemo-nos assim de processos de evolução de exercício coreográfico para exercício coreográfico, se bem que os maillots almofadados e as máscaras promovam processos de identificação igualitária.
Esta coreografia-exercício é de uma simplicidade fenoménica e traduz claramente o espírito de crítica social à burguesia de época. Nem sempre Schlemmer se ocupa deste tema.
Deixámo-nos fascinar por uma Dança dos Paus contemporânea, quase esquecendo que a coreografia original tinha sido concebida para um trio e não para um solo. E mais havia a relembrar que os manipuladores das estruturas de paus desempenhavam a função de manipuladores-construtores como acontece com as marionetas de vara.
A composição de Gheorghe Iancu (2010) ganhou asas em relação à proposta do Mestre. O exercício só idêntico à Dança dos Paus de Schlemmer no rigor e na destreza e na precisão das mudanças de posição dos paus, joga com um elemento fundamental - a música de J. S. Bach. Também o efeito de luz abre espaço para outras interpretações. Tudo está à vista, questão que não se colocou a Schlemmer.
Apesar das diferenças é importante que não esqueçamos que as opções de Schlemmer inspiraram um bailarino contemporâneo. Muitos outros terão sido por ele inspirados. De certo modo, o espírito da Bauhaus mantém-se vivo. E a ideia de inacabamento recupera um novo fôlego.
Link sugerido:
Vídeos aconselhados:
https://www.youtube.com/watch?v=mHQmnumnNgo&t=148s (Ballet Triádico)
https://www.youtube.com/watch?v=wt4Hl8zcOt4 (versão inglesa de Homem e Máscara de 2019, 4:07)
https://www.youtube.com/watch?v=m40jBghI0To (apenas a parte final de Homem e Máscara)
https://www.youtube.com/watch?v=0j0x325uR8s (dança dos paus)
https://www.youtube.com/watch?v=cjOXj0AVRk8 (recriação da dança dos paus de Oskar Schlemmer, com música de Johann Sebastian Bach, por Gheorghe Iancu, 2010, 6:37)
https://www.youtube.com/watch?v=lSpowyovAwo (momento do teatro total)
https://www.youtube.com/watch?v=lSpowyovAwo (espaço, movimento e o corpo tecnológico – um tributo à Bauhaus e a Oskar Schlemmer)