Originais e cópias: metodologia e prática da peritagem.

12 Novembro 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 

     A questão da originalidade de concepção das obras de arte impõe sempre que se determinem rigorosamente as referências formais e ideológicas tomadas pelos artistas na concepção de uma dada obra, e em que medida o discurso artístico preserva, ou tende a perder, a sua dimensão aurática. As categorias operativas propostas pela Iconologia, na esteira dos trabalhos pioneiros de Aby Warburg, e o estudo das trans-memórias que as peças patenteiam, são 'pontos de vista' essenciais na leitura integrada da arte, que merece a maior atenção dos estudiosos. Na Idade Moderna, nem todas as obras de arte seguiam modelos gravados, ao contrário do que muitas vezes se julga; sucede, pelo contrário, que algumas peças consideradas relevantes no seu tempo foram levadas a assumir essa função de inspiradoras de modelo, gerando por seu turno cópias, réplicas, variações parcelares e 'retomas' iconográficas. Esse processo de produção, tão comum no labor dos artistas e oficinas em diversas épocas e 'escolas', impõe modelos, réplicas e variantes, cópias e ‘citações’ formais, e até falsificações e fraudes, reproduções e ‘duplos’, os quais precisam de ser analisados em conjunto (mesmo que sejam de discreta qualidade, como muitas vezes sucede), num cuidadoso processo de comparação.  

     Constitui óptimo testemunho para esta nossa reflexão o grande painel Cristo com a cruz às costas, uma das obras-primas da pintura maneirista portuguesa,  vulgarmente chamada Rua da Amargura, pintado por António Campelo por volta de 1560-1570, ao voltar da cidade de Roma, onde aprendera nos círculos da Bella Maniera miguelangelesca e exposto no M.N.A.A. Encomendado pelos frades de Santa Maria de Belém,  o quadro foi muito elogiado pelas fontes dos séculos XVII e XVIII e, embora muito prejudicado por repintes e perdas de matéria e de valores só em parte resgatados no último restauro, é peça absolutamente original, enquanto aglutinadora dos novos sentidos caprichosos do Maneirismo romano, em cujos modelos teatrais se inspira. Mas o quadro foi,  ao mesmo tempo, uma viva fonte de inspiração para uma série de artistas portugueses que, com maior ou menor talento, tomaram a composição  para compôr, a partir do original de Campelo, algumas réplicas com cópias parcelares e variações de módulo. Estudam-se casos de pinturas (de qualidade e de bitola diferenciadas) existentes em Évora, Coimbra, Alhandra e Idanha-a-Velha que são sequenciais do modelo da Rua da Amargura, abrindo-se assim um campo de trabalho comparatista que é, queremos crer, importante para o apuro analítico-crítico das obras de arte.

     O estudo dos sentidos profundos da criação das obras de arte constitui um dos problemas maiores da História da Arte quando ela pretende definir a originalidade relativa dos objectos em apreço. A verdade é que as obras de arte tanto se assumem numa via entre a busca de originalidade e de novas formas de expressão como na via de uma retoma mais ou menos consciente (ora consequente, ora mais conformada) de ‘temas’, ‘soluções’, ‘códigos formais’ e ‘sujeitos de narração’ que já foram em algum momento sugeridos no seu discurso estético ou que já estão, mesmo, pré-estabelecidos. É por isso que na obra de um artista (mesmo de um artista que seja indiscutivelmente  um ‘grande’ artista) se cruzam com frequência as soluções de originalidade e as ‘retomas’, ‘pessoalismos’ e ‘auto-citações’, as réplicas directas ou cruzadas, as variações de temas alheios, e o sentido mais ou menos recalcado da cópia e da variação  que se mistura com as propostas assumidas no original. Eis um problemas fascinante (mais um !) que se coloca para a nossa disciplina da História da Arte e para o ofício dos historiadores de arte.