Originais, cópias, réplicas, fraudes: a peritagem das obras de arte e a sua metodologia.
8 Outubro 2018, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A questão da originalidade de concepção das obras de arte impõe sempre que se determinem rigorosamente as referências formais e ideológicas tomadas pelos artistas na concepção de uma dada obra, e em que medida o discurso artístico preserva, ou tende a perder, a sua dimensão aurática. As categorias operativas propostas pela Iconologia, na esteira dos trabalhos pioneiros de Aby Warburg, e o estudo das trans-memórias que as peças patenteiam, são 'pontos de vista' essenciais na leitura integrada da arte, que merece a maior atenção dos estudiosos. Na Idade Moderna, nem todas as obras de arte seguiam modelos gravados, ao contrário do que muitas vezes se julga; sucede, pelo contrário, que algumas peças consideradas relevantes no seu tempo foram levadas a assumir essa função de inspiradoras de modelo, gerando por seu turno cópias, réplicas, variações parcelares e 'retomas' iconográficas. Esse processo de produção, tão comum no labor dos artistas e oficinas em diversas épocas e 'escolas', impõe modelos, réplicas e variantes, cópias e ‘citações’ formais, e até falsificações e fraudes, reproduções e ‘duplos’, os quais precisam de ser analisados em conjunto (mesmo que sejam de discreta qualidade, como muitas vezes sucede), num cuidadoso processo de comparação.
Constitui óptimo testemunho para esta nossa reflexão, entre muitos outros citados na aula, o grande painel Cristo com a cruz às costas, uma das obras-primas da pintura maneirista portuguesa, vulgarmente chamada Rua da Amargura, pintado por António Campelo por volta de 1560-1570, ao voltar da cidade de Roma, onde aprendera nos círculos da Bella Maniera miguelangelesca e exposto no M.N.A.A. Encomendado pelos frades de Santa Maria de Belém, o quadro foi muito elogiado pelas fontes dos séculos XVII e XVIII e, embora muito prejudicado por repintes e perdas de matéria e de valores só em parte resgatados no último restauro, é peça absolutamente original, enquanto aglutinadora dos novos sentidos caprichosos do Maneirismo romano, em cujos modelos teatrais se inspira. Mas o quadro foi, ao mesmo tempo, uma viva fonte de inspiração para uma série de artistas portugueses que, com maior ou menor talento, tomaram a composição para compôr, a partir do original de Campelo, algumas réplicas com cópias parcelares e variações de módulo. Estudam-se casos de pinturas (de qualidade e de bitola diferenciadas) existentes em Évora, Coimbra, Alhandra e Idanha-a-Velha que são sequenciais do modelo da Rua da Amargura, abrindo-se assim um campo de trabalho comparatista que é, queremos crer, importante para o apuro analítico-crítico das obras de arte.
O estudo dos sentidos profundos da criação das obras de arte constitui um dos problemas maiores da História da Arte quando ela pretende definir a originalidade relativa dos objectos em apreço. A verdade é que as obras de arte tanto se assumem numa via entre a busca de originalidade e de novas formas de expressão como na via de uma retoma mais ou menos consciente (ora consequente, ora mais conformada) de ‘temas’, ‘soluções’, ‘códigos formais’ e ‘sujeitos de narração’ que já foram em algum momento sugeridos no seu discurso estético ou que já estão, mesmo, pré-estabelecidos. É por isso que na obra de um artista (mesmo de um artista que seja indiscutivelmente um ‘grande’ artista) se cruzam com frequência as soluções de originalidade e as ‘retomas’, ‘pessoalismos’ e ‘auto-citações’, as réplicas directas ou cruzadas, as variações de temas alheios, e o sentido mais ou menos recalcado da cópia e da variação que se mistura com as propostas assumidas no original. Eis um problemas fascinante (mais um !) que se coloca para a nossa disciplina da História da Arte e para o ofício dos historiadores de arte.