Arte miscigenada: o contexto das artes luso-orientais e a produção artística no antigo (Império Colonial português.

5 Novembro 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     A História da Arte tem-se renovado muito no plano teórico-conceptual e nas suas bases estruturantes de analise no decurso dos últimos anos, e Portugal não foge à onda, num esforço inusitado de superar gerações de trabalho letárgico, dominado pelo peso de um formalismo estéril e por uma confrangedora falta de problematização dos ‘casos de estudo’.

     É certo que muito se fez e se faz no sentido de recolher, documentar, inventariar, conservar, recuperar e musealizar obras de arte, e e fundamental que tudo isso se faça, e bem – mas em boa verdade de que vale esse esforço dos historiadores de arte se, ao mesmo tempo, as obras de arte não forem, ao mesmo tempo,  interrogadas, explicadas, percebidas (e integralmente fruídas) no seu contexto explícito e na suas componentes iconológicas, estéticas, ideológicas ?  

  Um dos conceitos mais recentemente debatidos – com importância fundamental no caso português, onde as artes do antigo Império têm peso significativo, aliado a uma qualidade muitas vezes excepcional -- é o de hibridismo artistico, a partir do sucesso das obras do historiador inglês Peter Burke. O livro deste autor, justamente intitulado Cultural Hibridism (2003), parte do princípio de que a globalização, na sua componente cultural, envolveu necessariamente fenómenos de hibridização. Seguindo as suas teses, a produção artística, à luz da mundialização aberta com a expansão peninsular do século XVI, exprime-se pela variedade de peças que são ‘hibridizadas’, pela variedade de termos criados justamente para explicar essa ‘interação cultural’, desde a miscigenação à fluidez dos ‘diálogos/confrontos culturais’, pela variedade de situações nas quais os ‘encontros’ pura e simplesmente acontecem (Índia portuguesa, ‘arte nam-ban’, ‘Barroco mineiro’, p. ex.), pela variedade de possíveis reacções a itens culturais não familiares, e pela variedade de possíveis resultados ou consequências da hibridização verificáveis num longo prazo. Acrescentar-se-ia o que grosseiramente se chamou muitas vezes ‘arte de torna-viagem’ ou’arte de retorno’ para tentar simplificar as coisas. 

     É evidente que o uso indiscriminado de um outro conceito, o de miscigenação (variação de hibridismo artístico), justamente porque se aplica a um território (no espaço e no tempo) imenso, variado e disputado, obriga a cuidadas reflexões caso a caso, e pode suscitar naturais reservas. Mas é certo que a globalização, aberta por uma expansão imposta, abriu campo a processos de acomodação tantas vezes inconsciente que conduziram a um intercâmbio de formas, técnicas, experiências e gostos que a História da Arte passou a saber justamente valorizar.

     No caso da arte do ‘mundo português’ o fenómeno da miscigenação nas artes é especialmente notório (veja-se o recente catálogo de Hugo Crespo, Jóias da Carreira da Índia, Lisboa, Museu do Oriente, 2014, tanto na seriação como nos textos que a articulam). O chamado estilo indo-português, paulatinamente visto não só como uma mera ‘curiosidade’ no contexto das artes decorativas do ‘mundo português’ passou a ser analisado como um capítulo artístico com absoluta originalidade e, pela força das miscigenações formais, com grande poder de abertura cultural, através dos sincretismos manifestados nos seus discursos simbólicos.

     Seja como for, também no próprio terreno de estudos da arte indo-portuguesa se vem esbatendo a ideia de uma espécie de «centralidade» unívoca desde Goa, já que, reconhecendo-se que a capital do Estado Português da Índia foi um verdadeiro empório de comércio e produção de bens de luxo à escala mundial, tal papel só ganha sentido revalorizando-se outros pólos de produção coeva e concomitante (Malaca, Ormuz, o Guzarate, o Coromandel, as Filipinas), no contexto de circulações formais que nunca deixaram de ter vários protagonistas envolvidos: ou seja, impõe-se alargar o elo das contextualizações que o comparatismo paulatinamente alerta a fim de se perceberem os resultados.

     Com os avanços dos chamados estudos de arte pós-coloniais também cresceram os olhares críticos a respeito do uso indiscriminado e a-crítico deste conceito: adverte-se que o conceito de hibridismo artístico pode esconder novas formas de dominação colonial por parte dos discursos estabelecidos entre colonizador e colonizado (tanto em visões redutoras de mero ‘exotismo’ e ‘pitoresco’, senão mesmo em visões xenófobas e neo-colonialistas quando levadas a pontos extremos…). Um autor da importância de Serge Gruzinski (O Pensamento Mestiço, 2001) avisou, aliás, contra uma certa «noção abastardada de cultura» quando ela pode ser algo que sempre transforma (quando não faz desaparecer) as realidades dominadas. E não há dúvida de que, como escreveu Stuart Hall (‘Fundamentalismo, diáspora e hibridismo’, 1999), sincretismo e hibridismo (fusão de diferentes tradições culturais) são poderosas fontes criativas, produzindo novas formas mais apropriadas à modernidade tardia que às velhas e contestadas identidades do passado. Um terreno fértil para o debate, como se adivinha, a fim de acertar o nosso questionamento de olhares contemporâneos face à produção gerada em ’contextos híbridos’, digamos assim.