Actualidade dos valores renascentistas: liberalidade, humanismo, sentido e consciência patrimonial, liberdade criadora.

8 Outubro 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     O longo tempo do Renascimento é analisado a partir da cultura artística portuguesa do século XVI, à luz das suas pluralidades e à luz do Humanismo, herdeiro de valias antropocêntricas que radicam na afirmação da liberalità, da virtù, da dignità, da felicità e da utopia como conceitos fundamentais de viragem histórica. Analisam-se casos de de estratégias de afirmação das artes nesse largo tempo do Renascimento que, com suas extensões e continuidades, foi vivenciado à luz, tanto do humanismo cristão, como do novo fenómeno de globalização mundial.

     As várias faces do Renascimento abrem-se ao olhar para a Antiguidade e para os Novos Mundos, alteram relações de trabalho e de mercado no campo das artes e afirmam o estatuto social do artista a outras luzes, bem como as estratégias do pensamento, da criação escrita e da representação do Outro. A abordagem proposta segue os princípios da análise trans-comparatista e trans-contextual do facto artístico, aplicada à conjuntura renascentista nacional, seguindo o princípio da conjuntura larga para analisar os fenómenos de persistência, de revitalização e de ruptura na lenta evolução dos comportamentos histórico-artísticos.

     Para além de um Renascimento histórico que tem suas referências grosso modo durante a primeira metade do século XVI, existiu uma situação renascentista com prolongamentos naturais que tem ressonâncias até ao século XVII. Recorre-se também ao polémico ensaio de Claude-Gilbert Dubois Le Bel aujourd’hui de la Renaissance (2001), que nos veio revelar a persistência, no coração dos nossos dias, de várias mal pressentidas valências epi-renascentistas que persistem, sejam os sinais de representação mimética, a valorização da estética do Belo clássico, da natureza e da memória patrimonial, a perduração da consciência da liberalitá dos artistas e o sentido da última e grande utopia da individualidade partilhada e do ecumenismo fraternal a partir da prática artística -- valores esses sob cuja óptica vivemos, criamos e avaliamos as coisas segundo graus de consciência mais ou menos diluídos.

     O grande humanista, teólogo e latinista Benito Arias Montano (1527-1598), uma das mais notáveis personalidades da cultura europeia de Quinhentos, contribuíu muito, com as suas ideias e escolhas, para a sedimentação de uma Teoria da Arte em nome da felicità, ao defender a harmonia, o rigor doutrinária, a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica dotada de largo sentido de trans-contextualidade. Explorou as relações meta-textuais e imagéticas através da emblemática e um sentido profundo da Ut pictura poesis. Ao asdmirarmos a gravura que fez editar em Roma em 1577, chamada A verdadeira Inteligência (Idea) inspira o Pintor, aberta por Cornelis Cort (1533-1578) segundo desenho de Frederico Zuccaro, com poesia latina de Arias, lemos neste poema ilustrado todo um discurso sobre o papel emotivo e pedagógico das artes. Num tempo gravemente marcado pelas guerras de religião, Arias defende que as artes são remédio para os males que afligem a humanidade, recorrendo à imagem de um Olimpo onde a Caritas, a Prudentia, a Benignitas e a Fortituto têm valência qualificante do verdadeiro sentido da criação artística. Eis toda uma síntese da teoria estética de Arias Montano e dos princípios que o Humanismo cristão defendia.

     É à luz destes pressupostos que trazemos à discussão alguns temas de pintura, de escultura e de arquitectura dos séculos XV e XVI que podem ser vistos como testemunhos de uma nova mentalidade, sejam de manutenção de cânones (exemplos de arquitectura senhorial), de trans-memória (os mecenatos de D. Miguel da Silva em Viseu, de Frei Brás de Barros em Coimbra, do arcebispo D. Teotónio em Évora), de efusivo exotismo de «novos mundos» (o mecenato de D. Álvaro de Castro na Penha Verde ou o dos Condes de Basto em Évora), de formulação teórica (o tratado de Félix da Costa Meesen, Antiguidade da Arte da Pintura, de 1696), de retoma de modelos (casos de «filo-rafaelismo», p. ex.), ou de revitalização de módulos neo-renascentistas, entre muitos outros exemplos de arte portuguesa que se poderiam citar. Como diz o humanista André de Resende no Oratio pro Rostris (1534), « Agora  que,  por  onde  quer  que  se  estenda,  quase  toda  a  Europa  renasce, agora que todas as terras, até outrora  mais  bárbaras, aspiram  à  antiga  felicidade do século mais culto», ou seja, existe uma consciência de liberalidade artística que aspira às utopias construtivas, à consciência da defesa dos patrimónios e à criação das artes como remédio para os males da humanidade.