Crónica
3 Abril 2020, 16:00 • Ernesto José Rodrigues
A crónica releva da História, da Literatura e do Jornalismo. A "chronica do dia", com que o Diário de Notícias abria nos seus primórdios, informava de entrada, ronceiramente, que «Suas Magestades e Altezas passam sem novidade em suas importantes saudes». Seguiam o calendário litúrgico, nascimento e ocaso do sol, efemérides, despachos telegráficos e locais que, hoje, nunca consideraríamos notícia. Era uma salada a sobrevoar a unidade do folhetim, firme no seu poiso. A História do dia cumpria-se no Jornalismo possível. Em breve, a Literatura tomaria o lugar daquela e, no presente, seria possível associar-lhes outras disciplinas (sociologia, psicologia, etc.).
O que interessa, todavia, é que, deslaçando-se do folhetim, manteve a constante da voz pessoal, fez-se paleta de uma íntima e suspensa reportagem por que dá a cara o subscritor.
É à luz daquelas três macro-estruturas que José Marques de Melo elabora um útil texto de síntese (“A crónica”, em Jornalismo e Literatura, 1988, pp. 41-53), contrapondo, depois, a crónica do jornalismo hispano-americano à do luso-brasileiro.
Aqui, «é um gênero jornalístico opinativo, situado na fronteira entre a informação de atualidade e a narração literária, configurando-se como um relato poético do real».
Contestamos, de seguida, que ela deva obedecer às «três condições essenciais de qualquer manifestação jornalística: atualidade, oportunidade e difusão coletiva». Não: a crónica pode, e deve, criar as duas primeiras, alargando a terceira. É, como não nota o articulista, uma das facetas do poético, que solta e se liberta do nada.
O folhetinista sabia isso: acusado regularmente de não ter ideias, reinventava situações que o país não favorecia e brincava com essa desgraça no próprio texto. Queria-se menos crítico que bem-disposto; antes diletante que doutrinário; preferindo os brincos da frivolidade à sisudez conselheiral.
Tudo isso passou para a crónica moderna, mais irónica do que austera, a favor de jogos linguísticos contra lugares conceituosos. A sua função «educativa» é bem menor do que pensam Nuno Rocha e o autor do artigo.
Victor Silva Lopes (Iniciação ao Jornalismo, 2ª ed., 1981, p. 103), aí citado, é modelar: «A crónica é um pequeno texto narrativo que se ocupa de um episódio (às vezes, banal ou insólito) do quotidiano [pessoal ou colectivo, acrescentamos]. O cronista prevalece o comentário, numa linguagem expressiva, por vezes poética, mas simples e clara.»
E depois: «A crónica permite uma interpretação subjectiva da realidade e, frequentemente, faculta ao seu autor a possibilidade de revelar seus ideiais. [...] A ironia, o humor ou a dureza do tema são formas geralmente escolhidas para rematar uma crónica. Aliás, o cronista num jornal procura observar a realidade (sem muitas das vezes se servir da entrevista), julga-a e procura extrair um comportamento social [não forçosamente, juntamos].»
Daniel Ricardo (ob. cit., p. 31), opondo traços distintivos entre reportagem e crónica, na perspectiva de José A. Benitez (Tecnica Periodistica, 1971), oferece seis alíneas, sendo, todavia, problemáticas as duas últimas:
«e) à vivência pessoal, na reportagem, contrapõe-se a reacção pessoal, na crónica.
f) A reportagem explica, interpreta, analisa; a crónica propõe, sugere, convida a imaginar.»
Bom: quanto a f), é um caso de gradação, porque estes géneros podem intercambiar-se; quanto a e), a inanidade da diferença vivência/reacção surge clara se fecharmos com a definição que defende Óscar Mascarenhas (“Crónica nada!”, Diário de Notícias, 26-11-1992): «Crónica é relato pincelado, é reportagem na primeira pessoa. Acompanha um acontecimento num dado tempo e transporta o leitor nos nossos olhos.»
De imediato, como a negar a citada diferença: «Crónica é o recurso jornalístico a que se lança mão quando a descrição seria fastidiosa, impossível ou ociosa.»
Ou seja: a oposição entre géneros não vinga; modelização de um programa, qualquer género é singular, contaminado embora. É notório que, nestas aspas de Mascarenhas, só há reacção com vivência.
Informação alheia ou que de nós extraímos, a notícia pesa e a ela voltamos, porque, sobre as breves ou a síntese – de facto, só título e lead, e nem sempre aquele –, a apreensão dos elementos cronísticos nasce, muitas vezes, do hoje omnipoderoso fait divers.