Os primeiros meios visuais e impressos
3 Fevereiro 2021, 12:30 • Ernesto José Rodrigues
Breve história dos media.
Visuais. Arte rupestre. Datações. Interpretações.Origens da escrita.A história da Humanidade é documentada, em primeiro lugar, pelos media visuais e impressos. Nestes, a literatura ganha corpo já nos primórdios da escrita e na Antiguidade clássica greco-latina, com textos fundadores absorvidos pela Europa desde a Idade Média. Cumpre-nos, assim, pactuar numa definição de literatura e ver em que medida é berço ou inspiração de outros segmentos patrimoniais.
As pinturas rupestres enquadram-se nas datações da teoria Out of Africa, segundo a qual o Homo sapiens africano se dispersou pela Europa e Médio Oriente há 50 mil anos e criou sociedades de recolectores-caçadores com suas trocas comerciais, ritos religiosos e manifestações artísticas. Estas tanto são explicáveis por razões sociais ou demográficas, como pela «survenue d’une mutation génétique três avantageuse qui a favorisé le cerveau d’Homo sapiens»[1]. A arte parietal pode ter vindo até há oito mil anos[2], considerando-se de há 15 mil anos, no mínimo, Lascaux e Altamira (as datações variam, mais do que duplicando esta idade), e, quanto à galeria de ar livre do Côa, 25 mil anos. Descoberta recente[3] de uma pintura figurando cenas de caça, em gruta da ilha de Celebes, Indonésia, terá 44 mil anos. Podemos supor lapsos mais vastos? Estudo da Nature (ver El País de 3-XII-2014) mostrou o talvez primeiro desenho da Humanidade, em Trinil, Indonésia: ziguezagues de há 400 mil anos. São o primeiro medium – meio visual – na história da Humanidade.
É de mais fácil interpretação, e datação menos problemática, a escrita, em que assentam formas de comunicação e expressão.
Nasce há pouco mais de seis mil e quatrocentos anos no Irão (4 400 a. C., elamita linear), segundo estudos recentes[4], que vão além dos cinco mil anos na Baixa Mesopotâmia (pictográfica, c. 3 300) e no Egipto (hieroglífica, c. 3 100; variantes hierática e demótica, c. 650 a. C.). Entre 2 800 e 2 600 a. C., a escrita suméria torna-se cuneiforme, sobre argila[5].
Em 2 400 a. C., havia já listas bilingues acadianas-sumérias, sendo o acadiano (assírio-babilónico) a língua diplomática do Médio Oriente (c. 1 800 a. C.). No início deste segundo milénio, uma tábua de argila cataloga 68 obras sumérias.
Nos mil anos seguintes, florescem outras escritas, incluindo a ideográfica chinesa (c. 1 500 a. C.), interessando-nos os alfabetos fenício, consonântico (c. 900 a. C.), disseminado pelo Mediterrâneo, e grego (c. 800 a. C.), já com vogais.
No segundo milénio a. C., e, sobretudo, a partir do século XIII a. C., encontramos tabuinhas sumérias de teor literário, com novas línguas assentes no sistema cuneiforme. Texto acadiano do séc. XVII a. C. conta a criação do homem, o que levanta o problema das relações temáticas da Bíblia com essas literaturas orientais.
O Egipto inventa a ilustração no Livro dos Mortos (c. 1 500 a. C.) e vários exemplos de banda desenhada nas paredes dos templos.
Enquanto os sumérios usam cunhas ou pregos sobre argila, os egípcios servem-se do cálamo de junco tintado de negro ou vermelho sobre folha de papiro, «pa-per-aâ» (grego: papuros), donde vem a palavra papel – suporte, todavia, inventado pelos chineses. Interessante é a igual etimologia de ‘faraó’ e ‘papiro’: este significa «do rei», por ser monopólio daquele. A cor vermelha deu, em latim, ruber, donde vem a palavra ‘rubrica’. O suporte de escrita mais usado – durante 4 000 anos, até ao séc. XI – é, pois, o papiro, agora acompanhado pelo pergaminho – cuja mais nobre variante é o velino. Outros suportes são paredes, túmulos, madeiras, restos de calcário – é mais conhecida a Pedra de Rosetta (196 a. C.) –, que contêm a primeira literatura da Humanidade.
A tradição greco-latina, entretanto, fazia-se mater (daí, ‘matriz’) do Ocidente. No séc. V a. C., Protágoras de Abdera já listava as palavras difíceis em Homero, cuja Odisseia é, a vários títulos, a principal matriz literária do Ocidente. Gramáticas e comentários gramaticais, dicionários (os primeiros dicionários chineses são do séc. II a. C.), etimologias, glossários bilingues, há de tudo um pouco até ao séc. XIII. Índices pioneiros, cerca de 1200, ainda alimentam a desordem; em 1287, ordenam-se as palavras. Quando o séc. XVII assim ordenar os autores pelo primeiro nome, entrámos no domínio da bibliografia, e, em parte, na dicionarística literária, formulação só assumida no séc. XX.
Com a explosão da imprensa de Gutenberg – anos 40-50 do séc. XV –, os caracteres móveis não aniquilam as belas capitulares iluminadas dos manuscritos, conjugando impresso e visual.
Lembremos a arte de calígrafos e alfabetos dois milénios antes de Cristo, qual lettering dos convites de casamento e moderno design; entremos nos scriptoria conventuais. O que a letra tem de cenografia saturada entranhou-se na íris do último milénio. Hoje, somos visão, mais dramaticamente, vistos e voyeurs. Salientaria, aqui, o signismo da poesia visual barroca, com desenvolvimentos no futurismo e, nos anos 60 do século passado, no experimentalismo de tipo vário.
Paginemos um João Vieira com alfabetos pictóricos, de que, só para o séc. XX, darei a leytra pintada em Sonia Delaunay, Chocolat, 1914, Fernand Léger, Nature morte ABC, 1927, Jasper Johns, Grey Alphabets, 1956, Jon Miró, Silence, 1968.
João Vieira, antes de pintar versos dos nossos maiores poetas, em tela e azulejo, fez-se o principal curador da letra desde os anos 50: assim Alfabeto a Preto e Branco e a variante do Alfabeto a Cores (1981) adquirem um belo efeito de sólida massa em movimento, numa respiração colectiva dos elementos, comum ao seu processo de escrita, e individualizados segundo várias técnicas, seja nos vestidos de letras na passerelle (Lisboa, 1971; Porto, 2002), no M (1958; Sem Título, 1970), no A Grande (1970-1999) e A múltiplo em caixas altas e baixas (1981), seja no X Grande (1970) ou mero X (1990), nas letras de MAR (Dar o Mar ao Mar, c. 1970; Projecto M. A. R., 1970-2002), no L (Ele, 1971), no B (1981), no C (1981), no M e N (1981), no O (1985), em Alfabeto Latino e Grego (2000).
As gramáticas de línguas vulgares, a partir de 1492, reproduzem, com os meios gráficos do tempo, as letras estudadas. Servem-se, também, de exemplos literários, caso do primeiro, Fernão de Oliveira (1536), apoiando-se em Gil Vicente. Da letra ao exemplo, parece natural que um espírito do Renascimento em si deseje concentrar o saber da Humanidade. O mesmo Oliveira é também especialista na arte da guerra, pioneiro europeu na fabricação das naus, historiador. A visão planetária do pedagogo, gramático e cronista João de Barros mostra como História, Geografia (com o desenho de mapas) e Linguística são as novas disciplinas, enquanto a Astronomia vai substituindo a Astrologia. Os Lusíadas resumem, além de inúmeros processos artísticos, estas e outras ciências, prefigurando a Encyclopédie, ou la suite et liaison de tous les Arts et sciences (1587), de Jean II de Gourmont, que nos lembra, com suas linkagens, uma internet de rosto humano. Nos seus elos principais, a literatura divide-se em gramática, retórica, poesia, dialéctica, rítmica, seguindo-se caracterizações internas.
[1] Richard G. Klein, “L’art est-il né d’une mutation génétique?”. In: AA. VV., Homo Sapiens, Paris: Tallandier Éditions, 2005: 220.
[2] Paul Bahn, “Ne cherchez pas le berceau de l’art”, id., ibid., p. 248.
[3] Ver Público, 11-XII-2019, citando artigo da Nature no mesmo dia. Há datações aquém sobre “Os primeiros artistas” em National Geographic Portugal, Janeiro de 2015.
[4] Science et Avenir (Paris), 7-XII-2020.
[5] Exposição no Grand Palais (Paris, 1982) deixou o excelente catálogo Naissance de l’Écriture: Cunéiformes et Hiéroglyphes.