Nas origens do sensacionalismo
29 Abril 2020, 16:00 • Ernesto José Rodrigues
FAIT DIVERS
Os exemplos seriam muitos, pelo que indicamos, tão-só, o Memorial de Pero Roiz Soares, manuscrito (contido na Biblioteca Nacional, com primeira impressão em 1953) sobre os acontecimentos vividos e contados em Lisboa entre 1565 e 1628.
A grande e pequena política sebástica ou filipina margina uma série infindável de eventos assumidos como verdadeiros, quase sempre vistos: cataclismos, peste, sinais no céu (aparecimento de cometas), freiras chagadas, os falsos D. Sebastião, ruídos no túmulo coimbrão de D. Afonso Henriques, nascimento de siameses, etc.
É desta diversidade que também se faz a História e daí a importância crescente que obras deste género vêm assumindo, como serão nucleares os incidentes do nosso quotidiano que, de modo mais ou menos sensacional, decoram as hodiernas folhas.
O século XVIIII será, ainda, mais tentado por feitos sobrenaturais, narrados em folhas volantes que os cegos capelistas anunciam ou dependuradas pelo célebre cordel que deu título à literatura desse nome.
Era, já, a paixão pela anedota, cedo renovada, com ingredientes e leves variantes que relançassem o fenómeno, em boa hora aproveitado pelos que reduziram o folheto de cordel ao folhetim em entregas diárias, com que aumentaram o negócio – antes de outros apostarem, então, em textos mais longos sob forma de fascículos.
O fait divers caminha, assim, a par dos iniciais caracteres impressos (na ficção medieval, coexistem o charro e o sobrenatural ou estranho); disputa, em Setecentos, à monarquia absoluta, a capacidade de dirigir as fantasias dos cidadãos; um século decorrido, constitui-se a matéria-prima de imaginosos ficcionistas, de que, aos poucos, os localistas mais sérios e tecnicamente informados se apropriaram, ora destacando a sua raridade em páginas nobres, ora remetendo-o para as últimas páginas pares, onde só um curioso se demora. Alicerce da Imprensa sensacionalista de Oitocentos, de destinação popular, invadiu a televisão nacional, quando nascem as privadas (1991). À cabeça do alinhamento de muita informação, pelo dramático e insólito que veicula, o seu particularismo adormece as consciências, inibindo projectos de destinação colectiva, mais grave em canais de serviço público. Manipula e inventa, se necessário: quando assim é, notícia é, afinal, o jornal ou quem assina.