Da proximidade

27 Março 2020, 16:00 Ernesto José Rodrigues

Lamentava Guilherme de Melo (O País, 23-1-1976) que certo ministro da então Comunicação Social tivesse o desplante de afirmar que «Há neste país demasiadas folhas de couve», referindo-se à multidão de folhas noticiosas que proliferam entre nós. Além de ministro irresponsável, descurava a gastronomia.

       Esquecia, também, a longevidade de muitos títulos – ou primazia, no caso, p. ex., d'O Açoriano Oriental, que resiste desde 1835 –, o peso epocal de O Bejense, em 1863, quando redigido por João de Deus, ou o queirosiano O Distrito de Évora (1867), bem como a decisiva importância que os ditos 'pasquins' assumem em contextos onde só por milagre chega a dita grande Imprensa, ou de expansão nacional - eufemismos que escondem, não raro, truques e mazelas de envergonhar quem já tem a vantagem de partir dos centros metropolitanos.

       Porta-vozes das vivências e aspirações locais, propagadores de conhecimentos úteis, elos de ligação aos que partiram, neles se revê o estado da nação e do país real, perfazendo o cimento da unidade enquanto se constituem sismógrafos dos movimentos comunitários.

       No entretempo, cada região, se bem reflectida, identifica casos de alcance nacional e mundializável a que o jornalismo estará atento.

       A distância e localização geográficas configuram uma iniludível distância psicológica, que, por seu turno, define a actualidade e significação da notícia, logo, o seu eventual interesse.

       A vitória de um oeirense em prova internacional pode constituir manchete nas folhas locais. Mas a contaminação de centenas em praias distantes e paradisíacas – diferentemente de um tipo de catástrofe que não afectasse, psicologicamente, o turismo local – podem remeter aquele feito desportivo para segundo plano.

       O factor humano pesa, assim, na decisão de quem elabora a primeira página. A manchete – nunca procurada freneticamente na Imprensa regional – estabelece, desde logo, diferença substancial em relação à dita nacional. É outro mundo que se entreabre, do estatuto editorial à estrutura redactorial. Pouca informação − mas nenhum sensacionalismo; ao invés, um programa simples e seguro, eivado de militância não raro apelidada de anacrónica. Eis, em síntese, um projecto deste tipo, que também interessa à disciplina científica.

       Assim, Edward T. Hall (A Dimensão Oculta, 1986) lançou o conceito – que nos pode ser útil – de proxémia, definida enquanto «conjunto das observações e teorias referentes ao uso que o homem faz do espaço enquanto produto cultural específico» (p. 11).

       Decorrente dele, com exemplos que explora na fauna, está o de territorialidade, esse «comportamento característico adoptado por um organismo para tomar posse de um território, defendendo-o contra os membros da sua própria espécie» (p. 19).

       No contexto que nos ocupa, este segundo conceito é positivo, ou seja, dialecticamente produtivo - se entrevirmos na discussão que uma sociedade exerce nas colunas do jornal, ou nas polémicas e vontade de ultrapassagem que um jornal alimenta em relação ao concorrente, a melhoria do espaço colectivo «enquanto produto cultural específico».

       Basta, por outro lado, pensar na experiência que da maquetagem temos para ver como funcionamos segundo escalas: modificando uma foto ou um texto, é toda a página que se altera. O mesmo se dirá da tentativa de reproduzir (como se faz com uma pintura, cujas medidas e leitura saem prejudicadas na reprodução) os factos e acontecimentos locais, para que deve haver, sempre, uma medida, sob risco de cairmos em tolo provincianismo.

       Vasco Pereira da Costa vergastou os seus («Regional, universal / e um caso açoriano», Diário de Notícias, 4-8-1983) ao parodiar certa «menção honrosa na folhinha da paróquia em termos encomiásticos de glorificação familiar: o nosso ilustre poeta, quiçá o nosso maior escritor vivo, deu-nos o seu estro mais um precioso livro de versos de fino recorte, etc.» O adjectivo esmaga, baba-se de admiração e ridículo (que não sente).

       Cita, depois, alguns dos melhores autores nacionais – entre os quais Aquilino e Vitorino Nemésio – em quem a localização geográfica não é obstáculo ao universalismo, cujos horizontes abarcam os seguintes pontos: «A crítica sociológica (os limites sociais, a sociedade tolhendo a liberdade do Homem), o paisagismo (o telúrico e o pagão), o sofrimento do isolamento, as evocações fechadas, o drama humano no concerto das forças naturais, a expressividade da língua de nível popular, os caracteres típicos dos camponeses, dos burgueses, dos aristocratas decadentes, dos oligarcas ascendentes»...

       O conhecimento de nós e dos outros - dominados por uma realidade cultural oculta por que seguimos e vamos desfiando − é mester de qualquer equipa redactorial. Saber, p. ex., se certo estrangeiro gosta de ser fotografado numa praia implica dominar o seu universo de valores (ou, quem sabe, ser perseguido e sovado).

       Hall identifica, a propósito, os quatro tipos de distância que organizamos – íntima, pessoal, social e pública –, cada uma comportando duas modalidades, a próxima e a longínqua. Identificá-los no momento da recolha e selecção do material obvia a respostas e problemas mais ou menos graves.

       O próprio discurso jornalístico sofre, para bem – no caso da identificação, em que entram as formas de tratamento do quem da notícia –, os efeitos da simplificação a que obriga a proximidade. Se o onde está mais ou menos localizado, é pena que as notícias desta nossa Imprensa abram, ainda e maioritariamente, por quando, esse momento que relega para segundo lugar o acontecimento (o quê?).

       Quando se fala em proximidade, exigimos, em suma, à Imprensa local (vocábulo cada vez mais no lugar de 'regional') que evidencie os ditos e feitos do nosso próximo. É a única maneira de salvaguardar a já parca solidariedade, talvez a inter-subjectividade, que a telemática pode arruinar a breve trecho.